A mídia tem contribuído para a ascensão do comportamento fascista, que se resume no racismo, na xenofobia e na dificuldade em aceitar as diferenças.
Atualmente, vivemos uma verdadeira enxurrada de propaganda fascista, a propaganda do ódio, que prega a intolerância e que se afirma estarrecedoramente com muita facilidade e velocidade, através das tecnologias digitais. É o ódio justificado dentro de uma certa ideologia irracional. Trata-se de verdadeiro aliciamento, um sequestro do pensamento, uma reprodução de uma atitude passional de intolerância e de agressividade relativamente às pessoas que não comungam do mesmo ideal.
Refiro-me ao “fascista em potencial”, chamado assim por Theodor Adorno, em um estudo psicossociológico publicado em 1950, feito com a intenção de abordar o surgimento, naquela época, de um novo tipo de indivíduos, com ideias conservadoras, reacionárias e antidemocráticas. Hoje, esse tipo de indivíduo é cada vez mais comum. Conforme comenta Tiburi (2012), para Adorno, “a característica fundamental do que se chamou de ‘personalidade autoritária’ era a combinação contraditória, num mesmo indivíduo, entre uma postura racional e idiossincrasias irracionais”. E, o que ele chamou de “fascismo potencial”, para Tiburi, “seria uma característica de indivíduos que teriam se mimetizado às tendências antidemocráticas da sociedade.”1
O fascismo emerge do comportamento social, e não é necessariamente político. Dessa forma, podemos entender o comportamento fascista: o racismo, xenofobia, dificuldade em aceitar as diferenças, desejo de exclusão ou descarte daquilo que não lhe agrada, intolerância e o fundamentalismo religioso, preconceito, etc. Como por exemplo, as manifestações de ódio aos nordestinos que votaram na presidente Dilma, a não aceitação explícita e radical daqueles que a apoiam, ou sejam, daqueles que não comungam com os seus mesmos ideais políticos e partidários. Para esses, a pessoa que pensa diferente, é “cega” e “burra”.
Existem fatos que apresentam especificidades muitos especiais: consistem em determinadas tendências nos modos de agir, pensar e sentir, exteriores aos indivíduos e dotados de um poder de coerção muito forte, que são impostas, porém facilmente assimiladas pelos indivíduos – as ideologias pré-fabricadas que são facilmente aceitas pelo senso comum. Antes o rol de informações que alimentavam esse tipo de pensamento era emitido por vizinhos, amigos, jornais, televisão, religião, etc. Atualmente, além da mídia, a internet passou a ser o principal meio de veiculação e reprodução desse tipo de pensamento e, também de sentimentos, cuja sua principal marca é uma construção coletiva da ausência de reflexão e a aceitação pacífica e inocente das informações.
Tanto o senso comum como o senso crítico fazem parte das formas de encarar, se posicionar e conhecer a realidade, cada qual com a sua maneira e implicação. O senso comum possui a marca do ordinário, normal, coletivo, caracterizado pelo pensamento superficial, irrefletido e inocente. Ele não possui rigor quanto à coerência e lógica de seus conceitos, o que faz com que sejam mais facilmente massificados, manipulados, alienados e o indivíduo não é capaz de entender as relações de força que definem uma determinada situação.
O senso crítico, ao contrário do senso comum, possui como principais características a reflexão, a análise, a crítica consciente e coerente. Ele pauta-se pelo uso consciente da razão para administrar as ideias e os próprios sentimentos. Dogmas, opiniões e crenças são minuciosamente investigadas e analisadas, o que proporciona um juízo coerente, autônomo e flexível. No uso do senso crítico o pensamento é complexo e dialético, capaz de distinguir, identificar as ideologias conspiradoras e manipuladoras, tão comuns nas redes sociais, blogs, mensagens do WhatsApp que são espalhadas, muito rapidamente, através dos smartphones.
Os meios de comunicação têm um papel fundamental nesse processo: a propaganda disfarçada de jornalismo tem uma característica peculiar na reprodução do ódio e negação da alteridade, ou seja, a não aceitação do outro como ele é, diferente. Ainda consegue, com muita facilidade, mascarar a sua intencionalidade fascista aos olhos do senso comum e do analfabeto político, levando o indivíduo a achar que é politizado porque comunga da mesma ideia. A aceitação pacífica, irrefletida e irracional o faz pensar que é um cidadão consciente e passa a reproduzir a violência, sem pensar com cuidado crítico nas causas e consequências dos seus atos.
O analfabeto político é aquele que não entende de história política, que não sabe interpretar os acontecimentos históricos e contextualizá-los. Ele não sabe as relações de força de uma determinada situação, não tem noção da profundidade dos problemas políticos do país. Seu conhecimento limita-se à construção coletiva do senso comum, construção essa que atualmente é potencializada através da internet. Não conhece – e talvez nem saiba o que é a nossa Constituição. É inocente, pensa que a corrupção foi inventada pelo Partidos dos Trabalhadores, ou qualquer outro partido político, não conhece a promíscua história brasileira marcada pelas relações fisiológicas entre o público e o privado.
Não há democracia sem respeito à singularidade e aos direitos fundamentais assegurados pelo Estado, que cada instituição e cada cidadão deve ao outro com quem compartilha a vida, seja ela pública ou privada. A essência da democracia é a aceitação da pluralidade, o que implica a coexistência pacífica das diferenças, sejam elas de ideias partidários, de gênero, de interesses etc.
Essa disseminação do ódio é a anti-democracia inconsciente, uma desconstrução da democracia, ainda infantilizada e em processo, pelas características de nossa história. Cada um tem o direito de pensar como quiser, a liberdade é uma outra prerrogativa da própria democracia, por exemplo, é um direito ser a favor ou contra o PT, ou se posicionar a favor ou contra o PSDB, mas, acima de tudo, é um dever ético respeitar a ideologia do outro.
A filósofa Hannah Arendt dedicou-se a reflexões sobre dois temas fundamentais do período pós-guerra: o totalitarismo e a banalização do mal. Segundo a pensadora, os regimes totalitários de esquerda ou de direita tiveram como pressuposto a aniquilação das classes sociais, a atomização das pessoas, e a uniformidade e homogeneidade sociais. A banalização do mal, fenômeno necessário e correlato ao totalitarismo, se caracteriza por não ser mero fruto da perversidade ou da crueldade pessoais, pois, em sua radicalidade desumana, consiste da recusa em examinar atos e ações inerentes à existência humana. Em virtude disso, Hannah Arendt aponta como antídoto à ascensão totalitária e à banalização do mal, a atividade autônoma do pensamento. Assim, para a pensadora, somente a preservação da capacidade de reflexão crítica permite que o indivíduo possa resistir à atomização e ao mal.
Dessa forma, os argumentos de Arendt, não se fundamentam na perversidade ou na crueldade das pessoas em si, mas sim na falta da reflexão. A incapacidade de pensar é uma característica do senso comum que reproduz o pensamento vazio de valores morais, o ódio. Para ela, a saída seria o desenvolvimento da capacidade de romper com o cotidiano, uma descontinuidade própria da vida humana, uma parada, uma reflexão, um olhar de fora - o ato de refletir sobre os acontecimentos a fim de dar significados a eles. É como se a experiência do pensamento se originasse numa sensação de estranhamento da realidade, e isso não exclui as coisas mais comuns.
Por isso, atualmente, tornou-se urgente reinventar um modelo de educação voltado a uma forma de pensar mais complexa, voltada à conquista da autonomia intelectual, para o exercício da atividade crítica coerente e consistente, de forma que os valores humanos estejam sempre em vista.
O modelo de educação em voga é pragmático, o estudante apreende o mundo em partes fragmentadas de forma utilitarista e funcionalista, sem comprometimento com a vida adulta, nas suas mais diferentes implicações e complexidades. De acordo com Callegaro (2012), “Hannah Arendt acreditava que só é possível dar um significado ao mundo, na medida em que os homens tomarem consciência de que o mundo, este mundo no qual vivemos, é resultado de artefatos humanos que trazem em seu bojo individualidades, que somadas formam um constructo coletivo.”2
Para isso, é preciso renovar nossa capacidade de diálogo com propostas de um novo projeto de sociedade. Uma sociedade mais humanizada. Por enquanto, mesmo parecendo ineficaz, é preciso combater a intolerância e o ódio com todas as garras. Não podemos assistir passivamente a este fenômeno de “olhos fechados”. É nossa responsabilidade moral e ética combater a inanição intelectual em voga. E a ferramenta de combate que por hora dispomos é o diálogo.
Luiz Claudio Tonchis é Educador e Gestor Escolar, trabalha na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, é bacharel e licenciado em Filosofia, com pós-graduação em Ética pela UNESP e em Gestão Escolar pela UNIARARAS. Atualmente é acadêmico em Pós-Graduação (MBA) pela Universidade Federal Fluminense. Escreve regularmente para blogs, jornais e revistas, contribuindo com artigos em que discute questões ligadas à Política, Educação e Filosofia.
Contato: lctonchis@gmail.com
Referências
1. Tiburi, M., “Fascismo Potencial”, Revista Cult, edição 167, 04/2012.
2. Callegaro, R., “Notas Sobre a Crise na Educação, no Pensamento de Hannah Arendt”, Revista Educação e Políticas em Debate - v. 1, n. 1, - jan./jul. 2012.
Fonte: Carta Maior
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