A descoberta de um sistema de megaespionagem nos EUA preocupa o Brasil e é preciso investir em "defesa cibernética". Quem faz o alerta é o ministro da Defesa Celso Amorim. Ele próprio desconfia que pode ter sido alvo de escutas telefônicas no passado.
O ministro advoga o
desenvolvimento de um pensamento de defesa para a região, que priorize os
recursos naturais. "O Brasil é um país muito rico, tem muitas reservas
naturais. E esses recursos naturais podem ser objeto de cobiça", afirma.
Para ele, é necessário criar uma base industrial de defesa comum na América do
Sul.
Nesta entrevista, concedida em
São Paulo, Amorim, 71, trata da Comissão da Verdade e comenta as manifestações
pelo país, que, na sua visão, refletem o distanciamento entre as estruturas de
governo e a população.
*
O que está acontecendo no
Brasil?
Não é só no Brasil. Isso é um
tipo de enigma que temos que decifrar. Há uma pluralidade de agentes, gente
ligada e não ligada a partidos. Tem pessoas reclamando especificamente da
passagem de ônibus, onde começou tudo. Não é só no Brasil. Nós aqui não temos
problema de desemprego entre os jovens como ocorre na Europa. Há, talvez, um
desejo de maior participação. Não é nesse governo ou no anterior. É uma coisa
genérica que aflora de tempos em tempos afloram. É preciso entender as razões
desse mal estar.
Onde está esse mal estar?
Sempre se tem uma coisa para
reclamar, alguma razão para um mal estar. As estruturas de governo em geral
acabam levando a um certo distanciamento entre a população e o poder, qualquer
que seja o poder. Quando a economia está crescendo muito ou há um projeto novo
sendo realizado, isso às vezes se dissolve um pouco. Mas volta e meia
reaparece. A atitude da presidente Dilma --eu sou suspeito para falar porque
sou do governo-- é muito positiva ao dizer que respeita o direito de se
manifestar. A defesa do direito de se manifestar é o primeiro passo para se ter
um diálogo e se poder entender. As razões podem ser difusas. É preciso entender
esse desejo de participação mais direta da população. Não de se criar uma
democracia direta, como é na Suíça, onde tudo tem referendo. Mas há esse desejo
participativo.
Quais são as consequências
políticas desse movimento?
Talvez isso acentue a necessidade
de uma reforma política que de alguma maneira aproxime todas as estruturas de
poder dos cidadãos e dos jovens em geral. Todos temos que desenvolver
mecanismos, canais de comunicação para que essas inquietações sejam expressas.
Não vejo consequência negativa para o partido A ou B.
As Forças Armadas podem ser
chamadas?
Não vejo isso acontecer. Os
órgãos de segurança pública tem perfeito controle da situação. A questão é
saber se agem com maior rigor ou com maior comedimento. É um equilíbrio às
vezes delicado, mas acho que isso é encontrável.
Como o sr. analisa essa
megaespionagem envolvendo governo e empresas privadas descoberta nos EUA?
Vou fazer uma brincadeirinha.
Fiquei até decepcionado que em 2009 eles se interessaram pela Turquia, África
do Sul, pela Rússia e não se interessaram pelo Brasil. É porque falamos tudo
com muita clareza, talvez. Em 2009 não participei da parte financeira, mas
estava lá. Tive uma reunião com o ministro das relações exteriores inglês. Não
sei se a nossa reunião não foi gravada também.
Mas como essa
megaespionagem afeta o Brasil?
Isso faz parte desse mal estar
não só no Brasil, mas no mundo. Essa ideia de que há um controle total sobre a
vida dos cidadãos, que a liberdade é permanentemente cerceada. No Brasil, que
eu saiba, não ocorre nada parecido. Mas de um modo geral isso cria um clima de
mal estar com as estruturas políticas e poder no mundo inteiro. Sempre tem que
encontrar um equilíbrio. Se você tem uma ameaça muito premente, talvez em
certos momentos...
Mas os brasileiros que
estão conectados não podem estar sendo espionados?
Podem também, é óbvio. Mas o que
se conhece é mais das agências norte-americanas. Agora saiu sobre a britânica.
Não me consta que nada tenha saído sobre as agências brasileiras. Mas
brasileiros podem ser sim [espionados]. É uma coisa especulativa. Pessoas que
estão em posições-chave podem ser objeto de uma vigilância mais constante. Vou
dizer francamente. Em dois momentos eu achei que o meu telefone não aqui no Brasil, um deles até
aqui no Brasil não sei por
qual agência, que os meus telefones estavam sendo gravados. Um, quando meu
morava nos EUA e era embaixador na ONU. Cuidava de três comissões sobre a
questão do Iraque. Meu telefone começou a fazer um ruído muito estranho, e,
quando acabou a comissão sobre Iraque, acabou o ruído também. Alí havia um foco
óbvio.
O sr. pediu alguma
investigação?
Não, porque o que eu falava lá,
falava em público. Curiosamente, quando eu saí do governo Lula mas continuei com muitas atividades
sobre a questão nuclear, a questão do Irã e
recebia telefonemas de embaixadas, também achei estranho meu telefone
particular aqui no Brasil, no Rio. Mas também já sumiu. Descobriram que eu sou
ministro da Defesa, ficaram mais... Eu não sei quem. Foram duas situações que
eu suspeito, mas nem tenho certeza. Nem da onde partiu, nem o que foi. Pode ter
sido coincidência, mas a gente desconfia das coincidências.
Do ponto de vista da
defesa, isso preocupa o Brasil?
Claro, por isso temos que ter a
defesa cibernética. Para evitar que entrem nos nossos sistemas, que saibam o
que a gente está planejando. Por isso criamos um centro de defesa cibernética
no Exército, com recursos não se comparam com o que eu acho que seriam
necessários. Deve ser mais ou menos um terço do que gasta a Inglaterra em
defesa cibernética, cerca de R$ 70 milhões.
Isso garante?
Não, é um passo, pois não se
tinha nada. É uma estrutura de defesa cibernética que tem se concentrado em
grandes eventos. Ninguém vai se tronar totalmente invulnerável. Leio que a
maior ameaça aos EUA é o ataque cibernético. E eles são o país que tem as
estruturas mais bem protegidas.
O sr. falou de recursos
orçamentários insuficientes. É preciso aumentar os gastos em defesa?
A área de defesa em sido
razoavelmente bem tratada dentro desse contexto de dificuldades. O fundamental
é a sociedade passar a considerar a defesa como uma coisa importante. Quanto
mais o Brasil se projeta no mundo, mais importante isso se torna. É razoável
pretendermos um aumento progressivo. Hoje em dia temos 1,5% do PIB em gastos
com defesa. A média dos Brics é 2,5%. Em 10 anos deveríamos chegar a 2%.
As pessoas se perguntam por que
queremos um submarino nuclear. Queremos porque o Brasil tem a maior costa
atlântica do mundo e provavelmente a maior reserva de petróleo no fundo do mar
no mundo. Isso exige um tipo de defesa que equipamentos mais tradicionais não
são capazes de dar. O submarino é de propulsão nuclear, não terá armas. A
vantagem é que permite ficar mais tempo submerso, dá mais autonomia para ficar
submerso e não ser detectado, e, portanto capaz de defender.
Quando se pensa em defesa, se
pensa em novas ameaças, que são reais: pirataria, narcotráfico, terrorismo. Mas
não podemos estar seguros de que as chamadas velhas ameaças não se
reproduzirão. O Brasil é um país muito rico, tem muitas reservas naturais. E
esses recursos naturais podem ser objeto de cobiça. Pode até se conceber que
conflitos entre terceiros países tenham reflexos no nosso. Até para eu isso não
aconteça, temos que mostrar que temos uma certa capacidade. Aí entra o submarino
nuclear, a defesa antiaérea, que aviões, sistema de comunicação nas fronteiras.
Temos quase 17 mil km de fronteira com outros países, É muita coisa. Dez
vizinhos. Oito mil km de litoral, o maior litoral atlântico do mundo. Hoje em
dia, o Brasil está fazendo cada vez mais parte dos clubes que tomam decisões no
mundo. Então, tem que tomar conta da sua própria defesa.
Falando em ameaças
convencionais, a criação da quarta frota norte-americana na região preocupa?
Ela está relacionada com essa cobiça estrangeira que o sr. mencionou?
Não quero fazer um discurso de
que estão todos querendo aqui. Não é bem assim. Não acho que a quarta frota foi
feita por isso. Ela existiu, foi desativada e reativada. A quarta frota é, na
realidade, uma frota virtual. O que não quer dizer que... Os americanos dizem
que estão preocupados com narcotráfico, a pirataria. O fato é que isso, em
certas situações, pode representar um incômodo para o Brasil.
Mas o anúncio da
reativação da quarta frota mais ou menos coincidiu com o anúncio o Pré-Sal,
não?
Mais ou menos. Coincidiu com
isso, com outras situações na região. Também com certos problemas na África. É
motivo, sim, de preocupação. Ainda que sua existência seja de forma virtual, o
fato de eles colocarem um olhar para cá. Não é por serem os EUA. Se fosse a
China, a Rússia ou da Inglaterra, a preocupação seria idêntica. Nós queremos é
manter o Atlântico Sul como uma zona de paz e cooperação, livre de armas
nucleares. Nós não sabemos o que esta quarta frota pode conter, que navios seriam
chamados. Digamos que aja um problema que não seja conosco. Mas que navios
portadores de armas nucleares façam parte de uma mobilização. Que problemas
podem provocar? Existe essa preocupação em manter o Atlântico Sul como uma zona
de paz. Mas para isso nos temos que cuidar da nossa defesa. Temos que ter uma
cooperação com outros países, tanto na América do Sul, quanto da África. Temos
trabalhado nesse sentido, intensificado nossa colaboração com países africanos.
A questão das bases dos
EUA no continente preocupa?
O caso mais concreto foi na
Colômbia e isso foi discutido. Acordos dos EUA com a Colômbia passaram a
incluir cláusula especifica de respeito à integridade territorial dos Estados e
soberania. Temos uma relação de muita confiança dentro do conselho de defesa
sul-americano. Falo de qualquer base estrangeira. Qualquer aproximação mais
forte, com presença física dentro do território sul-americano, claro que será
motivo de preocupação.
O poder norte-americano
está cadente no continente?
Os EUA são a maior potência do
mundo. Não só econômica, mas cultural. 70% dos programas de entretenimento, se
não for novela, são americanos. Esse poder não vai terminar de uma hora para
outra. Não é contra ninguém. No conceito novo de defesa se pensa em capacidades,
em ter capacidade, o que já serve de dissuasão para quem quer que seja. Aquela
grande insegurança, quando houve a polêmica bases dos EUA na Colômbia,
arrefeceu. Houve medidas de confiança. As forças armadas estão se falando mais
na América do Sul, têm havido reuniões periódicas, temos trabalhado com
transparência, até fazendo operações conjuntas.
Além disso, temos que,
paulatinamente, criar uma base industrial de defesa comum. É uma coisa de muito
longo prazo, que pode levar, 30, 40 anos, mas tem que começar. Como o Brasil é
o mais aditado hoje na indústria de defesa, alguns projetos nasceram aqui. É o
caso desse avião cargueiro que, no Brasil, vai substituir o Hércules. A
argentina participa dele, a Colômbia estuda participar, além de países de fora
da região. Outro exemplo: aprovamos no conselho de defesa sul-americano um
avião treinador básico. É uma ideia argentina, mas estamos ajudando no projeto.
Precisávamos de lança patrulha robusta para combater narcotráfico na Amazônia.
Resolvemos comprar da Colômbia. Poderíamos ter comprado da Suécia ou de outros
países. Da mesma maneira, vendemos supertucanos para a Colômbia. Entendo que
não é vender, mas contribuir para o desenvolvimento da indústria local.
Temos, assim, várias dimensões:
criação de confiança; indústria de defesa e criar um pensamento sul-americano
comum, que leve em conta as hipóteses que são mais prováveis para nós. Valorizo
nossa cooperação com EUA e Canadá. Os problemas deles não são os nossos. Nós
temos que combater o terrorismo como em qualquer lugar do mundo, mas não temos
uma guerra global contra o terror, como identificação quase que religiosa.
Temos que ver os nossos problemas. Quando olho para a América do Sul e nossos
problemas comuns, o principal deles vai ser a defesa dos nossos recursos
naturais. A América do Sul é grande produtora de alimentos, grande detentora de
recursos de energia, maior detentora de água, grande detentora de
biodiversidade. A especificidade sul-americana é a defesa dos recursos
naturais. A nossa prioridade tem que ser a América do Sul e tem que haver um
pensamento sul-americano em função dos nossos problemas. Não é um pensamento
único, tem que admitir uma pluralidade de situações, mas com elementos comuns.
O principal é a questão da defesa dos recursos naturais.
Depois do desmonte nos
anos 1990, a indústria bélica no país entrou em processo de desnacionalização.
Isso preocupa?
Não sou contra qualquer
associação. O problema é saber como se maneja as associações. Aconteceu com uma
empresa brasileira que produzia um componente essencial para o combustível de
lançadores de satélite. Era uma petroquímica, foi comprada por uma petroquímica
maior, e a petroquímica foi vendida para a Alemanha. Outro dia quisemos comprar
esse combustível da Alemanha e disseram que não vendem porque é estratégico.
Temos que voltar a desenvolver, e estamos tratando disso. Isso aconteceu há 20,
15 anos. Há essa preocupação. Acabamos de inaugurar, na Iveco, uma linha de
fabricação do Guarani, em função de encomenda do Exército. A Fiat é uma empresa
europeia, mas está no Brasil há muitos anos e a patente do veículo é do
Exército brasileiro. No caso do submarino nuclear jamais poderíamos fazer
sozinhos. No caso da aviação temos a Embraer. Na defesa antiaérea, vamos
comprar um sistema russo, mas não vamos comprar ele pronto. Vamos usar radares
brasileiros. Há empresas como a Avibras. Por outro lado, criamos uma legislação
muito importante para empresas estratégicas de defesa. Exige valor agregado no
país, controle decisório no país. O Brasil tem que fazer valer o seu poder de
barganha. Os países que têm potencial de crescer na área de defesa são os
emergentes, porque suas necessidades de defesa vão aumentar. Isso nos dá um
enorme poder de barganha. Queremos ter certeza de que a absorção de tecnologia vai
ocorrer. A presidente Dilma está muito preocupada com isso.
Sobre a novela dos caças,
qual a perspectiva de decisão?
Não cheguei ao ponto de poder
dizer assim: últimos capítulos. Estamos chegando perto dos últimos capítulos.
Não tenho bola de cristal. A parte minha já foi feita. Estamos num processo
ativo de análise que permita a presidente tomar uma decisão. Creio eu que possa
ser tomada neste ano.
O fato de a Embraer ter
ganho uma concorrência nos EUA de alguma maneira influencia a decisão?
É uma resposta que eu prefiro nem
dar, porque qualquer resposta que eu dê vai dar uma leitura errada,
A Comissão da Verdade pede
documentos e alguns integrantes defendem a revisão da lei da Anistia. As Forças
Armadas dizem que eles não existem e resistem a admitir a tortura. Como desatar
esse nó?
Temos buscado cooperar o máximo
com a Comissão da Verdade. Obviamente não vou dizer que seja um processo fácil.
Mandei uma quantidade enorme, mais de 500 mil documentos, e as pessoas têm que
ir lá pesquisar. Inclusive cinquenta volumes encadernados do antigo EMFA. Não
sei se tem o que a Comissão da Verdade está procurando, mas há vários documentos
de várias naturezas que eram secretos e que foram mandados também para o
arquivo nacional. Pessoalmente estive sempre muito empenhado em facilitar o
diálogo e a comunicação entre a comissão e as forças. Até promovi um almoço com
membros da Comissão e comandantes das Forças. Para possibilitar esse diálogo
criamos mecanismos para que isso continue. Temos respondido às perguntas.
Os documentos existem? Não tenho
nenhuma razão para não crer no que me dizem os comandantes. O que eles dizem é
que o que tinha foi destruído. Acho até que isso tem uma certa lógica,
independentemente do ponto de vista sobre o fato. Não estou discutindo a
legitimidade ou legalidade da destruição. Alegam que a legislação da época
permitia. Não me pronuncio sobre isso. Eles dizem que foi destruído e que não
tem. Se alguns da reserva levaram para casa, isso é outra questão. A maneira
como a Comissão da Verdade tem prosseguido, inclusive com audiências públicas,
vai contribuir para que se saiba mais proximamente, com o grau de precisão
possível, o que aconteceu. Haverá sempre insatisfação, mas tenho trabalhado com
o máximo de abertura. Estou convencido que os comandantes têm procurado
cooperar também.
A revisão da lei da anistia não
está na agenda do governo. O momento histórico que estamos vivendo é esse. A
lei que criou a Comissão da Verdade, por praticamente unanimidade no Congresso,
se baseia em certos pressupostos. Ela reafirma a vigência da Lei da Anistia.
Esse é o quadro legal que existe.
O sr. sente polarização,
ressentimento?
O interesse do Brasil é conhecer
a verdade. Quanto mais a gente reforça essa ideia de dois lados, mais difícil
fica conhecer a verdade plenamente e passar para o futuro. A Comissão da
Verdade é para apurar os fatos. E os fatos falam por si só uma vez apurados.
Como as Forças Armadas
acompanham esse processo. Reavivou feridas?
Não vejo. As palavras, às vezes
aqui ou ali, podem causar incômodo. Um ou outro procedimento. Mas percebem que
o momento histórico do Brasil exige uma cooperação efetiva com a comissão que
está encarregada de apurar os fatos. Acho que têm cooperado e reafirmado
decisão de cooperar. É preciso que essa confiança se crie, se desenvolva. Tenho
confiança nisso.
Vai sempre haver interpretações
do que os fatos foram, sempre vai haver alguma diferença. Com o tempo, a
sociedade brasileira vai formar sua visão histórica e vai compreender melhor. O
importante é apurar os fatos e fazer com que eles apareçam. Mais tarde haverá
interpretações diferentes. Tem gente que até hoje interpreta a revolução francesa.
Tem gente que acha que foi um grande avanço, tem gente que não. Isso é coisa
para os historiadores. O importante é que os fatos sejam apurados na sua maior
integralidade e nós estamos cooperando com isso.
Qual a diferença entre
Lula e Dilma?
Um pensador disse que diz o
estilo é o homem. Agora o estilo é uma mulher. As posições básicas são muito
parecidas, mas cada momento apresenta seus próprios desafios. Eu me sinto bem
nos dois governos.
Fonte:
Folha
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