Está em curso, no País, uma série de violações de direitos, com a justificativa da necessidade de manter a “ordem” e de viabilizar megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Duas das principais questões apontadas pelos movimentos e ativistas que criticam os megaeventos são a política de remoções forçadas de milhares de famílias, que deve afetar cerca de 170 mil pessoas nas doze cidades-sede, de acordo com a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop), e a criação de leis de exceção, que confirmam a prática recorrente de desconstrução dos direitos mais básicos, já fragilizados no País, como as liberdades de ir e vir, de manifestação e de expressão.
Nesse contexto, a defesa da comunicação como direito humano se coloca como indispensável às lutas sociais de comunidades, favelas e populações tradicionais em defesa desses direitos, como denuncia o caso de constrangimento promovido pelo Exército contra a jornalista Camila Marins, o cartunista Carlos Latuff e o fotógrafo Naldinho Lourenço, no dia 10 de maio, no conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, realidade enfrentada cotidianamente pelos moradores.
De acordo com o relato de Marins e Latuff – a narração a seguir é baseada em texto de denúncia feito por ambos –, quando perceberam o início de uma ação militar de abordagens a moradores, ambos começaram a fotografar. No mesmo momento, foram abordados por militares. Um deles, com tom intimidatório, alertou: “Vocês têm autorização? Sem autorização está proibida a cobertura. Vocês precisam ser conduzidos ao CPOR [Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Rio de Janeiro] para explicar o motivo de cobertura e pedir autorização!”. Os comunicadores não recuaram diante da abordagem. Alegaram falta de fundamentação legal para serem conduzidos ao CPOR e ainda prestarem justificativas para realizarem a cobertura. Um dos militares assentiu e liberou os três.
O texto finaliza com uma defesa da comunicação como base para uma sociedade democrática: “qualquer tipo de impedimento, obstáculo ou violência a esses trabalhadores significa um atentado à democracia e à liberdade de imprensa. O fato de ‘ter que pedir autorização’ para exercer o jornalismo é um retrocesso aos tempos mais sombrios deste país. Mais do que isso, é dever e função social do jornalista acompanhar as ações do Estado e reportar à sociedade seus respectivos abusos. Diante do exposto, solicitamos esclarecimentos do Comando Oficial do Exército, do Ministério da Justiça e do Ministério da Defesa sobre a tentativa de coibir o exercício profissional”.
Atingidos pela Copa defendem democratização da comunicação
Também no Encontro de Atingidos pela Copa, que contou com pessoas que tiveram direitos violados pelas Olimpíadas e por megaempreendimentos, a democratização da comunicação foi reivindicada como um dos temas prioritários dos movimentos, na Carta aprovada ao final do evento. O documento defende a comunicação como direito humano, critica o “oligopólio dos meios” e denuncia a mídia como reforçadora do “extermínio da população negra com a criminalização da pobreza”. Enquanto isso, aponta o texto, “as reais consequências da Copa da Fifa no Brasil são ocultadas”.
Além da invisibilidade dos efeitos negativos da Copa, inclusive das mortes de 9 operários que trabalhavam na construção dos estádios, os participantes criticaram a representação social estereotipada dos moradores das comunidades atingidas pelas remoções e dos demais ativistas que protestam contra o evento. O manifesto dos (as) Atingidos (as) finaliza reivindicando a construção de um novo marco regulatório para as comunicações, o que inclui a revisão da atual legislação das rádios comunitárias, “para que, de fato, a comunicação seja um direito humano, que vocalize a realidade do povo brasileiro e que seja diversa, popular e emancipadora. Defendemos o respeito aos midiativistas e à imprensa popular e independente”.
A chamada “Copa das Copas”, de fato, também tem efeitos discutíveis para a comunicação comunitária. De acordo com o capítulo brasileiro da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc Brasil), no caso das rádios livres e comunitárias sem outorgas, a realização do megaevento “vai trazer mais repressão”. Conforme já noticiado neste blog, em comunicado oficial enviado às organizações que trabalham com comunicação comunitária, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) anunciou que vai reforçar a fiscalização para “garantir a viabilidade das comunicações para a Copa do Mundo de 2014”.
A Amarc denuncia que a agência “pretende silenciar o direito à comunicação no ar para garantir o ‘bom’ funcionamento da grande mídia”. Como resposta, a associação promove, desde o dia 28 de abril, a campanha “Rádio Vs. Futebol – quem ganha a Copa Antidemocrática?”. A regra, de acordo com o site, é a seguinte: a cada semana, um autor expõe argumentos sobre os déficits democráticos do Futebol, enquanto outro responde com críticas ao rádio. A iniciativa é aberta à participação e pode ser acompanhada pelo site http://radiofutebol.amarcbrasil.org/.
Pela liberdade de organização, de manifestação e de expressão
É frente a essa gama de questionamentos que um conjunto de movimentos se articula para o 15 de Maio de 2014 (#15M), Dia Internacional de Lutas contra a Copa, inspirados pelo Encontro Nacional dos Atingidos(as) por Megaeventos ocorrido em BH entre 1º e 3 de maio de 2014. Movimentos e organizações sociais, militantes e pessoas críticas aos megaeventos e aos megaempreendimentos que violam direitos estarão nas ruas, segundo o chamado da Ancop, contra as distintas violações da Copa e das Olimpíadas e em repúdio a todos os processos que hoje levam à tentativa de construção de um projeto de cidades cada vez mais excludentes e privatistas.
O outro lado está preparado. A um mês da Copa do Mundo, um levantamento “exclusivo” feito pelo Exército a pedido do portal G1 mostra que, desde a Copa das Confederações, em junho do ano passado, as polícias militares reforçaram o estoque das armas denominadas de “não letais”. De acordo com a matéria, “entre junho de 2013 e abril deste ano, os órgãos de segurança pública do Brasil compraram mais de 270 mil granadas e projéteis de gás lacrimogêneo e de pimenta, além de 263.088 cartuchos de balas de borracha de vários tipos e modelos”. Essa munição seria suficiente para fazer mais de 819 lançamentos de granadas de gás e 797 disparos de balas de borracha por dia nos últimos 11 meses.
As informações deixam claro também o aumento da compra de armamento devido ao medo, pelos governos, de uma nova onda de manifestações durante a Copa. Desde junho de 2013, foram adquiridas pelas PMs 113.655 granadas de gás lacrimogêneo e 21.962 granadas de pimenta, cuja maioria foi adquirida nos primeiros meses de 2014. Foram comprados 134.731 cartuchos de gás de diversos calibres, que são lançados a uma longa distância para evitar que os policiais cheguem muito perto das pessoas. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, fez três pedidos de armas não letais, totalizando 12.700 sprays de pimenta, tanto em gel quanto em espuma. O arsenal inclui ainda bombas com carga tríplice de lacrimogêneo.
Apesar das ameaças, tem crescido o sentimento crítico ao modo como a Copa foi organizada no Brasil, seja pela violação de direitos ou pelo que significa em termos de prioridade política e orçamentária, em um país com tantas necessidades. Por isso, o chamado para o 15M já se espalhou pelo país. Além de um ato nacional, Rio de Janeiro, DF e Entorno, São Paulo, Porto Alegre,Salvador, Curitiba, Vitória, além de outras cidades brasileiras, e inclusive Santiago do Chile.
* Daniel Fonsêca é jornalista, integrante do Conselho Diretor do Intervozes e doutorando em Comunicação na ECO/UFRJ
Fonte: Carta Capital
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