No Egito, a Primavera Árabe acabou. Há três anos, milhões foram às ruas do país exigir mais liberdade e melhores condições de vida, mas, hoje, a possibilidade dessas demandas serem contempladas evaporou. Nos últimos três dias, um referendo disfarçado de eleição coroou o marechal reformado Abdel Fattah al-Sissi no cargo de presidente. O militar se apresenta como a solução dos problemas do país, mas sua chegada ao poder representa o início da reconstrução do regime que pareceu ter sido derrubado em 2011. A partir de agora, a ditadura egípcia terá uma configuração diferente, mas seguirá carregando dentro de si os germes da instabilidade: o autoritarismo e a impossibilidade de lidar com os graves problemas econômicos do país.
Para entender o significado da troca de poder no Egito é preciso observar em perspectiva a história recente do país, e o papel crucial desempenhado nela por Sissi.
Ao contrário do que as Forças Armadas do Egito fizeram parecer em fevereiro de 2011, a saída de cena de Mubarak não foi resultado da pressão popular iniciada em 25 de janeiro, ou não apenas dela. Antes de a Primavera Árabe ter início, existia uma crescente animosidade entre os militares e uma nova geração do Partido Nacional Democrático (NDP, na sigla em inglês), responsável por sustentar Mubarak. Dentro do NDP, vinha ganhando poder Gamal Mubarak, filho de Hosni. Civil e aliado a empresários, Gamal não era bem visto pelos militares. Reformas neoliberais realizadas com a anuência de Gamal causavam preocupação nos militares, pois, ao favorecer seus aliados com a abertura econômica, o filho de Mubarak ameaçava o império econômico das Forças Armadas, que pode chegar, segundo estimativas não oficiais a 40% do PIB do Egito.
A Primavera Árabe apenas adiantou a cisão entre a família Mubarak e os militares. Reportagem publicada pelo jornal The New York Times no último dia 24 deu força à hipótese de que a queda de Mubarak foi um golpe palaciano. De acordo com o jornal, há anos os militares vislumbravam grande instabilidade política caso Mubarak levasse a cabo a ideia de realizar uma sucessão hereditária na presidência, deixando o cargo para Gamal. Os militares, então, tirariam seu apoio do presidente e assumiriam o poder. A surpresa da “Primavera” veio antes e adiantou a entrada em prática da estratégia. Mas quem foi o arquiteto do abandono a Mubarak? De acordo com o NYT, o próprio Abdel Fattah al-Sissi, então chefe da inteligência militar.
Uma vez derrubado Mubarak, os militares assumiram o poder, por meio do famigerado Conselho Supremo das Forças Armadas, conhecido pelo acrônimo em inglês SCAF. Logo ficou claro que o fardo de governar seria demasiado para os militares, e faria com que eles perdessem parte do imenso apoio que desfrutavam no período anterior. Para evitar isso, os militares buscaram um parceiro político que pudesse assumir o governo. A opção escolhida foi a Irmandade Muçulmana, movimento político-religioso que de fato chegou ao poder no Egito em junho de 2012, com Mohamed Morsi, primeiro presidente eleito democraticamente na história do país.
O governo de Morsi foi caótico. Conseguiu unir contra quase todos os setores da sociedade. Em recente palestra no instituto Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, o cientista político Ashraf El-Sherif, da Universidade Americana do Cairo, deu uma explicação bastante didática sobre como funciona o Egito. Não há, na verdade, um Estado. Há diversas fatias do que deveria ser o Estado egípcio, que funcionam de forma autônoma. Entre elas estão as Forças Armadas; o Ministério do Interior, que controla a polícia; o Judiciário; a imprensa, estatal e privada; os empresários, alguns bilionários; e o establishment oficial religioso, tanto muçulmano quanto cristão. Incompetente e polarizadora, a Irmandade atraiu a fúria de todos esses setores no ano em que esteve no poder. Em 3 de julho, Morsi foi derrubado. Mas quem levou a cabo sua retirada do poder? O mesmo Abdel Fattah al-Sissi, que no fim de 2012, com apoio do próprio Morsi, se tornara o chefe de todas as Forças Armadas do Egito, assumindo o Ministério da Defesa no lugar de Mohamed Hussein Tantawi.
Ao derrubar Morsi, Sissi ganhou papel proeminente. Inicialmente, teve o apoio dos principais atores políticos e sociais do Egito. Ajudava o fato de Sissi ser um líder carismático e poderoso, o que conquistou boa parte da população egípcia, ansiosa por um homem forte que pudesse acabar com a instabilidade política dos três anos anteriores. O passar do tempo, entretanto, mostrou qual era o objetivo de Sissi. O atual período de transição virou um banho de sangue.
Em agosto de 2013, com a anuência das Forças Armadas, a polícia egípcia realizou dois massacres no Cairo, nas mesquitas al-Nahda e Rabaa al-Adawiya. Cerca de mil adeptos da Irmandade Muçulmana que protestavam contra o golpe foram assassinados. Desde então, a mídia lançou uma campanha de contornos fascistas contra os irmãos muçulmanos e o movimento sofre uma perseguição que supera em volume e violência as ocorridas sob os três ditadores anteriores, Gamal Abdel Nasser, Anwar Sadat e Hosni Mubarak. Há diversos jornalistas, inclusive estrangeiros, presos há meses acusados de serem simpáticos à Irmandade. Na Península do Sinai, fronteira com Israel, a população tem passado 12 horas por dia sem internet e celular enquanto militares e policiais caçam jihadistas. A repressão se estendeu também a grupos seculares e liberais, como o movimento pró-democracia 6 de Abril. De acordo com um levantamento recente, entre o golpe de 3 de julho e o último dia 15, mais de 41 mil pessoas foram presas ou processadas no Egito.
O autoritarismo de Sissi fica evidente também em suas recentes aparições públicas. Ao ser entrevistado na tevê pelo apresentador Ibrahim Eissa, Sissi admoestou o jornalista afirmando que não permitiria que ele usasse novamente um termo derrogatório para se referir ao Exército. Em encontro com cerca de 20 editores dos principais veículos egípcios, Sissi afirmou que a prática de liberdades deve ser contrabalanceada com a segurança nacional. Segundo ele, a mídia deve atuar para proteger o “objetivo estratégico” de “preservar o Estado egípcio”. Sissi avaliou as reivindicações populares e protestos como ameaças à segurança nacional e disse crer que a democracia é um “ideal” a ser consolidado daqui a 25 anos.
Além de autoritário, Sissi parece extremamente incompetente. Ele não tem um plano econômico para resolver os enormes problemas do Egito. Duas das propostas que se “destacaram” em seus discursos nas últimas semanas mostram isso. Uma delas é distribuir veículos para que jovens agricultores vendam vegetais nas ruas. A outra é distribuir 300 mil lâmpadas econômicas (em um país de 90 milhões de habitantes) para aliviar os problemas crônicos de falta de energia no Egito, que provocam blecautes diários.
Sissi não assumiu o poder para levar democracia ou melhorias econômicas à massa egípcia. Sua prioridade é reconstruir o antigo regime, sem a família Mubarak, que segue fora de cena. Reportagem do jornal britânico The Telegraph revelou nesta semana que diversas figuras do governo Mubarak estão assumindo postos importantes. O atual primeiro-ministro, Ibrahim Mehlab, que deve ser mantido no cargo por Sissi, era integrante do NDP, o partido de Mubarak, e presidente da empreiteira estatal egípcia. O novo chefe da inteligência militar é Mohammed el-Tohamy, demitido por Morsi por proteger Mubarak enquanto era chefe da agência anti-corrupção.
Sissi está claramente encantado pelo poder. Ele se vê como unanimidade, impressão longe de ser real. A eleição presidencial estava marcada para segunda-feira 26 e terça-feira 27, mas, em um ato que transpareceu desespero, foi estendida também para a quarta-feira 28, depois que ficou claro o baixo nível de comparecimento às urnas. Uma pesquisa do instituto norte-americano Pew deu sinais mais claros de como é dividida a sociedade egípcia. Um ano após o golpe contra Morsi, 43% dos egípcios ainda dizem se opor à derrubada, e 45% afirmam ter visão negativa de Sissi. O nível de insatisfação com os rumos do país é de 72%, superando o registrado no fim de 2010, antes da Primavera Árabe. O levantamento também mostrou que apenas 56% avaliam como positiva a influência dos militares no Egito, antes 73% em 2013.
A dura repressão e os alertas sobre protestos são uma tentativa do novo ditador de castrar a sociedade e evitar a instabilidade que abalou o regime Mubarak. Ocorre que a insatisfação não pode ser contida com repressão. A continuação da falta de liberdade e das péssimas condições econômicas voltará a ser prioridade para os egípcios quando o período de transição acabar. Como ocorreu com Mubarak, com o regime militar que se seguiu a ele e com Morsi, o alvo da indignação será o governo. Sissi aposta no terror que impõe à população, mas se há algum legado positivo da Primavera Árabe no Egito é a perda do medo da população. Este gênio está fora da garrafa, e voltará para cobrar Sissi.
Fonte: Carta Capital
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