Nas últimas semanas ocorreram dois julgamentos simbólicos contra a violência no campo no Pará. Primeiro, o fazendeiro que mandou matar Dézinho, líder sindical em Rondon do Pará. O segundo terminou na madrugada da sexta-feira passada e condenou o fazendeiro e o capataz (escapou da punição o gerente e os pistoleiros) que mataram cinco trabalhadores rurais no que ficou conhecido como Chacina da Fazenda Princesa. Os crimes eram antigos, mas permaneciam bastante vivos no clima de terror em Marabá e no sul do Pará. Revendo erros grosseiros anteriores, dessa vez, o poder Judiciário decidiu punir os mandantes de crimes violentos na Amazônia que até hoje estavam impunes. Pode ser justiça tardia para os familiares mas, como destaca o frei Henri des Roziers, da Comissão Pastoral da Terra, são julgamentos históricos como crimes contra a humanidade: "Para a memória da história de um povo, está dito, julgado e condenado: foram crimes graves que não vai cair no esquecimento. Isso é muito importante."
No último dia 30, o Tribunal do Júri do Pará condenou a 12 anos de prisão fazendeiro Décio José Barroso Nunes, o Delsão, culpado pelo crime de homicídio duplamente qualificado de José Dutra da Costa, o Dézinho, então presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará, em 2000, quando foi morto por pistoleiros.
Enquanto na madrugada de sexta-feira 9 de maio terminou o julgamento da Chacina da Fazenda Princesa. O caso levou 29 anos para chegar ao Juri, o que rendeu até um processo, contra o Brasil, na Organização dos Estados Americanos. O julgamento foi presidido pelo juiz Edmar Pereira e, por maioria de votos, os jurados condenaram o fazendeiro Marlon Lopes Pidde, 65 anos, junto de seu capataz, Lourival Santos da Rocha, por participação na morte dos agricultores Manoel Barbosa da Costa, José Barbosa da Costa, Ezequiel Pereira da Costa, José Pereira de Oliveira e Francisco Oliveira da Silva. A pena fixada para cada réu foi de 130 anos de reclusão e será cumprida em regime inicial fechado. O crime ocorreu no dia 27 de janeiro de 1985, na sede da fazenda Princesa, posteriormente Califórnia III, em Marabá, motivado por disputa de terra.
O mérito dessas duas importantes vitórias contra a reinante impunidade se deve ao esforço dos movimentos sociais, da Comissão Pastoral da Terra e da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH). Foi a atuação insistente dessas entidades que tirou os processos da gaveta quando já se preparavam para serem fúnebremente enterrados nos tribunais. Eram casos emblemáticos para o mítico sul do Pará, uma das regiões mais violentas do Brasil.
Região de "expansão da violência"
"A condenação desses dois casos tem um valor simbólico muito forte para os trabalhadores rurais da região e o combate da impunidade, analisa José Batista, advogado da CPT. "São figuras muito emblemáticas de poder econômico e influências politicas muito forte e, de certa forma, também é um passo muito importante na luta de enfrentamento ao latifúndio e os direitos dos camponeses."
Uma série de projetos de "aceleração do crescimento" atualmente em curso tem provocado uma inúmeros conflitos sociais e ecológicos por toda Amazônia. Para Batista, trata-se de uma região de expansão da violência, como tem sido registrado nos últimos relatórios anuais da CPT. "Em função da expansão dos grandes empreendimentos em direção a Amazônia. Nessa região em razão dos empreendimentos minerais, duplicação da ferrovia, expansão da ferrovia, hidrovia Araguaia-Tocantins, usina de Marabá. Esses mega-projetos criam conflitos com comunidades que já residem por aqui, posseiros e assentados, e além dos conflitos tradicionais a relação aos proprietários de terra. de forma que torna a região palco permanente de conflitos relacionados a questão do campo."
Os dois julgamentos foram tensos, com ameaças às testemunhas e várias tentativas de intimidações. Essa é a razão pela qual ambos foram transferidos de Marabá e de Rondon do Pará para Belém. Ano passado, durante o julgamento do assassinato dos extrativistas e ambientalistas José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva também ocorreram ameaças a testemunhas. Tanto é que, em Marabá, o resultado foi a condenação dos pistoleiros e a liberdade ao acusado de ser o mandante.
Os familiares das vítimas Zé Cláudio e Maria aguardam um novo julgamento para os próximos meses, solicitado pela acusação para que ocorra, também, em Belém. Eles lançaram uma campanha on line para arrecadar recursos e organizar protestos e mobilizações na luta por justiça.
A distância geográfica entre o local do julgamento e dos crimes foi fundamental para quebrar a impunidade. Segundo Batista, da CPT, caso Delsão tivesse sido julgado em Rondon do Pará, certamente ele teria sido absolvido. Em Belém, os jurados o condenaram. A esperança é que o próximo júri do acusado de ser o mandante do assassinato de Zé Cláudio e Maria, o fazendeiro José Rodrigues, também ocorra em Belém, o que permitiria um distanciamento das pressões locais para os jurados.
Todos esses casos de conflitos por terra se encaixariam no que a organização inglesa Global Witness definiria como defensores da terra e do ambiente. Dézinho defendia a reforma agrária e a agricultura familiar numa região dominada por madeireiros, carvoarias, pecuária e soja. No caso brutal chacina da Fazenda Princesa, de acordo com informação do Tribunal de Justiça paraense, os agricultores receberam lotes de terras do Grupo Especial Araguaia Tocantins para assentamento, mas o fazendeiro considerava sua a propriedade que estaria sendo invadida. A acusação comprovou o motivo do crime foi o conflito de terra, cometido pela vontade do fazendeiro em expulsar os posseiros com violência. Um crime social, e também ecológico, pois, segundo a promotoria, "deixam para nós somente o desmatamento, e dão como troco para somente a bala, querem resolver tudo na bala".
Em razão do fazendeiro ser considerado um "homem influente na região", o julgamento foi desaforado de Marabá para Belém visando a segurança e isenção dos jurados. Marlon Pidde, com quatro advogados, recorreu até a última instância para manter o júri em Marabá. Mesmo distante, seu poder econômico produzia resultados jurídicos. Ao longo dos anos houve, inclusive, um delegado que foi até Goiânia, quando o fazendeiro vivia por lá, para prendê-lo, mas que no final não o prendeu. A questão colocada era se havia ocorrido corrupção ou extorsão. O fazendeiro negou, mas sua resposta levantou suspeitas: "eu, pessoalmente, não paguei nada para ele. Ele conversou com o meu advogado."
Marlon trabalhava com ouro em Serra Pelada, e possuía diversas fazendas onde investia seu lucro. Algumas eram gigantes, tão grandes que ele mesmo possuía dificuldades em precisar os tamanhos. Ele nunca viajou de carro (picape) entre Califórnia II e a Princesa (antiga Califórnia III) em razão da distância: "de carro era um dia ou mais de viagem, sempre fui de avião, mais ou menos uma hora", explicou.
A chacina não visava apenas eliminar aqueles que ocupavam as terras, mas criar um clima de terror, um ambiente de morte, intimidador. Foi friamente calculada, e levou mais de um dia para se produzir. A crueldade e a covardia, que poderiam ser esquecidas da memória coletiva, como pontuou Frei Henri, agora está registrada como fato para a história. para não ser esquecida.
Crime brutal
Os corpos foram encontrados com as cabeças flutuando no rio Itacaiúnas. Estavam amarrados com cordas de náilon. Um dos chapéus havia sido queimado na cabeça de um dos agricultores. As famílias tiveram barracos queimados. Um dos mortos foi amarrado em um tronco de laranjeira, conforme contou uma das testemunhas. As vítimas teriam sido atraídas para a fazenda, supostamente, para negociar com uma juíza que estaria lá para o fim do conflito. Mas foram "atraídos para o abate", conforme a acusação.
Três pistoleiros foram contratados para o serviço. Lourival Santos da Rocha era o capataz da fazenda, e teria servido para a "atração" das vítimas, enquanto José Gomes, que escapou pela prescrição, era o gerente. O fazendeiro foi descrito pela acusação como temido. Os assistentes de acusação, junto do Ministério Público, conseguiram reconstruir o contexto e as evidências do crime, driblando a estratégia da defesa em insistir na falta de testemunhas do crime ou imagens ou cenas das mortes – um "BigBrother" do crime, como classificou a acusação. As contradições da defesa teriam contribuído para a comprovação do crime, que teria ficou comprado, para os jurados, através da reconstrução lógica dos fatos apresentados.
No mesmo ano da chacina da Princesa, ocorreram no sul do Pará as seguintes chacinas: Dois Irmãos, com seis mortos, e Surubim, com 17 mortos, ambas em Xinguara; a chacina Ingá, em Conceição do Araguaia, com 13 mortos; e a chacina Fazenda Ubá, em São João do Araguaia, com 13 mortos. Também foi assassinatos o sindicalista João Canuto e a irmã Adelaide Molinari.
Em Paris, onde recupera-se de problemas de saúde, o Frei Henri des Roziers, da CPT comparou a importância desses julgamentos, tão tardios, com outros em que trabalhou diretamente, assim que chegou no sul do Pará no início dos anos 1990. Na época, após uma sequencia de assassinato de presidentes do sindicato de Xinguara, com a morte de Expedito Ribeiro, a ideia era movimentar a justiça para quebrar a impunidade e ter um efeito dissuasivo sobre a violência reinante. "Como as investigações e o julgamento ocorreram logo após o crime, isso teve um efeito dissuassivo para frear a violência", me contou em entrevista. O fazendeiro Jerônimo Alves de Amorim foi condenado em 200, pela morte de Expedito Ribeiro. E Vantuir de Paula e Adilson Laranjeiras, pela morte de João Canuto, foram condenados em 2003.
No entanto, o efeito dissuasivo foi passageiro. Como classifica o advogado Batista, o Pará segue uma "região de expansão da violência" – ao mesmo tempo em que essa área é uma região de expansão do capitalismo. Ou seja, a conexão entre capitalismo, modernização e violência, tão evidente em termos teóricos, é sentida diretamente no Pará.
Os casos recém julgados apesar de chegarem com tanto atraso, são muito importantes, segundo Roziers, "emblematicamente". Ele compara com crimes da Ditadura. "É extraordinário que, depois de tanto tempo, ainda tenham sido julgados. São crimes contra a humanidade, como a Ditadura, o genocídio. Não importa quanto tempo leva, é preciso que seja julgado, que seja dito que é um crime contra a humanidade. Na história, vai ficar registrado como um crime muito grave", comenta.
Segue Roziers:
"Em crimes contra a humanidade pode acontecer que o condenado, estando muito velho, não vá à prisão. Mas o crime é condenado na história. Esses dois julgamentos foram históricos, reconhecidos oficialmente na história, e pelo direito, que foram muito graves e foram condenados. Importa menos que seja executada a sentença. O fato está dito. Para a memória da história de um povo, de uma geração: foi um fato, foi julgado e condenado. Para a memória coletiva. Um crime grave que não vai cair no esquecimento. Mesmo tanto tempo após, mesmo que não vão prisão, foi condenado"
Fonte: Carta Capital
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