'A Memória de Todos Nós' nasceu a partir de seminário promovido entre novembro de 2011 e janeiro de 2012 para tratar dos temas memória e justiça
A memória capaz de iluminar o presente é a luz que orienta e conduz os que sobreviveram a uma ditadura. Adolfo Pérez Esquivel está entre aqueles que se recusam a esquecer. Em 1977 foi trancafiado num dos calabouços destinados pelo governo argentino aos presos políticos. Após um mês à mercê de homens enfastiados com a rotina de torturar veio a temida ordem. Um camburão o levaria a um avião. Sabia seu destino, juntar-se às águas do Rio da Prata. Num átimo, tudo mudou, seria conduzido a uma prisão de segurança máxima.
Esquivel sobreviveu ao voo da morte, prática macabra adotada pela ditadura argentina. Não esquece a noite fria de 5 de maio de 1977, quando o carcereiro o fez sair do calabouço da Superintendência de Segurança Federal. Cada detalhe sórdido ficou impresso de forma indelével na alma, conforme relato feito anos depois. “Torno a ver o calabouço com inscrições, palavrões, orações e aquela frase na qual não consigo deixar de pensar, que um prisioneiro ou prisioneira escreveu na parede, com seu próprio sangue: ‘Deus não mata’.”
Além do Nobel da Paz, outros personagens se juntam à narrativa de Eric Nepomuceno, A Memória de Todos Nós, aquela de sobreviventes da ditadura na Argentina, no Chile e Uruguai. O escritor sabe que as histórias não são únicas, compõem um “vasto e perverso inventário das atrocidades padecidas ao longo de décadas de infâmia”. Mas as considera exemplares.
O livro nasce a partir de seminário promovido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, entre novembro de 2011 e janeiro de 2012, para tratar dos temas memória e justiça. “Foi quando conheci a chilena Marcia Scantlebury e o argentino Juan Cabandié. Eu tinha conhecimento da história de Estela de Carlotto e da Associação das Avós da Praça de Maio. São tão impactantes que a escolha foi natural.” Esquivel foi incluído nos relatos por conta de detalhes biográficos pouco divulgados no Brasil. “Quanto a Macarena Gelman, fui muito amigo de seu avô, o poeta Juan Gelman. Durante décadas acompanhei, muitas vezes a seu lado, a história da busca pelo bebê, que não sabia se era neto ou neta, que sua nora teve na prisão antes de ser assassinada.”
Foi num belo fim de tarde, num restaurante com mesas na calçada no Leme, Rio de Janeiro, que Nepomuceno ouviu o relato de Marcia Scantlebury. “Fiquei absolutamente impactado com a doce e suave serenidade com que mencionava o seu calvário de horrores. Senti que assumir o passado, relatar seu mergulho nos campos da morte e voltar inteira era sua força maior.” Scantlebury militou contra a ditadura e se sentia preparada para o que viesse. “Mas o que aconteceu superou até mesmo seus pesadelos mais atrozes.”
A entrada no inferno, a 3 de junho de 1975, vai ecoar para sempre em seus ouvidos . Gritos, gemidos intermitentes, frio congelante. Arrancada de casa enquanto ajudava os filhos a fazer lição, foi levada a Villa Grimaldi, “o centro secreto de torturas mais famoso do Chile”, onde Michelle Bachelet também ficou presa.
A mesma mulher que a torturava com insano empenho certo dia tirou-a da cela e pediu que a ajudasse a tricotar uma peça. Livre da venda, viu que a carcereira esperava um bebê. Das agulhas de ambas sairia uma roupa para o filho da algoz. Foram 23 dias de tortura até a transferência a outra prisão. “Até aquele instante o ódio havia sido apenas um conceito intelectual. E agora eles tinham me feito conhecer a perversa amplidão desse sentimento viscoso que ficou encolhido debaixo da minha pele.” Trinta e seis anos depois daqueles dias de trevas, Scantlebury colocou a pedra fundamental do Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago, criado por ela a pedido de Bachelet. Tudo o que foi negado tanto tempo está lá.
“O museu chileno é referência. Sem memória não há povo, não há nação”, diz Nepomuceno. “No Brasil parece haver uma tendência à amnésia. Interessa a muita gente, e não me refiro apenas aos agentes do Estado, militares, funcionários de forças de segurança, mas também aos que se beneficiaram do regime civil-militar, deixar o passado adormecido. Nas vezes em que conversamos, Esquivel mostrou-se inconformado com a manutenção da lei da anistia, que não faz mais do que, em nome de uma suposta conciliação, assegurar a impunidade de criminosos que atuaram durante o terrorismo de Estado.”
A cada aniversário, Macarena Gelman, outra personagem emblemática, é invadida por uma espécie de culpa. Se está viva é porque sua mãe está morta. As prisioneiras grávidas eram mantidas com vida até o nascimento dos bebês, entregues a famílias de militares. Aos 23 anos soube que não era quem achava que fosse. Quem lhe contou a verdade foi o avô, Juan Gelman. Seu filho, Marcelo Gelman, sequestrado e levado com a mulher a um centro clandestino de detenção em Buenos Aires, foi assassinado semanas depois. María Claudia García foi transferida para o Uruguai, onde Macarena nasceu. A luta da filha é pela verdade, quer localizar os restos mortais da mãe, saber quem a matou.
Juan Cabandié é o neto recuperado de número 77. Até janeiro de 2004 era Mariano Andrés Falco, filho de um policial truculento. A verdade chegou por meio de pistas e graças à ajuda das Avós da Praça de Maio. “Hoje, ele é dono de sua verdadeira história”, diz Nepomuceno acerca do político e ativista pelos direitos humanos. Figura-chave na identificação de netos nascidos em cativeiro é Estela de Carlotto, “um monumento à coragem e à dignidade”. Em 2014, a mulher que luta para devolver às famílias netos desaparecidos conheceu Guido Carlotto Montoya, filho de Laura Carlotto e Walmir Oscar Montoya, seu neto, o número 114 de uma lista de quase 400. O trabalho continua.
Fonte: Carta Capital
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