Boteco Bolivariano
Desviralatizar é preciso
Por Cynara Menezes
Para quem acredita, parece coisa de vidas passadas, mas desde pequenina eu queria ir à Espanha, mesmo sem ter ascendência europeia alguma. Criança no interior da Bahia, comprei um manual de espanhol para iniciantes pelo correio e aprendi as primeiras frases em castelhano. Aos 20 e poucos anos, planejando estudar lá sem saber como (não existia o Ciência sem Fronteiras e o presidente FHC havia cortado todas as bolsas para o exterior), entrei num curso de espanhol no Instituto Cervantes, em Brasília, e me aprofundei no idioma. Hablo bien.
Pisar pela primeira vez no aeroporto de Barajas, em Madri, foi uma emoção indescritível. Eram duas da tarde. Eu tinha feito uma mochila de viagem tão amalucada que faltava sabonete e xampu. Nem mesmo um guia levei, deixei para comprar tudo lá. Mas quando cheguei ao centro da cidade, à vibrante Puerta del Sol, todo o comércio, à exceção dos restaurantes, estava fechado. Não entendi e perguntei para alguém se era feriado. E me responderam que não, que era a hora da siesta. Nunca imaginei que eles realmente levassem a sesta a ferro e fogo, mas levavam. Fechava tudo entre as 14h e as 17h. O tipo de coisa que podíamos ter copiado...
Num 12 de outubro, anos depois, eu voltara a Madri para estudar e caminhava ao lado de um amigo uruguaio na Plaza Colón. Era de fato feriado aquele dia. Falei:
– Que coincidência! No Brasil é feriado hoje, porque é dia de Nossa Senhora Aparecida, mas por que aqui também é?
Ele respondeu:
– É a data do descobrimento da América, ignorante.
De nada adiantou eu falar para ele que ninguém no Brasil lembra que o 12 de outubro é o dia da “descoberta” da América. Não estudamos a história da conquista, desconhecemos este olhar mais abrangente sobre o que forjou nosso continente, olhamos apenas para o “descobrimento” do Brasil, em 22 de abril de 1500. E nosso ponto de vista parte sempre do lado de lá do charco: do europeu descobridor até nós. Meu fascínio pela Espanha obviamente tem muito disso. Logo depois conheci Portugal e também me encantou. A Ibéria-mãe. Já fui à Europa algumas vezes e não saí da Península Ibérica.
Mas, em 1998, ganhei da “Folha de S.Paulo” uma passagem para Nova Yorque e troquei por um bilhete para Recife. Eu tinha 30 anos e jamais na vida pisara em solo pernambucano. Era hora. Voei até Recife e, de lá, emendei Natal, Belém e, na volta, São Luís, tudo de ônibus. Foi incrível. Em Belém tive uma epifania sobre como seria o Brasil se, em vez de se voltar para o Sul e Sudeste, tivesse continuado se desenvolvendo a partir do Norte. No início do século 20, quando o País se volta para São Paulo e recebe imigrantes europeus, vive uma nova colonização e abandona seu futuro mameluco, cafuzo, mulato. Tropical. Seríamos outro Brasil, com certeza.
Aquela ida a Belém, uma metrópole em plena selva, com suas avenidas largas ladeadas por mangueiras, sem dúvida mudou meu foco. Comecei a viajar pela América do Sul, primeiro pela Argentina e depois pela Bolívia. Buenos Aires é incrível, se parece à Europa, mas La Paz é um portal para a América profunda. É numa viagem como essa que você se dá conta da existência de outra perspectiva histórica. E é preciso superar, ou pelo menos apartar um pouco, o fascínio pelo Velho Continente para poder entendê-la. Livrar-se desse vira-latismo intrínseco, buscando sempre respostas para nossas questões não em nós mesmos, no “terceiro” mundo, mas no mundo que se diz civilizado.
Quando meu filho mais velho estava no segundo grau, lembro que eu sempre queria saber se ele já tinha estudado o muro de Berlim, e nada. No terceiro ano, quando perguntei mais uma vez, ele respondeu:
– Como, se é o terceiro semestre em que eu estudo as monarquias portuguesas?
Que absurdo! Pois eu cada vez mais me interesso por olhar nossa história pelo ponto de vista dos “conquistados” e não dos “conquistadores”. Quero saber mais dos “reis” que foram encontrados (e assassinados) na América pelos espanhóis e menos dos reis que fizeram sua glória graças à pilhagem do continente em que vivemos. Quero saber mais dos índios que estavam aqui e dos negros que vieram para cá. Explorar esse legado negligenciado nos livros de escola. México, Peru, Equador, América Central. Angola, Moçambique, Benin. Ainda não fui à África!
Como aquela viagem a Belém prenunciou, um mundo novo se descortinou diante de mim. Lembro que os espanhóis que conheci em Madri falavam Niña, Pinta e Santa Maria ao invés de Santa Maria, Pinta e Niña, como decoramos no colégio no Brasil. É tudo diferente, dependendo do ângulo. Os Goyas, os Velázquez, os Picassos são estonteantes, mas também é preciso ter olhos para ver a coleção de arte erótica pré-colombiana do museu Larco, em Lima, ou os murais de Diego Rivera no Palácio Nacional, na Cidade do México.
Como o racismo, o complexo de vira-latas está impregnado mesmo em quem diz que não o possui. Impossível não se contaminar por séculos de educação dominada pelo opressor, pela história contada sob a ótica dos vencedores. Desviralatizar é um exercício cotidiano que começa por mudar a perspectiva, o olhar, sobre nossas origens. Quanto mais desviralatizarmos, mais perto chegaremos de compreender as soluções que o continente precisa. Soluções próprias, não importadas. Que cabem perfeitamente em nós, não que são ajustadas a nós.
O Brasil e a América Latina têm um futuro brilhante pela frente. Um futuro único, que depende de olharmos menos para a Europa, querida Europa, falida Europa. O modelo europeu nunca serviu para nós, desde que portugueses e espanhóis pisaram aqui pela primeira vez. Um modelo aproveitador, espoliador, pouco condizente com nossas realidades e necessidades, desrespeitoso com nosso povo. O modelo econômico deles não serve para nós; a política migratória deles não serve para nós; o mercado comum europeu não serve para nós.
Sem ressentimentos. Mas só cresceremos valorizando as riquezas e possibilidades que temos, nós próprios, não invejando a civilização alheia.
P.S.: Continuo amando Madri.
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