A frase de um gestor de uma detenção ilustra os problemas dos centros de remoção de imigrantes no Reino Unido
Em um centro de remoção de imigrantes próximo a Oxford, no Reino Unido, N.S.* senta-se em uma sala de visitas projetada de forma acolhedora, com trabalhos artísticos feitos pelos detentos expostos em prateleiras. As pessoas encarceradas no prédio não cometeram nenhum crime. Grande parte delas são solicitantes de asilo que tiveram seus casos recusados e aguardam uma posição final do governo britânico sobre sua deportação. A aparente hospitalidade do local, no entanto, esconde uma série de contradições.
N.S. deixou o Afeganistão ainda adolescente fugindo do Talibã. Ele temia o mesmo destino do pai, que desapareceu após ser forçado a ser juntar ao grupo. N.S. percorreu à pé a maior parte do caminho para a Europa, onde conseguiu o status de refugiado na Itália, em 2014. Detido na Inglaterra desde janeiro deste ano, o tempo é seu maior inimigo. No centro, ele não recebe tratamento para um tumor no cérebro.
Segundo N.S., os médicos do local informaram que não poderiam ajuda-lo. Fornecem-lhe apenas remédios para dormir e comprimidos para as fortes dores que sente. N.S. é um exemplo, entre centenas de imigrantes em situação irregular no Reino Unido, de indivíduos que não deveriam (ou precisariam) estar detidos. É também um entre os inúmeros casos polêmicos registrados em centros de remoção.
Em Yarl’s Wood, o principal centro de remoção de imigrantes para mulheres e famílias do Reino Unido, um cenário assustador foi revelado recentemente pela emissora de televisão britânica Channel 4. Imagens captadas com uma câmera escondida mostram a rotina de abusos no centro (localizado a 80 km de Londres) e flagram um membro da administração expressando sua opinião sobre os detentos: “Eles são animais, insetos. São animais enjaulados. Leve uma vara com você e os espanque”. Em outro momento, um guarda é filmado dizendo que daria “cabeçadas” em uma detenta. Outro oficial confessa ter entrado no quarto de uma detenta sem anunciar apenas para vê-la nua. “O que eu posso fazer se gosto de peitos?”, disse sem saber que era gravado.
Casos de auto-mutilação em Yarl’s Wood são comuns, embora o governo alegue não ter havido nenhum incidente grave deste tipo no últimos dois anos. Entretanto, o Channel 4 obteve um dado chocante por meio da lei de acesso à informação: em 2011 apenas um caso de auto-mutilação foi registrado, contra 74 em 2014. “Estão todos cortando os pulsos. Deixem elas cortarem os pulsos. Eles querem atenção”, uma funcionaria do centro é flagrada afirmando.
A reportagem ainda registra o caso de uma detenta grávida que procura ajuda no centro médico de Yarl’s Wood. Enquanto sangrava, os médicos do local se recusam a chamar uma ambulância.Três horas depois, o socorro é chamado, mas a mulher já havia sofrido um aborto. Embora chocantes, as revelações não são novas. Há oito anos, uma jovem de 13 anos tentou cometer suicídio no local e acabou algemada à sua cama no hospital que a socorreu. Houve ainda inúmeros relatos de organizações de caridade e monitores independentes sobre abuso sexual, auto-mutilação e casos de problemas mentais deixados sem tratamento. Ainda assim, a empresa privada que gerencia Yarl’s Wood (Serco) teve seu contrato de £70 milhões (o equivalente a R$ 325 milhões) renovado por oito anos em novembro de 2014.
Campsfield é um dos centro de remoção de imigrantes do Reino Unido. Foto: Scott Billings / Creative Commons / Flickr
Convocada às pressas pelo Parlamento para prestar esclarecimentos sobre as revelações, a Secretária de Estado, Theresa May, não compareceu à sabatina na House of Commons (o equivalente à Câmara dos Deputados). Coube à sub-secretária de Estado, Karen Bradley, afirmar que o Reino Unido presa pelos direitos humanos e que “estava em cima” da empresa que administra o local. O governo, porém, não anunciou nenhuma investigação própria sobre o caso ou explicou a renovação do contrato da Serco.
Após os episódios recentes, voltou ao debate o questionamento sobre a eficácia dos centros de remoção de imigrantes no país. As imagens do Channel 4 mostram um idoso de cerca de 85 anos detido em Yarl’s Wood. Dúvidas sobre a necessidade de tal detenção são inúmeras. Qual o risco representado por aquele detento à sociedade? Em 2012, entre as 1,8 mil mulheres que solicitaram asilo no Reino Unido e foram detidas, apenas 36% acabaram removidas do país. Sendo assim, organizações como a Women for Refugee Women questionam a necessidade de deter mulheres vulneráveis.
O que diz a legislação?
Legalmente, o Ato de Imigração de 1971 (emendado como ‘IA 1971’) define a maioria dos poderes estatutários para a detenção de indivíduos sujeitos a controles de imigração. A legislação foi completada pelo Ato de Nacionalidade, Imigração e Asilo de 2002, que extende à Secretaria de Estado (Home Office) o mesmo poder de oficiais de imigração para deter pessoas que caiam em algumas categorias. Podem ser detidos aqueles que entrarem no país de forma ilegal ou que sejam suspeitos de entrada irregular; indivíduos que aguardam decisões sobre suas remoções do país; quando há motivo para acreditar que o indivíduo vai falhar em cumprir as condições impostas na autorização temporária de admissão ou liberação; pessoas que permaneceram no país após o vencimento dos vistos; e aqueles que violaram as condições do visto. Migrantes também podem ser detidos até que o Home Office decida se eles podem ou não entrar no Reino Unido. Em 2013, por exemplo, 49% das pessoas detidas eram solicitantes de asilo.
Há, no entanto, restrições para a detenção de pessoas que se enquadrem em categorias excepcionais. Entre elas estão indivíduos que sofram de condições médicas graves ou problemas mentais; que tenham evidências de tortura; mulheres grávidas (a não ser que haja um claro prospecto de remoção antecipada); menores desacompanhados; idosos e pessoas com deficiência.
As detenções para imigrantes no Reino Unido
Atualmente, existem 11 centros de remoção de imigrantes no Reino Unido. Normalmente, a detenção é utilizada para estabelecer a identidade do detento ou a base para o seu pedido de asilo, entre outros motivos. Por outro lado, não há tempo limite para que os imigrantes possam ficar detidos. Um ponto fortemente criticado em um relatório publicado no início de março por uma comissão de parlamentares de grupos de migração e refugiados da House o Commons.
O inquérito, que avaliou evidências apresentadas por mais de 200 indivíduos e organizações, incluindo ex-detentos, o ministro para Imigração, acadêmicos e caridades, concluiu que o governo britânico têm feito uso excessivo de detenções. Segundo o relatório, o governo ignora a normativa do Home Office que aconselha o uso da detenção de imigrantes de forma “moderada e pelo menor prazo possível”.
O Reino Unido é um dos poucos países no Conselho Europeu a não ter um limite de tempo para a detenção de imigrantes. Na Irlanda, o tempo máximo é de 21 dias, enquanto a França adota 45 dias, por exemplo. O relatório sugere que o governo adote um prazo de 28 dias e que a detenção seja usada como “último recurso”, dando preferencia a medidas“alternativas”. As medidas mais populares consistem em obrigar imigrantes em situação irregular a se reportarem às autoridades a dentro de um determinado período de tempo ou no uso de monitoramento eletrônico. Segundo o ministro para Imigração, cerca de 60 mil pessoas precisam se reportar no Reino Unido, com um custo de £8,6 milhões por ano (cerca de R$ 40 milhões). Em uma escala semanal, cerca de 95% deles comparecem aos seus postos de reportagem. Existem ainda 500 pessoas com monitoramento eletrônico a um custo mensal de £515 cada (R$ 2,4 mil). Os valores ainda são consideravelmente menores comparados ao custo de manter um detento.
Ainda assim, nas últimas duas décadas, a capacidade dos centros de detenção no Reino Unido aumentou exponencialmente. Em 1993, havia 250 vagas disponíveis, contra as 2,6 mil ao final de 2009. Em 2015, há capacidade para deter 3,9 mil pessoas, além de planos para mais expansões.
Neste cenário, o relatório dos parlamentares destaca a falta de acesso adequado à saúde nos centros de detenção. Um agravante, aponta o inquérito, é a detenção elevada de pessoas com problemas mentais sem levar em consideração que muitos destes detentos passaram por experiências traumáticas no passado. Logo, a detenção não seria a opção mais adequada. O mesmo vale para vítimas de tráfico de internacional de pessoas e de tortura, que acabam detidos quando há outros mecanismos mais adequados para o seu monitoramento.
Os parlamentares ainda se mostraram preocupados com a falta de preparo dos profissionais de saúde das unidades médicas dos centros de remoção, que “não aparentam ter os recursos ou treinamento para identificar e tratar problemas mentais na detenção”. Um problema que pode ter grande impacto na vida dos detentos, uma vez que a legislação determina que as detenções tenha um centro médico responsável pela saúde mental e física dos detentos. Além disso, os integrantes da equipe “devem prestar atenção especial à necessidade de reconhecer condições médicas que podem ser encontradas” entre os indivíduos detidos e “reportar ao gerente” problemas graves para a saúde de algum detento que possam ser causados “pela detenção contínua ou pelas condições da detenção”. Logo, com profissionais não qualificados para identificar casos de potencial risco à vida dos detentos, a legislação tende a não ser cumprida, deixando os detentos expostos a riscos desnecessários.
N.S. é um exemplo de como os detentos têm enfrentado problemas para acessar um nível adequado de tratamento de saúde. Ele não é o único. Em 2012, a equipe médica de centro de remoção em Londres foi considerada parcialmente responsável pela morte de paquistanês detido no local por um inquérito de juri. O detento sofreu um ataque cardíaco, mas o centro falhou em chamar uma ambulância à tempo de prestar socorro, em realizar massagem cardíaca e em ter um desfibrilador em funcionamento no local. O companheiro de quarto do paquistanês soou o alarme de emergência do quarto dez vezes em quase duas horas antes de receber ajuda.
Embora sejam uma ferramenta útil para garantir a checagem da identidade de indivíduos suspeitos de representarem risco à sociedade, é preciso evitar a banalização do uso da detenção e sua transformação em um mero procedimento administrativo. A utilização moderada e com prazo limitado destes centros pode satisfazer as preocupações de segurança do governo ao mesmo tempo que garante a integridade física e mental de indivíduos que não cometeram crimes, mas encontram-se em situação de imigração considerada irregular pelas autoridades britânicas. Além disso, é preciso coibir os abusos cometidos pelos agentes e administradores de centros de detenção, considerando acima de tudo se há de fato benefícios em privar indivíduos de sua liberdade enquanto há alternativas mais eficientes e baratas de monitoramento.
Este artigo é o primeiro de um especial sobre os centros de remoção de imigrantes no Reino Unido. O próximo texto discutirá os casos de abuso sexual, auto-mutilação e detenção de vítimas de tortura e tráfico internacional de pessoas nestes centros.
*O nome do refugiado foi preservado por motivos éticos.
Fonte: Carta Capital
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