Conheça a história da localidade de Iguala, no México, onde 43 estudantes foram massacrados pelo narcoestado, o que desencadeou protestos no mundo todo.
O estado mexicano vive uma profunda crise desde o último 26 de setembro. Milhões de cidadãos indignados, em sua grande maioria jovens, exigem, nas escolas, nas ruas e nas redes sociais, a renúncia de Enrique Peña Nieto. O governo federal navega sem bússola. Sua estratégia parece consistir em ganhar tempo, esperar que a maré do descontentamento baixe e um milagre aconteça. Enquanto isso, uma parte importante do mundo empresarial e da classe política clamam por uma saída repressiva.
A crise foi desencadeada por um fato inesperado. Em 26 de setembro, a polícia municipal de Iguala, em Guerrero, atacou selvagemente um grupo de 80 alunos da escola Normal Rural de Ayotzinapa. Literalmente, foram caçados como coelhos. Atiraram neles à queima roupa sem qualquer advertência, foram detidos e depois desapareceram. Um dos jovens foi torturado, teve olhos arrancados e o rosto esfolado.
Até a presente data, apesar das diversas versões oficiais preliminares que mostra que os desaparecidos foram entregues pela polícia ao grupo criminoso Guerreros Unidos, que teria assassinado, queimado e atirado suas cinzas em um rio, o paradeiro deles é desconhecido.
Quatro fatos associados entre si nos permitem explicar o por que do massacre. A estigmatização dos estudantes normalistas rurais e os de Ayotzinapa em particupar, a impunidade generalizada vigente no estado de Guerrero, que levou ao assassinato e ao desaparecimento de lutadores sociais sem que os responsáveis tenham sido castigados, o clima criminoso em que diversas gangues disputam centros de produção e mercado de drogas e a existência de um estado do narcotráfico, um “narcoestado”.
Os alunos de Ayotzinapa eram jovens, em sua maioria filhos de famílias camponesas, estudantes de uma escola normalista do campo. Por isso desapareceram de maneira forçada e foram assassinados. Defendiam a educação pública, o normalismo rural, o ensino à serviço dos mais necessitados e a transformação social do país. Por isso foram sequestrados e executados.
A falta de capacidade governamental para esclarecer os fatos e a impunidade com que os políticos envolvidos foram protegidos neste caso provocaram uma onda de raiva por todo o país. A agressão aos estudantes foi a gota que transbordou o copo de uma cidadania assolada pela violência. Nos últimos 8 anos, em meio a uma guerra contra as drogas, foram assassinadas cerca de 120 mil pessoas e desapareceram 30 mil, em sua maioria, jovens.
Os fatos sacudiram a opinião pública em todo o mundo. A Casa Branca, o Papa Francisco e até a União Europeia se posicionaram sobre o assunto. A imagem do presidente Peña Nieto, que havia adquirido notoriedade mundial ao impulsionar com êxito – ainda que sem consenso social – um novo ciclo de reformas neoliberais – especialmente a privatização da indústria do petróleo – e se apresentava como um “grande estadista” se esfacelou. Os esforços de seus sócios comerciais para salvá-lo naufragraram.
O narcoestado
No dia do ataque aos jovens estudantes, María de los Ángeles Pineda de Abarca, presidenta de uma instituição pública municipal encarregada de proporcionar assistência social às famílias, prestou seu relatório de atividades. Além de ser a esposa do prefeito José Luis Abarca Velázquez, era uma das principais aspirantes à prefeitura para 2015, figura de enorme influência política e integrante de uma família ligada ao tráfico de drogas.
O prefeito José Luis Abarca Velázquez, um dos personagens apontados como responsável pelo crime, passou de um modesto vendedor de chapéu a joalheiro, dono de um shopping center e abastado comerciante. Sua fortuna lhe permitiu financiar em 2011 uma opulenta campanha eleitoral favorável ao atual governador afastado, Ángel Aguirre Rivero e, um ano depois, financiar sua própria.
Abarca conquistou a candidatura da prefeitura com golpe de talão de cheque. Depois de uma rápida disputa interna, o centro-esquerdista Partido da Revolução Democrática (PRD) não teve restrição alguma ao incorporá-lo às suas listas, apesar de sua reputação como amigo de alguns dos mais importantes traficantes da região. De imediato, somou-se às fileiras da Nova Esquerda, principal corrente do PRD e principal responsável por sua aproximação do governo de Peña Nieto.
Desde sua chegada ao governo local, José Luis Abarca foi acusado de corrupção, nepotismo e autoritarismo. Em 30 de maio de 2013, oito membros da Unidade Popular de Iguala, organização oposicionista, foram levados por um comando. Três deles foram executados.Nicolás Mendoza Villa, um dos sequestrados, que conseguiu escapar, acusou diretamente o prefeito dos fatos e de ter condenado à morte pessoalmente o dirigente do Arturo Hernández Cardona, com um tiro de escopeta no rosto e outro no peito, depois de dizer: “Por que você está reclamando tanto? Vai ser um prazer te matar”.
Iguala é uma cidade chave no tráfico de drogas. Vale rodeado por nove montanhas na região norte de Guerrero, é ponto de entrada para Tierra Caliente (Michoacán), onde os cartéis produzem droga sintética e cultivam maconha. É também a porta de saída de uma das heroínas mais vendidas no mundo. Ali operam diversos grupos do crime organizado, hegemoneizadas pelo Guerreros Unidos, um dos subgrupos surgidos com a implosão dosBeltrán Leyva.
A guerra dos cartéis pelo mercado tem sido selvagem. Guerreros Unidos está na disputa pelo controle das rotas de escoamento de drogas que ligam os estados do México, Guerrero e Morelos com as gangues Familia e Los Rojos, célula liderada por Leonor Nava Romero, El Tigre, irmão de Jesús Nava Romero, El Rojo, cujo líder era Arturo Beltran Leyva, morto em 2009 em Cuemavaca. O resultado tem sido sangrento.
A disputa em Guerrero faz parte de uma guerra mais geral realizada em território nacional. O escritor italiano Roberto Saviano, conhecido por seus livros sobre o negócio das drogas, assegura que, neste momento, o México é o centro do mundo. É o país que experimenta com mais violência as contradições do capitalismo. O México – diz ele – conta com as organizações criminosas mais poderosas e sanguinárias do mundo.
Aqui são feitos negócios com a cocaína no valor de muitos bilhões. O dinheiro é lavado em seguida nos melhores bancos dos Estados Unidos, como comprovaram as investigações realizadas pelas próprias autoridades norte-americanas. O México – sentencia – é como um Estado a mais dos Estados Unidos, mas sem suas leis e suas regras. O crime organizado desfruta aqui de todas as vantagens dos Estados Unidos, mas sem os inconvenientes.
O estado de Guerrero - como outras localidades do país - é um narcoestado. Políticos locais, legisladores estaduais e federais, dirigentes partidários, chefes da polícia e militares estão estreitamente ligados aos grupos criminosos. A narcopolítica não é assunto exclusivo do velho PRI. Integrantes de várias correntes no interior do PRD foram apontados como sendo parte dela. O Presidente do Congresso local, Bernardo Ortega, foi acusado de ser o chefe de uma das gangues, assim como o dirigente estadual do partido. Até o governador afastado foi ligado a esses grupos.
A existência deste narcoestado está associada à impunidade generalizada. Segundo o bispo católico Raúl Vera, que esteve à frente da diocese da cidade Altamirano entre 1988 e 1995, a impunidade é a característica mais marcante de Guerrero e seu maior desafio. Sua extensão e persistência – afirma ele – alimenta o crime a a violação dos direitos humanos e da dignidade.
Escolas normalistas rurais
A escola rural de Ayotzinapa é um centro de formação de professores para comunidades do campo. Fundada em 1926 como parte de uma série de escolas similares, é um dos últimos baluartes da Revolução Mexicana de 1910-1917, com suas promessas de reforma agrária radical e educação livre, laica e gratuita para todos.
O normalismo rural é uma comunidade formada não apenas pelos alunos que estudam em suas salas de aula e vivem em seus alojamentos. Fazem parte delas também os povoados de onde os estudantes vieram, os grupos camponeses que participam das atividades escolares e as comunidades onde os egressos vão trabalhar. São parte significativa dela os professores em atividade que se formaram em seus muros. Tudo o que acontece ali os afeta.
As escolas rurais são uma das poucas vias de ascensão social que os jovens no campo possuem. O destino forjado graças a seu estudo incide na vida das comunidades. Não ficam alheios ao que acontece nelas. As escolas são das comunidades: são um legado vivo da Revolução Mexicana, uma herança da escola rural e do cardenismo, algo a que não estão dispostos a renunciar.
Os alunos educados nestas escolas contam com uma das organizações estudantis mais antigas do país: a Federação de Estudantes Camponeses Socialistas do México (FECSM). Fundada em 1935, desempenhou um papel fundamental na sobrevivência das normalistas rurais, permanentemente atacadas pelas autoridades da educação e pelos governos locais. Seus dirigentes precisam ser alunos regulares, ter boa conduta e uma média escolar não menor que oito. Somente os melhores alunos representam seus companheiros. Seus líderes são jovens formados politicamente, com capacidade de análise, capacidade de organização e visião.
Essa lógica transgeracional e intercomunitária é que evitou que as escolas normalistas rurais fossem fechadas no México no passado. É a que resistiu às agressões recebidas. É a que formou possível a sobrevivência do projeto. E que articulou a luta pela apresentação, com vida, dos jovens desaparecidos.
Não são apenas 43 jovens desaparecidos. Por trás deles estão mais de quatro dezenas de pais em luto com famílias inteiras, em sua maioria de recursos escassos, que passam as noites esperando que seus filhos apareçam. Ao seu lado estão dezenas de comunidades, quase todas rústicas, que rogam pelo retorno de seus compatriotas. Ombro a ombro, marcham 500 estudantes da escola normalista “Raúl Isidro Burgos”, aguardando o regresso de seus companheiros de classe e de quarto.
Como se fossem um exército, são acompanhados de milhares de egressos profundamente comprometidos com a escola que lhes permitiu seguir adiante na vida, muitos deles trabalhando nos povoados mais afastados de Guerrero, que convivem com a afronta pessoal que o desaparecimento dos jovens representou para eles. Na primeira fileira, estão os 8 mil alunos de outras escolas rurais, próximos deles muito antes da tragédia que afetou suas vidas.
Uma nova insurgência civil
O fogo devora um veículo na frente do palácio de governo de Chilpancingo. No chassi de outro carro derrunado ao lado, mãos raivosas escreveram: Justiça! Guerrero está em chamas.
O fogo que devora edifícios públicos e carros é fruto da raiva e da indignação crescentes cada vez maior dos jovens. É o termômetro de uma insurgência civil e popular de fôlego longo e que sacode todo seu território, estendendo-se para outros municípios e setores. É a evidência de uma ira que a cada dia que passa se radicaliza mais e mais.
Em um primeiro momento, os protestos se centraram nas autoridades locais e no Partido da Revolução Democrática. Edifícios municipais escritórios estatais foram incendiados. As chamas da raiva se estenderam depois contra o governador afastado Ángel Aguirre. Atualmente alcançam o presidente Enrique Peña Nieto. A exigência de sua renúncia é um clamor amplo pelo país.
Cerca de 22 dos 81 municípios do estado estão tomados. A conta cresce a cada dia. Os plantões brotam como cogumelos nas praças públicas. A revolta não apenas obstaculariza o bom funcionamento dos conselhos. A multidão analisa dar início a gabinetes paralelos.
Como resultado da insurreição civíl, a economia local funciona a tropicões. Os hotéis esvaziaram. Os intermináveis bloqueios nas estradas estangulam o transporte de carga e de passageiros. O cerco aos grandes centros comerciais freia as transações comerciais.
A atual revolta tem nos normalistas, professores, policiais comunitários e entidades camponeses sua coluna vertebral. Sua longa tradição de luta e sua experiência de organização são substrato que sustenta a mobilização. Entretanto, o levante vai além. Em algumas regiões, até empresários participam.
Em Guerrero, existem há 45 anos organizações insurgentes. Há sérias evidências da presença e da atuação de cinco delas pelo menos. Têm implementação social em várias regiões, capacidade de fogo e experiência na ação. Várias acordaram formas de entendimento e de coordenação.
A expansão da insurgência civil popular de Guerrero foi acompanhada e cobiçada por um amplo e crescente movimento nacional de solidariedade. O mundo universitário está em ebulição. Nas redes sociais são esmagadoras as mostras de descontentamento com Enrique Peña Nieto.
A estratégia governamental para enfrentar a crise foi desastrosa. Erro atrás de erro, cada passo que as autoridades dão se aproximam irremediavelmente da beira do abismo. São incapazes de compreender a natureza da insurgência civil que tem diante de si, respondem lançando mão de politicagem barata e de manobras absurdas.
Foi assim em seu último esquema. A versão oficial de que os alunos de Ayotzinapa teriam sido executados, calcinados em uma lata de lixo de Cocula e suas cinzas foram atiradas no rio, fez com que os ânimos se exacerbassem ainda mais. Longe de oferecer uma explicação convincente dos fatos, causou mais dúvidas e mal-estar.
O governo federal pretende sustentar um relato oficial do massacre e uma verdade jurídica para escapar de sua negligência e responsabilidade nos fatos e se livrar de possíveis ações internacionais. Entretanto, sua explicação está cheia de omissões, inconsistências e contradições. Não é crível.
Nas diferentes mobilizações realizadas no país, a multidão em coro faz duas afirmações que sintetizam não apenas um estado de ânimo passageiro, mas as convicções profundas dos que as proclamam. Ao gritar 'foi o Estado!', apontam para quem consideram responsável pela barbárie. Ao exigir 'fora Peña!', expressam o que percebem como via de saída para o conflito. A insurgência civil e popular entrou em uma nova etapa.
Fonte: Carta Maior
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