Embaixadores brasileiros e argentinos, articulados com os serviços de inteligência, operaram juntos durante anos em operações das ditaduras dos dois países
“Depois de analisar milhares de documentos no Brasil, estamos em condições de dizer que a articulação diplomática foi importante para o funcionamento da articulação repressora” conhecida como Operação Condor. A afirmação é de uma fonte do Ministério de Relações Exteriores argentino durante uma entrevista à Carta Maior em Buenos Aires, onde foi lançado um buscador virtual que compila papéis inéditos sobre a trama criminosa sul-americana.
Há um mês, o chanceler argentino, Héctor Timerman, colocou no ar o site onde se pode ter acesso ao material desclassificado durante cinco anos nas missões diplomáticas do Brasil, assim como nas embaixadas de outros países cujas ditaduras se associaram, com a benção de Washington, especialmente de Henry Kissinger, que já estava na Casa Branca em 1970, quando Jefferson Cardim Osorio foi sequestrado em Buenos Aires. O coronal Osorio foi torturado por elementos da Polícia Federal argentina com o consentimento do embaixador brasileiro Francisco Azeredo da Silveira, depois promovido a chanceler pelo presidente Ernesto Geisel. Este caso é um dos primeiros da associação entre brasileiros e argentinos, orquestrada com a participação de altos membros do Itamaraty e do Palácio San Martín (chancelaria portenha).
Embaixadores brasileiros e argentinos, articulados com os serviços de inteligência, operaram durante anos nas sombras, montando uma engrenagem cuja reconstrução será facilitada a partir das informações obtidas pelo governo da presidenta Cristina Kirchner.
“Isto que recuperamos na Embaixada de Brasília e nos consulados de São Paulo e Rio de Janeiro é parte de um grande quebra-cabeça. A verdade sobre o terrorismo de Estado está aparecendo em partes. Há muito trabalho pela frente, estamos agora diante da ponto do iceberg sobre o qual a diplomacia atuou. Estou seguro de que, com esta decisão política do nosso governo, de investigar e publicar o que encontrarmos, estamos acrescentando parte da verdade sobre a articulação da repressão”, explica nosso entrevistado enquanto saboreia um café.
É meio-dia de uma calorosa sexta-feira, estamos em um restaurante localizado a poucos metros do Palácio San Martín. Em Buenos Aires, ainda se respira a efervescência do clássico em que o River venceu o Boca Juniors por um a zero, jogado na noite de quinta-feira pela Copa Sul-americana no Estádio Monumental, o mesmo que recebeu a final da Copa de 1978, organizada pela ditadura, com apoio de João Havelange e a visita de Kissinger.
É certo que o volumoso arsenal de dados liberados pelo chanceler Héctor Timerman (um dos funcionários mais hostilizados pela velha mídia portenha) talvez permita jogar luz, ou pelo menos conceder mais elementos, sobre o tecido de complicações construído pelos ditadores Ernesto Geisel e Jorge Rafael Videla para vigiar e, eventualmente, eliminar o presidente João Goulart, falecido em 1976 na província de Corrientes, Argentina, quando estava cercado pela Operação Condor. O laudo dos laboratórios que analisaram seus restos, divulgado recentemente, não permite assegurar que faleceu de causas naturais.
Por outro lado, os documentos localizados no buscador argentino podem dar novas pistas sobre o plano do Planalto e da Casa Rosada, que desembocou no desaparecimento do guerrilheiro ítalo-argentino Domingo Horacio Campiglia, sequestrado em 1980 no Aeroporto do Galeão em uma operação de que fez parte o famoso coronel Paulo Malhães.
Ditadura no Brasil foi pioneira
Sabe-se que a ditadura brasileira foi a primeira a implementar a Doutrina de Segurança Nacional na região, e que seu governo de fato foi pioneiro na formação de uma equipe diplomática à serviço do terrorismo de Estado sob o pretexto da “guerra sem fronteiras contra o comunismo”.
Uma década antes do golpe dado em 1976 pelas forças armadas argentinas, o Brasil já havia estruturado, dentro do Ministério das Relações Exteriores, um esquema de espionagem cuja primeira missão seria seguir o presidente deposto João Goulart, exilado no Uruguai desde 1964.
O Centro de Informações no Exterior (CIEX) foi concebido pelo embaixador Manoel Pio Correa (suspeito de trabalhar para a CIA), que, em meados dos anos 60, atuou como chefe da missão diplomática no Uruguai, antes de ser transferido para a Argentina, onde trabalhou entre 1967 e 1969, durante o governo do general Juan Carlos Onganía, outro acólito da Doutrina de Segurança Nacional.
Nos arquivos do CIEX, revelados em 2007 pelo jornalista Cláudio Dantas Sequeira, há informações sobre o sequestro e posterior desaparecimento no Aeroporto Internacional de Ezeiza (Buenos Aires) do militante Edmur Pericles Camargo, o “Gauchão”, ocorrido em 1971. No acervo do CIEX, que desmentiu o mito de que o Itamaraty esteve alheio ao terrorismo de Estado, também há fichas sobre o militar e guerrilheiro Onofre Pinto (participou no sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick), assassinado pouco tempo depois de retornar ao Brasil procedente da Argentina.
O coronel Paulo Malhães foi um dos elementos vinculados com a perseguição na Argentina e a posterior execução de Onofre Pinto no Parque Nacional de Foz do Iguaçu, junto de outros militantes, em julho de 1974.
Em março deste ano, Paulo Malhães falou por horas diante da Comissão da Verdade, explicando como torturou, assassinou e eliminou cadáveres de oposicionistas (um deles possivelmente foi Onofre Pinto), mas não se aprofundou sobre sua atuação na teia de aranha da espionagem e morte costurada na Argentina durante anos.
A suspeitosa morte de Malhães (queima de arquivo?), ocorrida um mês depois de suas confissões diante da Comissão, deixou muitas questões em aberto, que talvez possam ser solucionadas com a ajuda dos documentos ventilados pela Chancelaria portenha. As investigações cruzadas de país a país são a chave para dar forma ao esqueleto ainda incompleto da Operação Condor, em particular da Condor diplomática.
“O que propomos é que haja a maior transparência possível, acredito que este trabalho de recompilação e publicação de arquivos não tem antecedentes na América Latina e talvez haja poucos iguais no mundo”, disse o diplomata ao encerrar sua conversa com Carta Maior.
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