“Você é contra ou a favor do aborto?” A verdade é que isso não importa, se você não estiver falando da sua própria gestação. Afinal, uma mulher que não se julga em condições de conceber um filho vai interromper a gravidez mesmo que seus pais digam que é pecado, que suas amigas fiquem chocadas e que seu parceiro seja contra. E o preço dessa decisão costuma ser alto.
Vejamos alguns números referentes ao Brasil: estima-se que um aborto realizado em uma clínica clandestina custe de R$ 150 a R$ 10 mil; 800 mil a 1 milhão é o número de mulheres que abortam todos os anos; uma em cada cinco mulheres com menos de 40 anos já abortou; e uma mulher morre a cada dois dias devido a complicações do procedimento realizado clandestinamente.
O aborto acontece. Você, sua avó, o Papa e o deputado Eduardo Cunha querendo ou não. Não é a sua opinião, comentários de ódio ou campanha de “barrigaço” no Facebook que vai mudar isso. Aceita que dói menos. Frente a esse fato, o debate que pode ser colocado em pauta é: o Estado deve proporcionar um tratamento e suporte adequados a essas mulheres ou deixar que se arrisquem em procedimentos ilegais, alimentando clínicas clandestinas e somando-se às estatísticas de morte? A ampliação da legalização do aborto, que já é prevista em lei quando em caso de estupro, anencefalia fetal ou risco de vida à mulher, está acima de qualquer preceito religioso ou moral: trata-se de uma questão de saúde pública. Note que, para isso, a descriminalização da prática não é o suficiente, uma vez que apenas removeria o aborto da lista de crimes. É preciso fornecer um suporte básico para atender essas mulheres, algo que seria possível ao tornar a interrupção legal.
Foto © O Sul/Reprodução
Pensar sobre a ampliação da legalização do aborto exige de todos nós um exercício de empatia. Os norte-americanos têm um ditado que cabe muito bem aqui: “não se pode julgar um homem antes de andar uma milha em seus sapatos”, dizem eles. Então, convido você a tirar os seus calçados e a caminhar ao longo deste texto, dispondo-se a enxergar e a entender vidas, problemas, medos e desejos que não são os seus, mas que costumam levar a decisões como a interrupção de uma gravidez, o que exige uma mobilização da sociedade a fim de ser regulamentada.
Elas abortam
Anna é uma jovem sueca que manteve relações sexuais com o namorado ao longo dos últimos meses. Por complicações de saúde ela não pode tomar anticoncepcional, mas seu parceiro usapreservativo sempre. Sabe-se que a camisinha é eficiente em cerca de 95% dos casos, mas Anna caiu nesses 5% e ela se viu grávida antes mesmo de começar a tão sonhada faculdade e de deixar para trás a adolescência. A garota conversou com sua mãe e as duas foram até um hospital público. Lá, Anna foi atendida por um ginecologista, que a examinou e confirmou a gravidez, e por um psicólogo, com quem conversou sobre sua decisão de abortar.
Foto © Bruno Farias
Alguns dias depois, Anna voltou ao hospital, tomou uma pílula e levou outra para casa, que deveria ser ingerida depois de 36 horas. A garota teve um pouco de cólica, foi orientada a não fazer grandes esforços nos próximos dias e passa bem. Anna se sentiu incomodada e angustiada pela situação, em que obviamente não gostaria de estar, mas encontrou em sua família o apoio e compreensão e no sistema público de saúde condições adequadas para interromper uma gravidez que não foi planejada e que cujo desenvolvimento colocaria em risco toda a sua vida, projetos e sonhos.
Elizângela é brasileira, tem 32 anos, é casada e mãe de três filhos. Seu sonho é conquistar independência financeira e proporcionar uma boa educação às crianças. Certo dia ela percebeu que sua menstruação estava atrasada e descobriu estar grávida. Ele, pintor industrial, e ela, dona de casa em busca de um emprego fixo, não dariam conta de criar quatro filhos e, sabendo disso, Elizângela decidiu abortar.
Ela descobriu uma clínica clandestina que cobrava R$ 2.800 em espécie pelo procedimento e marcou o atendimento. O marido a deixou no lugar marcado, onde um estranho a levaria até a clínica. Em contato via celular, Elizângela disse ao esposo que o procedimento ia custar R$ 700 a mais e que não voltaria para casa no mesmo dia. A verdade é que ela nunca mais voltou. A mulher foi deixada por um desconhecido em um hospital público, já morta. O procedimento, mal realizado, provocou uma hemorragia grave e ela não aguentou. Elizângela abortou pensando no bem-estar de seus três filhos, pagou mais do que podia: com a própria vida e nas notícias sobre o caso, em portais da internet, há quem dissesse “bem feito”.
Imagem © Carol Rossetti
Anna não é ninguém em específico, mas representa todas as jovens que realizam abortos na Suécia, país em que a prática é legalizada desde 1975. Já Elizângela não só existiu como sua morte foi manchete nos principais jornais do país em setembro do ano passado. Ela é só mais uma entre as várias mulheres brasileiras que perdem a vida por algo que lhes é negado: o direito ao próprio corpo e às próprias decisões.
Para piorar o cenário, é fácil notar que quanto mais pobres são as mulheres maior é a probabilidade de ao encararem uma gravidez indesejada, provocarem o aborto em casa correndo graves riscos ou fazerem o procedimento com pessoas sem formação médica, o que aumenta o risco de complicações e mortes. Quem tem boas condições financeiras consegue pagar por serviços que, mesmo ilegais, são mais seguros e, consequentemente, têm menos risco. Quem não tem dinheiro, precisa se submeter à condições precárias para um procedimento tão delicado.
Segundo matéria na revista TPM, “um estudo feito pelo Instituto do Coração (InCor) com base em dados do Datasus de 1995 a 2007 revela que a curetagem – procedimento necessário quando existem complicações após um aborto – foi a cirurgia mais realizada no Sistema Único de Saúde no intervalo de tempo avaliado, com 3,1 milhões de registros. Em seguida vieram correção de hérnia (com 1,8 milhão) e retirada da vesícula (1,2 milhão). Ainda no SUS, em 2013, foram 205.855 internações decorrentes de abortos, sendo 154.391 por interrupção induzida.”
“Se o Papa fosse mulher, o aborto seria legal”*
Em uma pesquisa realizada pelo G1 com os 513 atuais deputados da Câmara, em Brasília, 271 deles (52,8%) afirmaram ser a favor de manter a legislação sobre o aborto como é hoje. Do restante, apenas 90 (17,5%) deles compreendem a necessidade de haver uma ampliação desse direito. Destes deputados, 382 (74,4%) se declaram cristãos e apenas 45 (8,7%) são mulheres, número que nos leva a pensar que empatia talvez não seja o forte por lá.
É claro que religião e o já exaustivamente debatido direito à vida afetam diretamente as questões envolvendo o aborto, mas em um país que é, ao menos teoricamente, laico, as emoções e crenças pessoais deveriam ser deixadas de lado, dando vez apenas ao racional.
Imagem: Reprodução
Isso quer dizer que é perfeitamente possível (e de grande honestidade, aliás) negar a interrupção de sua própria gestação por convicções religiosas, por exemplo, porém apoiar que mulheres que desejam realizar o aborto o façam de forma legal. É o que defende a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, um grupo que luta pela autonomia das mulheres e pela laicidade do Estado. Para entender melhor, assista a esta entrevista com Rosângela Talib, psicóloga e mestra em Ciências da Religião (UMESP), que faz parte da organização:
O exercício de empatia funcionou bem para o congressista democrata Tim Ryan, que se posicionava contra a questão do aborto nos Estados Unidos. Após participar de várias rodas de conversa com mulheres de diversas partes do país, ele entendeu as situações que as levavam a recorrer ao aborto – até então por ele ignoradas.
“Sentei-me com mulheres do Ohio e de todo o país e ouvi-as falar sobre as suas experiências diferentes: relações abusivas, dificuldades financeiras, sustos de saúde, violação e incesto. Essas mulheres proporcionaram-me um maior grau de compreensão sobre o quão complexas e difíceis certas situações podem ser. E apesar de haver pessoas bem-intencionadas em ambos os lados deste debate, uma coisa tornou-se abundantemente clara para mim: a mão pesada do Estado não pode tomar esta decisão em substituição das mulheres e das famílias”, afirmou ele em nota oficial, ao declarar sua mudança de posicionamento, em janeiro deste ano.
O congressista se dispôs a andar nos sapatos dessas mulheres, compreendendo que o aborto existe, independente de qualquer posicionamento ou lei, e que ao Estado resta garantir um tratamento seguro e digno a elas. Afinal, não é pela vida que lutamos?
*Versinho ouvido em diversas manifestações pelos direitos da mulher no país
“Aqui você ouve 15 minutos de ‘parabéns’ e depois se sente muito mal de falar em aborto”
Em 2013, o CFM (Conselho Federal de Medicina) fez um anúncio em que defendeu a liberação do aborto dentro de 12 semanas de gestação, período no qual a interrupção é feita de forma mais segura e com uso de medicamentos, sem que haja a necessidade de intervenção cirúrgica. A base dessa decisão é a própria ciência, que entende ser depois do terceiro mês de gravidez que o sistema nervoso central do embrião se desenvolve e que, antes disso, ele não tem qualquer tipo de sensação. Embora o CFM tenha optado pelas 12 semanas, o tempo de gestação para a realização do aborto varia entre os países em que a prática já é legalizada. Na Suécia, admite-se até 18 semanas, enquanto que na Itália isso é feito em até 24 semanas e emPortugal, 10 semanas.
Acesse o mapa interativo em World Abortion Laws
Na França, onde, assim como na Suécia, o aborto é legalizado desde 1975, admite-se a prática em até 12 semanas de gestação. Por lá, o sistema de saúde público fornece todo o suporte para a interrupção da gravidez e o assunto dificilmente é encarado como tabu. “Não é que na França o aborto seja sempre bem visto, mas as pessoas conseguem entender e respeitar. Lá não pensamos em termos de matar alguém, como aqui, mas no que você quer para o bebê e para você. Aqui você não opção, a primeira coisa que pensam é em crime. Lá é diferente. Quando uma jovem grávida vai ao médico, a primeira coisa que ele pergunta é se você já sabe o que quer fazer. Aqui você ouve 15 minutos de ‘parabéns’ e depois se sente muito mal de falar em aborto“, contou uma jovem francesa que residia no Brasil e optou por voltar à França após engravidar sem ter a intenção, em matéria do G1.
A ideia da ampliação da legalização do aborto levanta diversas dúvidas, cujas respostas podem dar brechas a vários mitos. Fala-se, por exemplo, que o aborto é perigoso para a mulher. Bem, sabemos que qualquer tipo de intervenção medicamentosa ou cirúrgica no organismo tem um risco, mas estudos comprovam que ele é mínimo. Estima-se que menos de 1% dos abortos feitos por norte-americanas, onde a prática é permitida, resultou complicações de saúde.
Imagem © Renata Nolasco via Atóxico e Moral
Outro mito bastante discutido é a banalização do aborto. Isso é, ao facilitar o acesso à interrupção da gestação, mais mulheres optariam pela prática e até deixariam métodos contraceptivos de lado. Essa ideia é, na verdade, bastante absurda, já que não se trata de escolher um picolé de morango ou chocolate, o vestido vermelho ou o verde, mas de ter um filho ou não, uma decisão que representa um impacto de grande proporção na vida de uma mulher, tanto pelo sim quanto pelo não. Segundo Márcia Tiburi, filósofa que já escreveu muito sobre o assunto, em matéria na revista TPM, “o discurso antiaborto ajuda na construção de um tabu. E faz isso porque se mascara como um argumento “do bem” defendendo “a vida” (do embrião) quando, na verdade, é uma tentativa de controlar o desejo feminino.”
O fato é que o aborto não é uma questão com a qual uma mulher deseja se deparar durante a vida, contudo, sua legalização viabiliza o direito de escolha, tornando seguras, legais e dignas ambas as respostas para essa situação.
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