terça-feira, 14 de abril de 2015

BRASIL: LINCHAMENTOS, JUSTIÇA POPULAR


Livro analisa motivações por trás da proliferação de casos de justiçamento popular no País

Em 3 de maio de 2014, a barbárie dava as caras em Morrinhos IV, bairro periférico da cidade do Guarujá, localizada no litoral paulista. Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, dona de casa e mãe de dois filhos pequenos era espancada até a morte ao ser confundida com uma sequestradora de crianças e adepta de rituais de “magia negra”. Sem nenhuma chance de defesa, Fabiane sucumbiu diante da multidão enlouquecida que a agredia em meio a xingamentos e berros por justiça.

O caso que ganhou repercussão nacional, infelizmente, está longe de ser um episódio isolado de crueldade. O Brasil está entre os países que mais cometem esse tipo de ato violento no mundo: são quatro linchamentos e tentativas de linchamento por dia. Apenas nos últimos 60 anos, ao menos 1 milhão de brasileiros participou de ações de justiçamento de rua. Este cenário que parece extraído da Idade Média é apresentado no livro Linchamentos: A justiça popular no Brasil (Ed. Contexto, 2015), de José de Souza Martins, sociólogo e professor titular aposentado de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Fruto de um trabalho de pesquisa de mais de 20 anos, o livro procura elucidar as raízes e a perduração de um comportamento tão violento e arcaico em nossa sociedade. O linchamento é definido como um ato violento praticado por uma multidão contra uma ou mais pessoas. As multidões linchadoras podem ter dez ou mais de mil indivíduos. Não é o número de participantes que as define, mas sim o tipo de comportamento súbito, irracional, coletivo e de curtíssima duração que as caracteriza. “No livro, refiro-me ao “comportamento de multidão”, completamente diverso do comportamento individual. Na multidão, o agressor age como se não fosse ele mesmo, como se fosse outro sujeito. Raramente recorda-se do que fez e de como o fez”, distingue o sociólogo.

O interesse da literatura científica pelo comportamento de multidão inicia-se no século XIX com o livro A Psicologia das Multidões, de 1895, escrito pelo francês Gustave Le Bon. Na obra, o autor discorre sobre o protagonismo de um novo sujeito social: o aglomerado de pessoas, que age impulsiva e violentamente fora do marco da razão e do indivíduo. “O sujeito coletivo age irracionalmente e sua conduta não se explica pelas regras conscientes das motivações individuais e pessoais”, diz Martins. No Brasil, o registro do primeiro linchamento data de 1585, em Salvador, Bahia, causado por religião. “Tivemos linchamentos de abolicionistas, no século XIX, motivados pela luta contra a escravidão. Sua prática já ocorria nos EUA, no século XVIII, quando à essa violência foi associado o nome do juiz Lynch, que punia desse modo os condenados”, conta.

Mas o que leva um grupo de pessoas a adotar uma ação tão cruel e irracional? Para Martins, o Brasil passa por uma crise política e moral que se traduz em crescente descrença nas instituições do Judiciário, Legislativo e Executivo. “No geral, a população perdeu a confiança na polícia e na Justiça e cada vez mais faz justiça pelas próprias mãos”, explica.

Além de ferir ou lesar pessoas, a violência fere também valores referenciais e fundantes da concepção do que é a condição humana. “A violência que recai sobre os inocentes é a principal motivadora de linchamentos: estupro de crianças, assassinato de pessoas que supostamente deveriam estar sob proteção de quem as mata (como os incapazes, filhos, pais, desvalidos). Mas também o roubo de trabalhadores, de gente que luta para sobreviver. Mesmo nos casos de motivos fúteis, há uma aguda consciência popular do descabimento de atos que são considerados também atos de desrespeito pela condição humana do outro.”

Podemos dizer que, em todo linchamento, há um fundo comunitário de referência na ação violenta, uma identidade de pequeno grupo, mesmo quando se trata de multidões consideráveis. Naquele curto momento, o que une os participantes são valores sociais de tipo comunitário, ainda que se trate de uma identidade de curta duração e provisória. Em casos frequentes, a comunidade é quase real, pois envolve família e vizinhança. “Os crimes punidos com linchamentos são crimes que ferem relações e realidades familísticas e vicinais, aquilo que é propriamente comunitário, crimes que atingem mais do que indivíduo vitimado e sim a pessoa como sujeito de relações comunitárias.”

Os linchamentos revelam também um descompasso entre os avanços do homem do século XXI e uma mentalidade arcaica. Foi isso, por exemplo, que aconteceu no brutal linchamento de Fabiane, citado no início deste texto. “O fato de portar um livro preto (uma Bíblia) aumentou a suspeita de que era também feiticeira. Concepções arcaicas e retrógradas como essas foram difundidas por meio de um dos mais modernos e poderosos instrumentos de comunicação (internet). O fato revela que estamos incorporando ao cotidiano meios cuja modernidade está em completo descompasso com a mentalidade de quem os usa.”

Tanto no caso do menor surrado e acorrentado por motoqueiros a um poste no Rio de Janeiro quanto no caso da mãe de família linchada no Guarujá por mais de mil pessoas, o fundamento último das ações foi o medo, traduzido, porém, em preconceito, racial num caso e social no outro. “Ações motivadas, em ambos os casos, por antivalores, os da recusa do direito à diferença”, conclui Martins.

Linchamentos: A justiça popular no Brasil, de José de Souza Martins. Editora Contexto, 2015.

Fonte: Carta Capital

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