Psicanalista Maria Rita Kehl analisa casos simbólicos da violência policial em novo livro da Boitempo Editorial; leia capítulo na íntegra
1. A matança dos suspeitos – maio de 2006
Vamos falar sério: alguém acredita que a rebelião do PCC (Primeiro Comando da Capital) foi controlada pela polícia de São Paulo? As autoridades apresentaram aos cidadãos evidências de que pelo menos parte da poderosa quadrilha do crime organizado foi desbaratada? O sigilo dos celulares que organizaram, de dentro das prisões, a onda de atos terroristas nos estados de São Paulo, Paraná, Mato Grosso etc. foi quebrado para revelar os nomes de quem trabalhou para Marcos Camacho, o Marcola, fora da cadeia? Qual foi o plano de inteligência posto em ação para debelar a investida do terror iniciada no final de semana?
Alguém acredita que “voltamos à normalidade”? Ou, se voltamos – pois a vida está mais ou menos com a mesma cara de antes, só um pouco mais envergonhada –, de que normalidade se trata?
Uma normalidade vexada. Uma vez constatada a rapidez com que os capitalistas selvagens do tráfico de drogas desestabilizaram o cotidiano do estado mais rico do Brasil, não dá para esconder o fato de que nossa precária tranquilidade depende integralmente da tranquilidade deles. Se os defensores da lei e da ordem não mexerem com seus negócios, eles não mexem conosco.
Caso contrário, se seus interesses forem afetados, eles põem para funcionar imediatamente a rede de miseráveis a serviço do tráfico, conectada através de celulares autorizados pelo sistema carcerário (que outra explicação para a falta de bloqueadores e de detectores de metal nos presídios?) e tolerada pelo governador de plantão. No caso, o mesmo governador que, na hora do aperto, rejeitou trabalhar em colaboração com a Polícia Federal e, horas depois, negou ter feito acordos com os líderes do PCC. Na segunda-feira, nos telejornais, o governador Lembo nos fez recordar a retórica autoritária dos militares: “Nada a declarar”, além de “Tudo tranquilo, tudo sob controle”. E quanto aos 80 mortos (hoje são 115), governador? Ah, aquilo. Bem, aquilo foi um drama, é claro. Lamento muito. Mas pertence ao passado. Um passado que não para de incomodar: em 2014, o grupo das chamadas Mães de Maio, que até hoje lutam para enterrar seus filhos assassinados pela polícia de São Paulo, revelou que pelo menos 493 jovens foram executados nos dias consecutivos aos ataques do PCC.
A falta de transparência na conduta das autoridades e a desinformação proposital, que ajuda a semear o pânico na população, fazem parte das táticas autoritárias do atual governo de São Paulo. Quanto menos a sociedade souber a respeito da crise que nos afeta diretamente, melhor. Melhor para quem? Na noite de segunda-feira, quando os paulistanos em pânico tentavam voltar mais cedo para casa, vi-me parada, em um dos muitos congestionamentos que bloquearam a cidade, ao lado de uma viatura policial; olhei o homem à minha esquerda e, pela primeira vez na vida, solidarizei-me com um policial. Vi um servidor público humilde, desprotegido, assustado. Cumprimentou-me com um aceno conformado, como quem diz “fazer o que, não é?”. Pensei: ele sabe que está participando de uma farsa. Uma farsa que pode lhe custar a vida.
De repente, entendi uma parte, pelo menos uma parte, da já habitual truculência da polícia brasileira: eles sabem que arriscam a vida em uma farsa. Não me refiro aos salários de fome que facilitam a corrupção entre bandidos e policiais militares. Refiro-me ao combate ao crime e à proteção da população, que são a própria razão de ser do trabalho dos policiais. Se até eu, que sou boba, percebi a farsa montada para que a polícia fingisse controlar o terror que se espalhava pela cidade enquanto as autoridades negociavam respeitosamente com Marcolas e Macarrões, imagino a situação de meu companheiro de engarrafamento. Imagino a falta total de sentido do exercício arriscado de sua profissão. Imagino o sentimento de falta de dignidade desses que têm licença para matar os pobres, mas sabem que não podem mexer com os interesses dos ricos, nem mesmo dos que estão trancados em presídios de segurança máxima e restrições mínimas.
Mas é preciso trabalhar, tocar a vida, exercer o trabalho sujo no qual não botam fé nenhuma. É preciso encontrar suspeitos, enfrentá-los a tiros, mostrar alguns cadáveres à sociedade. Satisfazer nossa necessidade de justiça com um teatro de vingança. A esquizofrenia da condição dos policiais militares foi revelada por algumas notícias de jornal: encapuzados como bandidos, executam inocentes sem razão alguma para, a seguir, exibindo a farda, fingirem ter chegado a tempo de levar a vítima para o hospital.
Isso é o que alguns policiais militares (por que militares? Até quando vamos conviver com essa herança da ditadura?) fazem na periferia, nos bairros pobres onde também eles moram, onde o desamparo em relação à lei é mais antigo e mais radical do que nas regiões centrais da cidade. Nas ruas escuras das periferias, os policiais cumprem seu dever de vingança e atiram no entregador de pizza. Atiram no menino que esperava a noiva no ponto de ônibus ou nos anônimos que conversam desprevenidos numa esquina qualquer. No motoboy que fugiu assustado – Quem mandou fugir? Alguma ele fez... Não percebem – ou percebem? – que o arbítrio e a truculência com que tratam a população pobre contribui para o prestígio dos chefes do crime, que às vezes se oferecem às comunidades como única alternativa de proteção.
Assim a polícia vem “tranquilizando” a cidade ao apresentar um número de cadáveres “suspeitos” superior ao número de seus companheiros mortos pelo terrorismo do tráfico. Suspeitos que não terão nem ao menos a sorte do brasileiro Jean Charles, cuja morte será cobrada da polícia inglesa porque dela se espera que não execute sumariamente os cidadãos que aborda, por mais suspeitos que possam parecer. Não é o caso dos meninos daqui; no Brasil, ninguém, a não ser os familiares das vítimas, reprova a polícia pelas execuções sumárias de centenas de “suspeitos”. Mas até mesmo os familiares têm medo de denunciar o arbítrio e sofrer retaliações.
Aqui, achamos melhor fingir que os suspeitos eram perigosos e que o assassinato deles é condição para nossa segurança. Deixemos Marcola em paz, pois ele só cuida de seus negócios. Negócios que, se legalizados, deixariam o campo de forças muito mais claro e menos violento (morre muito mais gente inocente na guerra do tráfico do que morreriam de overdose, se as drogas fossem liberadas – disso estou certa). Mas são negócios cujos lucros astronômicos dependem da ilegalidade. O crime é que compensa.
Então ficamos assim: o Estado negocia seus interesses com os de Marcola, um homem poderoso, fino, que lê Dante Alighieri e tem muito dinheiro. Deixa em paz os superiores de Marcola, que vivem soltos por aí, no Congresso, talvez, ou abrigados em algumas secretarias de governo. Deles, pelo menos, a população sabe o que pode e o que não pode esperar. E já que é preciso dar alguma satisfação à sociedade assustada, deixemos a polícia à vontade para matar suspeitos na calada da noite. Os policiais se arriscam tanto, coitados. Ganham tão pouco para servir à sociedade e podem tão pouco contra os criminosos de verdade. Eles precisam acreditar em alguma coisa, precisam de alguma compensação. Já que não temos justiça, por que não nos contentarmos com a vingança? Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo. Para morrerem na lista dos suspeitos anônimos. Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes. Para se viciarem em crack e se alistarem nas fileiras dos soldadinhos do tráfico. Para sustentar nossa ilusão de que os bandidos estão nas favelas e de que, do lado de cá, tudo está sob controle.
2. Resistência seguida de morte
Seis anos depois da matança indiscriminada de 2006, os jornais noticiaram mais uma chacina qualificada pelo comando da PM como “resistência seguida de morte”.
“Quem não reagiu está vivo”, disse o governador de São Paulo ao defender a ação da Rota na chacina que matou nove supostos bandidos numa chácara em Várzea Paulista, no dia 12 de setembro de 2012. A seguir, tentando aparentar firmeza de estadista, garantiu que a ocorrência seria rigorosamente apurada. Eu me pergunto se é possível confiar na lisura do inquérito, quando o próprio governador já se apressou em legitimar o morticínio praticado pela PM que responde ao comando dele.
“Resistência seguida de morte”, assim agentes das polícias militares, integrantes do Exército brasileiro e diversos matadores freelance justificavam as execuções de supostos inimigos públicos que militavam pela volta da democracia durante a ditadura civil militar, a qual oprimiu a sociedade e tornou o país mais violento, menos civilizado e muito mais injusto entre 1964 e 1985.
Suprimida a liberdade de imprensa, criminalizadas quaisquer manifestações públicas de protesto, o Estado militarizado teve carta branca para prender sem justificativa, torturar e matar cerca de 400 estudantes, trabalhadores e militantes políticos (dentre os quais, 141 permanecem desaparecidos e outros 44 nunca tiveram o corpo devolvido às famílias – tema atual de investigação pela Comissão Nacional da Verdade). Esse número, por si só alarmante, não inclui os massacres de milhares de camponeses e índios em regiões isoladas e cuja conta ainda não conseguimos fechar. Mais cínicas do que as cenas armadas para aparentar trocas de tiros entre policiais e militantes cujo corpo era entregue totalmente desfigurado às famílias, foram os laudos que atestavam os inúmeros falsos “suicídios”. A impunidade dos matadores estava tão garantida que não se preocupavam em justificar as marcas de tiros pelas costas, as pancadas na cabeça e os hematomas em várias partes do corpo de prisioneiros “suicidados” sob sua guarda.
Quando o Estado, que deveria proteger a sociedade a partir de suas atribuições constitucionais, investe-se do direito de mentir para encobrir seus próprios crimes, ninguém mais está seguro. Engana-se a parcela das pessoas de bem que imagina que a suposta “mão de ferro” do governador de São Paulo seja o melhor recurso para proteger a população trabalhadora. Quando o Estado mente, a população já não sabe mais a quem recorrer. A falta de transparência das instituições democráticas – qualificação que deveria valer para todas as polícias, mesmo que no Brasil ainda permaneçam como militares –compromete a segurança de todos os cidadãos.
Vejamos o caso da última chacina cometida pela PM paulista, cujos responsáveis o governador de São Paulo se apressou em defender. Não é preciso comentar a bestialidade da prática, já corriqueira no Brasil, de invariavelmente só atirar para matar – frequentemente, com mais de um tiro. Além disso, a justificativa apresentada pelo governador tem pelo menos uma óbvia exceção. Um dos mortos foi o suposto estuprador de uma menor de idade, que acabava de ser julgado pelo “tribunal do crime” do PCC na chácara de Várzea Paulista; não faz sentido imaginar que os bandidos tivessem se esquecido de desarmar o réu Maciel Santana da Silva, que foi assassinado junto com os outros supostos resistentes. Aliás, o “tribunal do crime” acabara de inocentar acusado: o senso de justiça da bandidagem nesse caso está acima do da PM e do próprio governo do Estado. Maciel Santana morreu desarmado. E, apesar da ausência total de marcas de tiros nos carros da PM, assim como de mortos e feridos do outro lado, o governador não se vexa em utilizar a mesma retórica covarde dos matadores da ditadura – “resistência seguida de morte” em versão atualizada é “quem não reagiu está vivo”.
Ora, do ponto de vista do cidadão desprotegido, qual é a diferença entre a lógica do tráfico, do PCC e da política de Segurança Pública do governo do Estado de São Paulo? Sabemos que, depois da onda de assassinatos de policiais a mando do PCC, em maio de 2006, 168 jovens foram executados na rua pela polícia, entre chacinas não justificadas e casos de “resistência seguida de morte”, numa ação de vendetta que não faria vergonha à Camorra. Muitos corpos não foram até hoje entregues às famílias e jazem insepultos por aí, tal como aconteceu com jovens militantes de direitos humanos assassinados e desaparecidos no período militar. Resistência seguida de morte, não:
tortura seguida de ocultação do cadáver.
Desde janeiro de 2012, escreveu Rogério Gentile, a PM da capital matou 170 pessoas, um número 33% maior do que os assassinatos da mesma ordem em 2011. O crime organizado, por sua vez, executou 68 policiais. Quem está seguro nessa guerra em que as duas partes agem fora da lei? As pesquisadoras norte-americanas Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling revelaram que o Brasil foi o único país da América Latina em que o número de assassinatos cometidos pelas polícias militares aumentou, em vez de diminuir, depois do fim da ditadura civil militar. Mudou o perfil socioeconômico
dos mortos, torturados e desaparecidos, diminuiu o poder das famílias em mobilizar autoridades para conseguir justiça, mas a mortandade continua, e a sociedade brasileira descrê da democracia.
Hoje os supostos maus policiais talvez sejam minoria, e não seria difícil apurar suas responsabilidades se houvesse vontade política do governo. No caso do terrorismo de Estado praticado no período investigado pela CNV, mais importante do que revelar os já conhecidos nomes de agentes policiais que se entregaram à barbárie de torturar e assassinar prisioneiros indefesos é nomear toda a cadeia de mando acima deles. Se a tortura aos oponentes da ditadura foi acobertada, quando não consentida ou ordenada por autoridades do governo, o que pensar das chacinas cometidas em plena democracia, quando governadores empenham sua autoridade para justificar assassinatos cometidos pela polícia sob seu comando? Como confiar na seriedade da atual investigação conduzida depois do veredicto do governador Alckmin, desde logo favorável à ação da polícia?
Qual lisura se pode esperar das investigações de graves violações de direitos humanos cometidas hoje por agentes do Estado, quando a eliminação sumária de supostos criminosos pelas PMs segue os mesmos procedimentos e goza da mesma impunidade das chacinas cometidas por quadrilhas de traficantes? O inquietante paralelismo entre as ações da polícia e dos bandidos põe a nu o desamparo de toda a população civil diante da violência, que tanto pode vir dos bandidos quanto da polícia. “Chame o ladrão”, cantava o samba que Chico Buarque compôs sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Hoje “os homens” não invadem mais as casas de cantores, professores e advogados, mas continuam a arrastar moradores “suspeitos” das favelas e das periferias para fora dos barracos, ou a executar garotos reunidos para fumar um baseado nas esquinas das periferias das grandes cidades. Do ponto de vista da segurança pública, esse tiro sai pela culatra. “Combater a violência com mais violência é como tentar emagrecer comendo açúcar”, teria dito o grande psicanalista Hélio Pellegrino, morto em 1987.
E o que é mais grave: hoje, como antes, o Estado deixa de apurar tais crimes e, para evitar aborrecimentos, mente para a população. O que parece ser decidido em nome da segurança de todos produz o efeito contrário. O Estado, ao mentir, coloca-se acima do direito republicano à informação – portanto, contra os interesses da sociedade que pretende governar. O Estado, ao mentir, perde legitimidade – quem acredita nas “rigorosas apurações” do governador de São Paulo? Quem já viu algum resultado confiável de uma delas? Pensem no abuso da violência policial durante a ação de despejo dos moradores do Pinheirinho... O Estado mente e desampara os cidadãos, tornando a vida social mais insegura ao desmoralizar a lei. A quem recorrer, então?
A lei é simbólica e deve valer para todos, mas o papel das autoridades deveria ser o de sustentar, com transparência, a validade dela. O Estado que pratica vendetta como uma organização criminosa destrói as condições de sua própria autoridade, que, em consequência disso, passará a depender de mais e mais violência para se sustentar.
*Trecho do livro "Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação", quarto volume da coleção Tinta Vermelha, que será lançado no Seminário Internacional Cidades Rebeldes
Ficha técnica
Título: Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação
Autor: Vários autores
Prólogo e quarta capa: Marcelo Freixo
Apresentação: Guaracy Mingardi
Ilustrações: Rafa Campos
Ensaio fotográfico: Luiz Baltar
Páginas: 128
ISBN: 978-85-7559-441-4
Preço: R$ 10,00 impresso | R$ 5,00 e-book
Coleção: Tinta Vermelha
Ano: 2015
Editora: Boitempo
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