Para ativistas, show de Gil e Caetano marcado para o próximo dia 28 reforça apartheid israelense contra palestinos
Por Lúcia Rodrigues
A pressão para que o músico Gilberto Gil não cante em Israel está aumentanto. Depois das cartas encaminhadas pelo ex-Pink Floyd, Roger Waters, é a vez de organizações que integram o Fórum Social Mundial enviarem o pedido para Gil. O baiano tem sido presença frequente nos shows organizados durante as atividades do Fórum.
Gilberto Gil e Caetano Veloso têm apresentação agendada, em Tel Aviv, para o próximo dia 28. A data coincide com um ano dos ataques de Israel contra a Faixa de Gaza, quando milhares de palestinos foram mortos.
Os ativistas querem convencê-los a não ir, porque afirmam que Israel mantém uma política de apartheid contra os palestinos, semelhante a que ocorria na África do Sul durante o regime de segregação racial.
“A campanha de boicote é o grande instrumento de protesto para demover Israel da ocupação na Palestina”, ressalta Rita Freire, representante da Ciranda da Comunicação Compartilhada no Conselho Internacional do Fórum Social Mundial.
Segundo ela, vários artistas, acadêmicos e até países como a África do Sul participam da campanha de boicote a Israel. “É o mesmo tipo de pressão que se fez para derrubar o apartheid na África do Sul”, explica.
“Estive na Palestina, recentemente, integrando a Missão a Gaza e pude ver como Israel impõe um regime de apartheid aos palestinos. É uma situação desumana, que não pode continuar. Por isso, queremos que Gil e Caetano não cantem em Israel.”
Leia a carta encaminhada
Querido Gilberto Gil,
Muitas cartas foram escritas a Caetano Veloso recentemente. Esta é para você, que já faz parte da história de grandes momentos do Fórum Social Mundial, no qual tantas vezes nos encontramos. Você esteve conosco em Mumbai e em Túnis e não podemos esquecer das vezes em que, como músico ou como ministro, juntou-se a nós em Porto Alegre, nos nossos laboratórios de ativismo cultural.
Na Tunísia, em 2013, você nos deliciou com seu show, mas talvez não tenha tido a oportunidade presenciar uma das maiores marchas, senão a maior, da história do Fórum Social Mundial, quando milhares de pessoas, de várias partes do mundo, que estiveram naquele encontro, muitas das quais ainda cantarolavam suas canções, ocuparam a grande avenida que conduz do centro de Túnis à Embaixada da Palestina e caminharam quilômetros e quilômetros para dizer não à ocupação promovida pelo Estado de Israel. Não terá havido na história do FSM marcha mais demorada, de um dia todo, até o anoitecer, de gente caminhando para manifestar seu afeto e disposição de somar forças com o povo palestino, contra a ocupação, os chekpoints, o apartheid.
Um dia antes, pessoas das várias nações reunidas em Túnis, e muitas mesmo do Brasil, se encontraram para proclamar como estratégia da solidariedade e da busca da paz, a saída não violenta do BDS: a campanha mundial de Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel, até que a Palestina seja livre.
Esta decisão apenas referendou um outro processo, muito mais difícil, demorado e delicado, que as várias expressões da luta palestina conduziram dentro de casa, até chegar a um consenso sobre a estratégia que melhor funcionaria para promover o recuo de Israel em sua tenebrosa sanha da ocupação: o chamado mundial a uma campanha BDS, em que o componente cultural é um elemento de grande sensibilização.
Nós, que nos solidarizamos com o povo palestino, acatamos a mensagem, e nos somamos a essa campanha, reafirmando o compromisso com ela, nos fóruns temáticos do Brasil, no fórum de 2013 e no mais recente que ocorreu outra vez na Tunísia, neste ano de 2015.
A construção do BDS tem sido um demorado processo, que enfrenta inclusive a poderosa propaganda que estigmatiza o povo palestino e trata uma situação de resistência como um antigo conflito étnico e religioso e entre forças iguais. Não é igual, não é antigo. Começou em 1948, quando palestinos históricos (e a Palestina era formada por muçulmanos, cristãos e judeus), foram arrancados de suas casas e transformados em refugiados. Os símbolos religiosos invocados pelo Estado de Israel - expropriação que muitos judeus pelo mundo denunciam – são utilizados como escudo para preservar um estado de apartheid.
Ao longo da persistente construção do BDS, você esteve algumas vezes se apresentando em Tel-Aviv. É compreensível que tenha lhe parecido uma campanha mais ativista que cultural, sem peso para mudar as coisas no mundo do showbizz. E de fato, nada aconteceu pelo fato de você ter ido.
Temos lido essa sua declaração como justificativa para ir mais uma vez a Tel-Aviv, e também para explicar a Caetano que ir a Israel não é de fato um problema. Voce já foi antes e nada aconteceu. E se nada aconteceu, por que não fazer seu show em Tel-Aviv uma vez mais?
Hoje, como você pode ver, a consciência de que é preciso fazer uma ação coordenada de solidariedade ao povo palestino, através do BDS, que obrigue Israel a por fim à ocupação, já é muito maior do que nas outras vezes. Mas, de fato Gil, a sua decisão de ir a Israel talvez não mude nada, talvez até ajude a manter e a naturalizar as coisas como estão. Não temos dúvida sobre o uso do seu show com Caetano para que nada mude na relação de Israel com o povo palestino. Mas servir de propaganda de normalidade para um Estado ocupante não combina com você, não combina com Caetano Veloso, não combina com a história da Tropicália, que voces irão celebrar.
O mundo, infelizmente, estará celebrando outra coisa. Você e Caetano irão a Israel agora em julho, quando se completa um ano dos massacres em Gaza, contra o qual todas as organizações e movimentos sociais ligados ao FSM se levantaram em 2014. Foi inclusive o motivo para que várias organizações do Conselho Internacional do FSM aprovassem uma Missão Humanitária a Gaza - que no entanto só chegou à Cisjordânia, por ter sido barrada por Israel. Agora, novamente, vimos uma Flotilha Humanitária barrada nas águas que cercam a Faixa de Gaza. É incrível como a solidariedade com um povo devastado por crimes de lesa-humanidade é algo que incomoda o poderoso Estado de Israel.
O massacre de Gaza está sendo lembrado em todo planeta. Será muito triste que, enquanto isso, voces estejam cantando para um público apoiador daqueles massacres. Foi o que vimos na imprensa, nas pesquisas, e nas demonstrações públicas de simpatia do povo israelense à destruição sem fim dos habitantes históricos das terras palestinas. Por isso pedimos a você e a Caetano que mudem de ideia. Que anunciem o cancelamento de seu show. Aqueles que, lá, se colocam contra a ocupação, certamente entenderão e apoiarão esse gesto.
Seria realmente importante, se vocês pudessem ir à Gaza, em vez de Tel-Aviv, para ver com seus olhos o que foi feito das casas, cidades, escolas e hospitais, das famílias que vivem ou viviam lá. Algumas famílias inteiras, das bisavós aos bebês, tios, primos, irmãs e irmãos foram aniquilados - verdadeiros genocídios concentrados em famílias inteiras foram praticados diante dos nossos olhos, expostos nas redes sociais.
Se vocês pudessem ir à Cisjordânia, em vez de Tel-Aviv, poderiam ver as placas de carros de cores diferentes, para estradas de qualidades diferentes, para seres humanos que o Estado de Israel separa como diferentes. O apartheid é praticado ali com toda sua força. Se você tomar um ônibus de Ramalah para Jerusalém, poderá seguir tranquilo até o destino. Mas no meio do caminho verá os palestinos sendo retirados desse ônibus, para submeterem seus corpos, bagagens e documentos aos soldados do check-point de Israel. Eles não voltarão, porque esse ônibus não vai esperar por eles.
Se vocês visitarem o bairro árabe de Sheikh Jarrah de Jerusalém, onde mora o senhor Nabeel e sua família, verão que a parte da frente dessa casa foi tomada por um colono americano que pode hostilizar os moradores dos fundos quantas vezes quiser. A polícia israelense não irá importuná-lo. Porque ele está ali para isso mesmo - convencer aquela família a deixar, humilhada, sua casa invadida em Jerusalém. Podemos lhe dar o endereço. Você poderá ver com seus olhos.
Se voces forem ao Vale do Jordão, procurem o caminho que leva ao vilarejo de Fasayil. Não será difícil. Logo vocês verão uma placa: caminho para uma vila Palestina, perigo para Israelenses. Sim, isso é uma placa de trânsito, seus guias não estarão traduzindo mal as inscrições do hebraico. E se vocês chegarem à vila, encontrarão palestinos arrancando barro do chão dos quintais, para refazer tijolos, para reeguer as paredes, das casas e escola destruidas pelos colonos.
Não vamos falar da água, Gil. Va lá e veja por si mesmo. Quanto da água palestina os palestinos podem beber? Quanto cabe aos ocupantes? Mas olhe para cima de todas as casas e prédios palestinos, e voce verá apenas caixas d’água pretas. Fica fácil saber onde estão as famílias ocupantes e as ocupadas, fica fácil ver o apartheid de água. Convide Caetano para essa inusitada experiência. E sobre isto, não importam as explicações, tirem as suas conclusões.
Gil, você é uma das poucas pessoas no mundo que tem condições de ir onde quiser, escolher a quem se apresentar, e pode se informar por conta própria sobre o que se passa nas terras ocupadas pelos soldados e milicianos de Israel. Se quiser tanto assim, apesar dos apelos, vá a Tel-Aviv, e cante para Israel. Mas por favor não tente interpretar a realidade palestina pelos olhos dos colonos armados até os dentes, cercados de muros, e baseados em assentamentos ilegais. Não pense que as atrocidades contra a Palestina se explicam apenas pela política extremista de Netanyahu, e procure saber mais sobre todo o projeto sionista que decretou a não existência do povo palestino - esse povo cujas crianças nós vemos a ocupação dizimar dia após dia. Crianças que não existem, pela lógica da ocupação.
Talvez você vá, e talvez nada aconteça, mais uma vez. Mas isso, querido Gil, é que será o lado mais triste do que significará o show de vocês. Claro que nossa rejeição é voltada à ocupação e ao apartheid praticado por Israel. Jamais a você ou a Caetano, que são objeto do nosso amor e admiração. Com vocês aprendemos muito. Que o amor é como um grão, de pura beleza, e por isso teimamos em cultivá-lo. E que a força da grana ergue, mas também destrói as coisas belas.
Gil
’A você e Caetano, pedimos: não cantem para o apartheid
Quem assina
Coletivo facilitador do processo FSM Brasil - Tunis 2015 ( formado pelas organizações brasileiras do Conselho Internacional do FSM;
Abong,
Ciranda,
CUT,
Fdim,
Flacso,
Geledes,
Instituto Paulo Freire
Organizações brasileiras integrantes da Missão Gaza - FSM 2015 (aprovada em reunião do Conselho Internacional do FSM em Hammamed-Tunisia 2014 e apoiada pelo Coletivo FSM Brasil-Tunis)
Cebrapaz,
Ciranda,
CUT,
Conlutas,
Frente Brasileira de Solidariedade ao Povo Palestino
Integrantes do Conselho Internacional do FSM no Brasil
Chico Whitaker
Damien Hazard
Liège Rocha
Nilza Iraci
Rita Freire
Salete Valesan
Sheila Ceccon
Leonardo Vieira
Rogerio Pantoja
Brasileiros na Missão Gaza
Aline Baker - fotógrafa, familiar de Islam Hamed, preso político em greve de fome
Soraya Misleh - jornalista brasileira, filha de palestinos - barrada por Israel
Mohamad Kadri - liderança da comunidade árabe no Brasil - barrado por Israel
Lucia Rodrigues - jornalista
Eliane Goncalves - jornalista
Rita Freire - jornalista
Gal Souza - historiadora
Leonardo Vieira - sindicalista
Rogerio Pantoja - sindicalista
Fabio Bosco - sindicalista
Moara Crivelente - jornalista
Luiz Alberto Junqueira de Carvalho - jornalista
Fonte: Caros Amigos
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