Alfredo Buzaid foi ministro da Justiça e homem forte durante os Anos de Chumbo
Por Renan Quinalha, no Justificando
Após mais de dois anos de trabalho, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” celebrou, com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, um convênio para que esta postulasse, em favor das famílias de mortos e desaparecidos, a retificação do assento de óbito das pessoas que foram perseguidas e assassinadas pelos órgãos da repressão sob versões falsas.
Com efeito, durante a ditadura, como já é bastante conhecido - e como ainda infelizmente segue ocorrendo na democracia com os "autos de resistência" -, a violência do Estado foi sistematicamente praticada e, tão grave quanto, foi geralmente acobertada na fase de produção de documentos oficiais, como, por exemplo, o atestado de óbito das vítimas.
Pode-se afirmar, inclusive, que uma das principais dimensões da colaboração civil com os militares foi operada pelos órgãos de perícia criminalística e médico-legal, com chancela do sistema de justiça (Ministérios Públicos e Poder Judiciário), que deveriam fiscalizar eventuais abusos e desvios daqueles órgãos.
Desse modo, foi recorrente a existência de médicos comprometidos com o aparato repressivo que vendiam laudos que não apontavam as reais causas das mortes, delegados que forjavam provas e versões falsas como "suicídios" e "atropelamentos", peritos que também comercializavam suas conclusões "técnicas" e promotores que arquivavam inquéritos. Tudo isso com respaldo de juízes que fechavam os olhos e afiançavam todo esse complexo sistema de ocultação de cadáveres e de verdades.
Daí a importância desse projeto da Comissão da Verdade e da Defensoria Pública de São Paulo para retificar os atestados de óbito dos mortos e desaparecidos da ditadura civil-militar. Trata-se não só de fidelidade com a realidade dos fatos, mas também de uma política pública de reparação para as famílias, que até hoje seguem com documentos e histórias falsas sobre seus entes queridos.
No entanto, mais uma vez, parcela do Poder Judiciário demonstra total insensibilidade do ponto de vista humano e completa falta de compromisso democrático com os direitos fundamentais. Em algumas das ações movidas, o Judiciário não tem deferido o pedido para que conste como causa da morte a "tortura praticada por agentes do Estado" sob alegação de que não há respaldo legal em nossa legislação ordinária para tanto e que deveria haver prova de que isso de fato aconteceu.
Ora, impossível haver mais provas. Todos os casos apresentados foram já reconhecidos como de responsabilidade do Estado brasileiro por órgãos oficiais, como a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos (Lei 9.140/95) e pela Comissão Nacional da Verdade (Lei 12.528/11), com muitas provas já acostadas aos processos administrativos que embasaram essa conclusão inclusive com pagamento de indenizações aos familiares. Não se justifica, assim, essa resistência do Poder Judiciário em se alinhar ao que outros órgãos do Estado brasileiro já atestaram com prerrogativa legal para tanto.
Mas há algo pior que quero destacar neste artigo. Neste mês de julho, em uma dessas ações ajuizadas pela Defensoria Pública, autuada sob o n. 1031423-64.2014.8.26.0100 perante a 2 Vara de Registros Públicos de São Paulo, referente ao caso do dirigente comunista Carlos Nicolau Danielli[1], a juíza Renata Lima Pinto Zanetta, por tremendo descuido ou por uma provocação mesmo, aspecto que cabe à magistrada esclarecer, evocou como fundamento não o Código de Processo Civil no dispositivo de sua decisão, mas o "Código Buzaid".
Isso é um absurdo por diversas razões.
Alfredo Buzaid, de triste lembrança, foi um processualista que ocupou diversas posições de prestígio durante a ditadura civil-militar. De professor de da Faculdade de Direito da USP, virou diretor de unidade, reitor da universidade, até chegar a Ministro da Justiça em um dos momentos mais truculentos do autoritarismo do Estado, o governo de Emílio G. Médici. Foi este quem investiu Buzaid da tarefa de uma nova codificação da legislação processual civil.
Alguns mais antigos, por essa razão, referiam-se ao Código de Processo Civil de 1973 como “Código Buzaid”.
No entanto, sem negar os méritos intelectuais de Buzaid e sua contribuição para o direito processual civil brasileiro, um diploma legal dessa envergadura não é obra de uma única pessoa e nem pode ser assim chamado. Péssima mania do mundo do direito de prestar tributo com homenagens de nomeação. A Constituição é do povo brasileiro, não de Ulysses Guimarães. O Código Civil não é de Miguel Reale.
Ademais, a obrigação da magistrada é referenciar em caráter oficial a lei utilizada por fundamento, que se chama Código de Processo Civil. Se ela estivesse em uma discussão doutrinária, que optasse pela referencia que melhor lhe atendesse, mas na decisão judicial não há sentido.
Por fim, citar em uma decisão o nome de Buzaid, que defendeu os atos mais arbitrários da ditadura como o AI-5, nos autos de um processo que tem por objeto justamente a violência da ditadura, além de ser uma falta de bom senso, é sintoma do conservadorismo que ainda ocupa nosso sistema de justiça.
Que o novo Código de Processo Civil seja acompanhado de uma nova mentalidade democrática, com cultura de respeito aos direitos humanos, de juízes sensíveis ao sofrimento de famílias que tiveram seu entes queridos desaparecidos por agentes do Estado.
Renan Quinalha é advogado e militante de direitos humanos, com formação em Direito e em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu o Mestrado em Sociologia do Direito e, atualmente, cursa o Doutorado em Relações Internacionais. É membro da diretoria do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição (IDEJUST), do Conselho de Orientação Cultura do Memorial da Resistência e foi assessor da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Publicou o livro intitulado “Justiça de Transição: contornos do conceito” (2013) e, junto com James Green, o livro Ditadura e Homossexualidades (EdUFSCar, 2014).
Fonte: Caros Amigos
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