As recaídas da crise mundial mostram a urgência de um poder capaz de colocar as coisas no papel de coisas; e devolver à sociedade o comando do seu destino
Lula e ou Dilma conversar com FHC, Sarney ou Collor? Nenhuma anomalia. Em política conversa-se com quem representa parcelas da sociedade.
Em plena Guerra Fria, com mísseis e artefatos atômicos mutuamente direcionados, mandatários dos EUA e da então União Soviética, no caso, Kennedy e Kruschev mantinham a conversa em dia.
O famoso telefone vermelho, uma linha exclusiva de telex –um avô do twitter-- entre os respectivos gabinetes, assegurava a comunicação direta entre as lideranças dos dois lados. Algum bom senso bilateral cuidou disso, em meio à lógica demencial da guerra nuclear.
Outra coisa bem diferente é enxergar aí a chave para a superação dos gargalos que ora engessam a transição de ciclo de desenvolvimento brasileiro.
Cometer essa impropriedade, equivale, mutatis mutandis, a cogitar uma saída para a crise política na mesma chave imaginada para encruzilhada econômica.
Aquela que nomeou um centurião dos mercados para conduzir a travessia.
Acossado pelo Estado midiático, que distribui sentenças e degolas como o seu homólogo islâmico, uma espécie de sultanato golpista no interior da sociedade, o governo cometeu ali um tropeço.
Com gravidade sabida, e recuperação desejável, torceu o pé esquerdo.
Ao invés da desafiadora repactuação do desenvolvimento, amparada em câmaras tripartites (Estado, centrais, empresas), assustou-se com a crispação do Estado Midiático.
Rendeu-se à ilusão de que existe uma receita ortodoxa capaz de promover a transição de ciclo de crescimento, sem a trabalhosa construção das linhas de passagem que as travessias históricas exigem.
Durou seis meses.
A miragem se desfez no cavalo de pau da semana passada.
A meta-síntese do processo, o superávit fiscal de 1,2% do PIB, foi revogada pela impossibilidade física de se compatibilizar recessão com a arrecadação.
Hoje, os milicianos do Estado Midiático, entre eles, moças e rapazes assertivos na defesa do mercado financeiro, declaram-se ‘surpresos’ com o tamanho do buraco escavado pelos cortes de gastos recessivos e juros siderais.
Distraídos, tampouco haviam percebido o tamanho da contração internacional que há 11 meses comprime os embarques do país e já derrubou as cotações de commodities ao menor nível em 13 anos.
É nesse lusco-fusco surpreendente para quem ainda acha que o Brasil é uma ilha de crise em um planeta cercado de prosperidade por todos os lados, que emerge o aceno a FHC.
Possivelmente, tenha sido articulado pelo mesmo bureau que catapultou Joaquim Levy à condição de Comodoro da Salvação Nacional.
Antonio Gramsci, morto em 1937, cunhou a melhor síntese desses períodos errantes em que o velho já morreu e o novo ainda não consegue nascer. ‘Nesse interregno’, advertiu, ‘aparece toda uma série de sintomas mórbidos’.
Que poderia haver de mais mórbido em meio a esse arrastado nevoeiro do que supor que do ex-presidente tucano possa vir alguma luz substantiva? Trata-se, por mérito, de uma referência local da espessa penumbra ideológica, dentro da qual a economia do planeta patina em falso há oito anos –e na qual se quer agora mergulhar integralmente o Brasil.
FHC, Serra e outros valem-se do limbo pegajoso dos dias que correm para insistir em políticas e agendas condenadas, mas ainda não substituídas no plano mundial --o que dificulta a sua ruptura definitiva também no país e, mais grave, no próprio campo progressista.
Debater com FHC esse chão movediço traz a angústia das reiterações inúteis.
Em pleno colapso neoliberal, a América Latina logrou preservar baixas taxas de pobreza e desemprego, com alguma retomada de investimento.
A expectativa de que o vendaval da crise pudesse amainar depressa ancorava-se, como se viu, na subestimação da dominância financeira intrínseca à natureza do problema, que agregou desafios adicionais ao poder das políticas contracíclicas para repor o fôlego e o rumo da economia.
Desfeita a miragem de uma turbulência passageira verifica-se que os avanços de agora em diante serão mais difíceis.
Após vitórias significativas contra a pobreza, ir além, em tempos de vacas magras, no pasto ralo das commodities, implica afrontar a desigualdade nos seus alicerces estruturais. Ou seja, ali onde se sedimenta o estoque da riqueza (seja na esfera fundiária, urbana, patrimonial, tributária ou financeira).
A tentação em se buscar um atalho conservador que devolva a economia ao trilho um pouco mais adiante é grande.
Mas inútil.
Fábulas amenas de retorno a um mundo de desconcentração financeira amigável e produtiva, sob o comando dos mercados, custam caro.
No final, não entregam o prometido.
É esse purgatório em dimensões compactas que o Brasil acaba de experimentar.
A alternativa com capacidade para fazê-lo passa por um aggiornamento da capacidade do Estado repactuar democraticamente o desenvolvimento com as forças da sociedade.
Regulação é a palavra-chave.
Não significa centralismo obscurantista, mas sim subordinação do capital financeiro ao escrutínio da sociedade e seu retorno ao papel de alavanca da produção.
Da pequena e valente Islândia vem um segredo do edifício: o controle de capitais, para que a sociedade não se reduza a um refém dos circuitos especulativos.
A concentração de capitais, a formação de grandes fundos é uma necessidade intrínseca à escala dos financiamentos requeridos pelas demandas por infraestrutura, planos de universalização de serviços e direitos, ademais da reordenação ambiental.
Essa agregação de grandes massas de captais terá que ser feita por alguém.
Cartéis dilapidadores ou o Estado democrático?
O colapso neoliberal mostra para onde a coisa caminhou quando os mercados ficaram livres para manipular o crédito, o financiamento e o juro a serviço de estripulias especulativas dissociadas do circuito da produção e das necessidades da civilização.
As recidivas da crise mundial –como as desta 2ª feira de bolsas em transe-- evidenciam a urgência de um poder de coordenação, capaz de colocar as coisas no papel de coisas; e devolver à sociedade o comando do seu destino.
Todo o desafio brasileiro hoje gira em torno desse nó górdio.
FHC é a garganta profunda dos interesses contrários a isso.
A questão que se coloca às forças progressistas, portanto, é de urgência transparente: quanto tempo o futuro ainda pode esperar antes que manifestações mórbidas, que ele representa, acabem se impondo à sociedade com sua agenda zumbi?
É desse prisma que se deve avaliar a descabida ilusão no diálogo com o anacrônico para nos salvar do regressivo.
A mídia tanto insiste que às vezes até setores do governo e do PT parecem acreditar.
É preciso deixar claro: o nome da crise é capitalismo desgovernado, não Estado, não Dilma, não esquerda, não ‘petistas corrompidos’ – ainda que os haja, como em todas as dimensões da política, do mercado e da sociedade.
A esquerda tem sua penitência a pagar nesse banco de areia movediça. Mas uma coisa é diferente da outra.
O conservadorismo só tem a oferecer um retorno à matriz do desmazelo, embarcando o país nas virtudes que jogaram o planeta no pântano atual.
O governo tem muito a ganhar se, de fato, como se acena, ao lado das forças progressistas, afrontar os uivos dessa matilha, a partir da experiência fracassada com Levy.
Se não o fizer, ficará, aí sim, refém da supremacia financeira que prescreve para a desordem atual poções adicionais do veneno que a originou.
Mais grave de tudo: a hesitação confundirá a opinião pública desobrigando-a do indispensável engajamento para instaurar uma outra dinâmica no desenvolvimento do país.
Não se trata de idealizar a força do proselitismo heroico.
Está em jogo dilatar ou não a margem de manobra do Estado brasileiro para contrastar a estagnação mundial e tudo aquilo que ela representa de regressão nos avanços recém conquistados pelo povo brasileiro.
Desenvolvimento é transformação; é coordenar recursos, mas também expectativas, energias, forças e consentimento em direção a objetivos prioritários.
Conversar ou não com FHC é questiúncula.
Passa a ser um problema quando reflete a hesitação diante da tarefa de vida ou morte hoje.
Qual seja, coordenar um novo pacto com as forças que, verdadeiramente querem, podem e precisam coordenar o passo seguinte do desenvolvimento da economia e da sociedade.
Nessa encruzilhada, há conversas que fazem a hora e outras que esperam acontecer.
O Brasil precisa, desesperadamenete, das conversas que fazem a hora.
Fonte: Carta Maior
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