Programa levou mais de 300 profissionais para áreas indígenas; estrutura e falta de conhecimento da cultura indígena são os principais obstáculos
Áreas remotas e de difícil acesso. Essa é uma realidade comum para comunidades indígenas em todo o país. Na prática, essa condição resulta em dificuldades para o acesso a serviços públicos fundamentais, como o direito à saúde. Desde 2013, quando os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei) foram definidos como áreas prioritárias para recebimento de profissionais do Mais Médicos, essa realidade está mudando.
Na linha de frente deste trabalho: os médicos cubanos. Eles representam quase 11,5 mil dos mais de 18 mil profissionais do programa e atendem, sobretudo, áreas historicamente desassistidas. “Na Amazônia, havia lugares em que não existia médico. Muitas vezes, eu chego em lugares e os pacientes me perguntam: ‘O senhor é cubano?’ E eu respondo: ‘Não eu sou brasileiro’. E a resposta, na maioria das vezes é: ‘Eu não sabia que existiam médicos brasileiros que atendiam a gente [índios]’”, relata Rafael Sacramento, coordenador do Mais Médicos na região do médio Rio Solimões.
De acordo com a Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, os Dsei receberam 307 profissionais desde outubro de 2013. Os 34 distritos espalhados pelo Brasil contam agora com 513 médicos e um novo edital garantirá mais 35 a partir deste mês, informou o órgão.
Entre as dificuldades enfrentadas pela população desses territórios, estava a manutenção dos profissionais no local por causa de problemas logísticos. Hoje, eles se revezam e ficam de 15 a 20 dias em áreas indígenas e passam o restante do mês em cidades mais próximas.
Tem Mais Médicos no Oiapoque
A 590 quilômetros de Macapá (AP), indíos Palikur da aldeia Kumenê, no Oiapoque, estão retomando os saberes da medicina tradicional com a ajuda do médico cubano Javier Lopez Salazar.
Ele buscou os professores da escola local para fazer uma campanha de conscientização sobre a importância da medicina tradicional, ao mesmo tempo em que resgatava esses saberes com a população mais velha da aldeia.
“Esta é uma aldeia evangélica há mais de trinta anos, e muitas vertentes da sua cultura foram mudadas. Eles deixaram de acreditar em plantas medicinais, até a minha chegada aqui. Pouco a pouco, com a equipe de saúde, fomos convencendo as pessoas”, apontou.
A iniciativa foi apoiada pelo cacique Azarias Ioio Iaparrá. “Eu disse para o médico que nós tínhamos esse conhecimento, do remédio caseiro. Ele então reuniu as comunidades, chamou os idosos, todos nós conversamos. E hoje em dia ele fez a comunidade ver a importância disso, a horta está lá, tão bonita. Ele veio e mostrou o conhecimento dele”, explicou.
Luis Otávio Sarges, chefe da Casa de Saúde Indígena do Oiapoque, explicou os avanços na qualidade de vida que o programa, com três médicos cubanos, trouxe para a comunidade Oiapoque.
“O médico cubano vem para fazer o serviço de atenção básica. Eu não preciso mais levar esse indígena para Oiapoque para fazer esse serviço. Quando os indígenas são encaminhados por eles para as cidades, em 90% dos casos já se trata de atendimento de média e alta complexidade, porque a base já foi feita aqui. E isso é um enorme diferencial de qualidade de vida e saúde para as populações”, avaliou.
Problemas de estrutura
No início do programa, uma das preocupações dos profissionais era com a estrutura que seria disponibilizada. Halana Farias, coordenadora do programa na calha do Rio Madeira, acredita que a situação tem melhorado.
“Eles [os cubanos] têm esse perfil de entendimento do seu papel social e isso possibilita que algumas coisas comecem a funcionar de forma um pouco mais estruturada, por exemplo, a chegada de medicamentos, a melhoria da estrutura de alguns polos bases, a garantia de combustível para o transporte. Eu vejo essa relação como muito promissora”, avaliou.
Entre as dificuldades, Rafael Sacramento chama atenção para o sistema de licitação, que muitas vezes não leva em conta problemas que são pontuais daquela região, como as cheias dos rios e problemas com transporte.
“Às vezes, a empresa que ganha a licitação é do Rio Grande do Sul ou interior de São Paulo e, quando ela percebe os custos e as dificuldades do transporte, ela rescinde o contrato ou simplesmente não cumpre. Existe também um problema logístico, porque tem a época de chuvas, quando o rio está cheio, e a navegabilidade é muito alta, mas quando o rio está baixo os barcos maiores não passam. Você só consegue fazer obras durante quatro meses do ano. Na questão da estrutura, muitas vezes, a coisa não melhorou por incompetência política; outras vezes, porque as empresas não cumprem os contratos”, opina.
Desafios da saúde indígena
Além dos desafios estruturais, os profissionais ainda têm de enfrentar as dificuldades específicas dos cuidados com os indígenas. Para ajudar a enfrentá-los, o programa disponibiliza para os profissionais um curso de pós-graduação à distância pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), voltado na área de saúde indígena, que discute temas como antropologia.
“Quando você vai ver uma dia de atendimento médico nessas aldeias, cai por terra toda aquela ideia de estrutura necessária para o atendimento. Muitas vezes, ele acontece do jeito que dá, em uma escola, em um local onde a comunidade se encontra”, aponta Halana.
Rafael alerta para a hipermedicalização da população indígena. Para ele a solução passa pela ressignificação do papel do profissional de saúde, retirando-o do protagonismo no processo de saúde e aumentando a independência que as tribos têm dos profissionais. Para ele, o médico não é mais o dono do conhecimento, mas um catalizador que tira da “situação de doença” e leva para a “situação de saúde”.
“Você tem populações com 300 anos de contato conosco, que já entendem a relação com o médico, e populações que têm um contato mais recente, com uma outra relação com medicamentos. Como você vai receitar alguma coisa pra um índio que conta até cinco e não conjuga verbo no futuro? Como você vai explicar pra ele um tratamento de seis meses? Isso é muito complicado e a gente acaba tendo que fazer de caso a caso. Outro foco importante é a manutenção de saúde com intervenção mínima, a presença constante do profissional não é necessariamente positiva. Você faz o seu trabalho e permite que a comunidade se mantenha saudável independente da sua presença”, conclui.
*Com informações do site da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas)
Fonte: Carta Maior
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