terça-feira, 28 de julho de 2015

BRASIL: PARTO HUMANIZADO, O QUE EXPLICA A SEDE DA IMPRENSA POR SANGUE?


Ato pela humanização do parto, em frente ao Hospital Maternidade Maria Amélia Buarque de Hollanda, no Rio de Janeiro

O caso da morte da professora de enfermagem defensora do parto humanizado evidencia um confronto mal dissimulado contra o parto vaginal

Professora morre depois de tentar parto humanizado por 48h

A professora de enfermagem da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos), Mariana de Oliveira Fonseca Machado, de 30 anos, morreu na terça-feira (21) após tentar fazer um parto humanizado em sua casa, em São Carlos, no interior de São Paulo”. (Estadão, 24 de julho de 2015).

Quando li a chamada da matéria acima, minha primeira impressão foi um sentimento de solidariedade para com os familiares, amigos, colegas e estudantes da professora falecida. Pensei nessa situação contraditória de receber o recém-nascido e despedir de sua mãe. Mas logo depois pensei porque estou lendo isso? Por que essa tragédia privada virou uma notícia?

Para que um caso clínico vire notícia usualmente há dois motivos: a doença de um paciente com notoriedade pública ou razões de saúde pública. Temos assim que as doenças dos chefes de estado são notícias relevantes considerando seu potencial de afetar sua capacidade no exercício do poder.

O exemplo do segundo caso foi a suspeita de contaminação por Ebola. Nesse tipo de casos, não é necessário conhecer detalhes como o nome ou a identificação do paciente, como foi injustamente revelado em muitos casos, por não acrescentar em nada a informação e expor ao paciente à discriminação.

Não há nenhuma dessas razões no caso da professora. Seu cargo não revestia-se de notoriedade particular nem padecia de afecção que poderia afetar a saúde pública. Mas os jornalistas que foram atrás da notícia e os editores que decidiram publicá-la estavam atrás de algo a mais: acirrar um confronto.

Esquecem-se de qualquer remorso, conhecem a posição da professora em relação ao desproporcionado percentual de cesarianas no Brasil e a defesa dos direitos da mulher em procedimentos obstétricos e, sem apurar os fatos, oferecem uma história para apoiar aos contraditores dos argumentos defendidos em vida pela professora.

A partir daí, há tanta coisa errada que é difícil saber por onde começar essa análise. O que faz desses jornalistas e editores, mediadores da relação entre o fato e a sociedade, ficar sedentos de sangue? Como ousam atropelar a intimidade de uma família no meio de uma tragédia e violar a privacidade de uma paciente, revelando fragmentos descontextualizados de seu prontuário clínico? Mas pior ainda é a acolhida desprovida de solidariedade humana por parte de alguns leitores da notícia.

Em todo o mundo, o Brasil é o país com o maior número de cirurgias cesarianas

Os comentários de alguns colegas médicos são particularmente dolorosos para mim. No meio de um confronto mal dissimulado contra o parto vaginal, o parto domiciliar, as doulas, as obstetrizes, exaltam a notícia como troféu de guerra.

Eles são a outra parte do confronto que queria ser acirrado por jornalistas e editores vampiros. Sua desumanidade chega quase a comemorar a tragédia, mas seu ódio é tão profundo que cega seu treinamento clínico e não percebem que os dados apresentados são insuficientes para poder avaliar o que aconteceu.

Afinal, não há razão pela qual a causa da morte da professora seja relevante como notícia. Seja qual for a razão, as condutas de saúde pública na área obstétrica não são tomadas por casos isolados, mas por largas casuísticas que apoiam a evidência científica para sustentar políticas de saúde e recomendações clínicas.

O acontecido deveria permanecer como um assunto particular. A privacidade do prontuário clínico deveria se manter conforme os desejos da família e não atender aos interesses escusos de partes em confronto ou de imprensa urubu.

Infelizmente, a família e os colegas da universidade em luto tiveram que se ocupar em fornecer detalhes desse prontuário para tentar forçar os meios de comunicação a esclarecer a notícia.

Em todo esse caso, posso afirmar que houve sim um fato que ainda precisa ser noticiado, mas com um gênero jornalístico diferente. Quando uma pessoa pública numa sociedade falece, o tipo de notícia apropriado para destacar sua biografia é conhecido como obituário.

A criança sobrevivente, os familiares, amigos, colegas e estudantes merecem que esses mesmos meios de comunicação que não duvidaram em divulgar uma notícia tergiversada publiquem agora, como desagravo, um obituário apropriado que faça jus à história de vida de uma mulher que construiu uma carreira e defendeu causas e que infelizmente perdemos precocemente.

* Ricardo Palacios é médico. Foi consultor da Organização Mundial da Saúde.


Fonte: Carta Capital

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