Nas varandas gourmets se promovem churrascos e panelaços com vista para o mar. Mas o sistema de saneamento básico é o mais deficiente da cidade.
No documentário Carioca era um rio, de Simplício Neto, um dos entrevistados no filme, o biólogo Mario Moscatelli, observa: “se perguntarem a um carioca onde fica algum dosshoppings centers da cidade todo mundo sabe. Se indagarem onde é a Lagoa de Camorim ou o Rio Carioca duvido que alguém consiga responder”.
Isto ocorre, entre as razões que contrapõem ignorância e uma lamentável cultura de inutilidades, porque o Carioca, rio que virou gentílico dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro, hoje é um canal de esgoto submerso que atravessa, tapado, diversas ruas e avenidas para desaguar, imundo, na Baía de Guanabara.
Infelizmente, o rio é também a história do desenvolvimento urbano nas grandes cidades brasileiras que está se repetindo, de modo contundente, agora, na Barra da Tijuca e no Recreio dos Bandeirantes, os bairros que replicam as contradições da Cidade Maravilhosa, por natureza, e metrópole caótica, pela mão do homem.
"O Carioca hoje é uma cloaca, uma língua negra", constatam historiadores, engenheiros e arquitetos figurantes do filme. Um deles, o historiador Milton Teixeira, lembra: "O rio é símbolo da identidade dos cariocas, mas é também a metáfora da ocupação desordenada da cidade, de políticas públicas equivocadas, da especulação imobiliária que está no gênesis da fundação do Rio e agora é o fruto da lastimável história do saneamento da cidade".
A observação leva uma moradora da Barra da Tijuca a comentar: "Daqui a uma, duas gerações, quem vai saber o que era a Lagoa de Marapendi ou a Lagoa da Tijuca?". Ninguém nem vai lembrar. Atulhadas de lixo e poluídas pelo esgoto, elas possivelmente estarão aterradas.
Ocupada de forma desordenada, a Zona Oeste do Rio concentra quase metade da população do município e não para de crescer. Única região costeira da cidade ainda com espaço disponível, é a última fronteira urbana da capital fluminense. Todos os grandes investimentos imobiliários estão concentrados lá. Os imóveis têm um dos metros quadrados mais valorizados do país, mas são atendidos pelo sistema de saneamento básico mais deficiente da cidade.
Os candidatos a proprietários apostam na rentabilidade imediata do investimento, mas não se preocupam em pedir a quem vende que entregue também esgoto em funcionamento. Nas varandas gourmets se promovem churrascos e panelaços com vista para o mar cada vez mais poluído.
Alguns desses empreendimentos constituem bairros planejados, inclusive com esgotamento sanitário. É o caso do Ilha Pura, que expulsou 600 famílias da Vila Autódromo. Muitos moraram ali por mais de trinta anos, com título de posse da terra, mas nunca tiveram rede de esgoto. O quadro se agrava porque estado e município não têm planejamento coordenado para atender o desenvolvimento da Barra, Recreio e Jacarepaguá. Dos bairros mais afastados da Zona Oeste, como Campo Grande, então, nem se fala.
"Existe muito pouco de planejamento coordenado e articulado para atender o futuro da região ou de qualquer outra parte da cidade. O que se verifica são respostas do poder público a pressões episódicas de grupos de interesses que acabam monopolizando as ações", opina o vice-presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-Rio), Pedro da Luz Moreira. "Há tempos nós defendemos que as ações de plano e projeto devem se antecipar, direcionar e aglutinar esforços para construir uma cidade mais justa e mais inclusiva na qual todos devem ter acesso às infraestruturas urbanas".
Na visão de arquitetos e urbanistas, ações de melhoria no saneamento melhoram a qualidade de corpos hídricos, que melhoram as condições de vida, que, por sua vez, impactam no valor da terra urbana. A perversidade política sacramentou que esgoto custa caro e não rende voto, mas a contabilidade não leva em conta que cada real investido em saneamento básico economiza outros quatro reais que seriam gastos na rede pública de saúde, estimam os sanitarista da Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
Um estudo da arquiteta e urbanista Gabriela Silva já apontava, em 2006, para a ocupação da Barra da Tijuca, desde os anos 70, como um espaço urbano para grandes investimentos do capital público, mas, sobretudo, do privado. As diretrizes da expansão, três vezes mais acelerada do que as de outras regiões da capital fluminense eram baseadas, especialmente, nos interesses dos grandes incorporadores imobiliários, apesar da ausência de saneamento ambiental que provocaria, diz o trabalho, problemas ambientais e conflitos socioambientais.
No começo do processo de ocupação, os investimentos em infraestrutura eram balizados pelo Plano Piloto do arquiteto e urbanista Lúcio Costa. O projeto ordenava o uso do solo de acordo com uma visão global que articulava o novo centro de negócios da Barra da Tijuca ao centro histórico do Rio e ao novo centro de Santa Cruz, o bairro mais populoso da cidade. A Barra era, então, vendida como a nova zona sul para atrair as camadas de média e alta renda. A concentração de terras nas mãos de apenas quatro grandes proprietários acelerou a especulação com a ajuda do governo federal de então, do ditador-general João Batista Figueiredo.
Os investimentos em infraestrutura, com recursos do Sistema Financeiro de Habitação (SHF), nas décadas de 70 e 80, beneficiaram a produção imobiliária das grandes incorporadoras. A melhoria da rede viária na região permitiu a construção de grandes condomínios residenciais. Implantou-se uma infraestrutura de distribuição de energia elétrica, de abastecimento de água e de gás. Mas o problema do esgotamento sanitário foi resolvido com a entrega da construção de estações de tratamento de esgotos aos próprios condomínios.
A maioria deles fez pouco ou quase nada. Os condôminos, hoje, habitam em apartamentos superconfortáveis, mas frequentam uma praia com cocô e bicho de pé. Se queixam, é claro, mas a solução só começou a aparecer mais recentemente, depois que o estrago estava feito, e em uma velocidade que não acompanha o crescimento da região.
Pior: a política de saneamento estabelecida pela Prefeitura do Rio para atender a demanda, denunciam especialistas, está em desacordo com o Plano Nacional de Saneamento Básico definido pela lei 11.445/2007 e com a Constituição, que reservam ao poder público a atribuição de organizar e assegurar a prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Um dos princípios fundamentais dos serviços de saneamento básico deve ser a universalização do acesso. Sem controle social e orientada por um plano municipal que não contempla essas diretrizes, as intervenções reforçam a desigualdade e privilegiam uma concepção de serviço como mercadoria e não como direito de cidadania.
"Para ampliar o sistema de esgotamento de uma área da Barra da Tijuca, a Prefeitura do Rio apoiou o governo do estado na realização de uma parceria pública-privada (PPP) com incorporadores imobiliários. Para a ampliação e gestão do sistema de esgotamento da Zona Oeste está sendo feita uma concessão onerosa de 25 anos a um grupo privado. Está, assim, se configurando um mosaico de ações e intervenções pautadas na exploração privada dos serviços", diz Ana Lúcia Britto, professora do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Prourb/UFRJ) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles. "Universalização e equidade são palavras chaves para a garantia do acesso ao saneamento como direito de cidadania". É uma boa lição.
Fonte: Carta Capital
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