Fila do ônibus no Vale do Anhangabaú, em 1953 / Stefânia Brill/Acervo Instituto Moreira Salles
Em suas fotos assemelhadas à pintura, Alice Brill devolveu dignidade aos excluídos e à arquitetura da metrópole
Quando Alice Brill chegou em São Paulo, em 1934, qualquer esperança no futuro parecia infundada. Sua Alemanha fora tomada pelos nazistas e a família, dispersa. De toda a destruição, contudo, restara uma arquitetura de beleza, infundida na menina de 14 anos pelo pai. Renomado por seus retratos, como o do cientista Albert Einstein, o pintor Erich cuidara de lhe mostrar as cores e as formas da arte.
E, antes de embarcar a filha no navio cujo destino final era a salvadora terra brasileira, ele a presenteara com uma minicâmera Agfa, tipo caixão, capaz de fotografar em três por quatro. Com o maquinário, Alice registraria suas impressões de viagem à maneira incipiente da pintora em que se tornaria. Não era muito, mas parecia o começo para uma nova forma de expressão. Poucas vezes São Paulo ganharia, por meio de suas fotos realizadas anos depois, um retrato tão digno, pleno do silêncio que hoje parecemos desconhecer.
A cidade de Alice Brill era também sozinha. “A arte significava tudo para mim, refúgio e esperança, o sonho de uma liberdade perdida precocemente diante da adversidade do destino”, escreveu antes de sua morte, aos 93 anos, em 2013. “Encontrei um sentido de vida capaz de me sustentar, apesar da insegurança de um mundo que parecia desabar.”
Armada de geometria e sentimento, ela, que seria apresentada ao Grupo Santa Helena, ao qual pertencia Alfredo Volpi, no fim dos anos 1930, aportaria a partir da década seguinte na revista Habitat, editada por Lina Bo Bardi, para viver do que a fotografia pudesse lhe dar.
A fila de ônibus do Anhangabaú, em 1953 / Alice Brill/ Acervo IMS
Naquela São Paulo que recebia um grande e forçado contingente de imigrantes de origem judaica, dava-se o progresso material decorrente do desenvolvimento urbano e industrial. E em seus novos espaços discutiam-se tanto arte moderna quanto arquitetura, cinema, moda, design e fotografia.
O estado de coisas favorecia desse modo a jovem que não podia contar com muito desde a perda do pai. Desempregado, ele decidira retornar à Alemanha em 1936 e morreria seis anos depois no campo de concentração de Jungfernhof, na Letônia, conforme a família descobriria em décadas seguintes. A pintora, ensaísta e educadora, filha da jornalista Marte, bem compreenderia o papel preponderante da fotografia a ela apresentada por Erich, e não somente na vida cotidiana.
Decidiria aprimorar-se em desenho, pintura, escultura ou gravura em 1946, depois de ganhar bolsas de estudos na New Mexico University, em Albuquerque, e na Art Student’s League, de Nova York. “Na arte contemporânea, fotografia e artes plásticas em alguns casos extremos chegam a confundir-se”, escreveu. No artigo “A função da fotografia na artecontemporânea”, editado pelo jornal O Estado de S. Paulo em junho de 1977, ela lembra que uma imagem pode concretizar uma utopia artística tanto quanto registrar a passagem da vida humana pelo mundo.
Embora a artista não se refira ao seu próprio trabalho nesse texto, identificar-se com a existência daqueles próximos por meio da fotografia foi o que ela fez de forma sistemática entre 1950 e 1960, para depois apenas se dedicar à pintura.
A Catedral da Sé em construção, vista através da janela com um letreiro parcial, e a fila de ônibus do Anhangabaú, em 1953 / Alice Brill/Acervo Instituto Moreira Salles
As 90 fotos presentes na exposição Alice Brill: Impressões ao rés do chão, no Instituto Moreira Salles de São Paulo até 10 de janeiro de 2016, escolhidas pela curadora Giovanna Bragaglia a partir de um acervo de 14 mil imagens, e acrescidas de muitos documentos, não se cansam de lembrar ao espectador essa sua procura pelo homem em cidades tão diversas quanto São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Buenos Aires, ou em regiões como a Ilha do Bananal, onde ela visitou os índios carajás.
Como lembra o historiador da fotografia Boris Kossoy em O Mundo de Alice, catálogo da exposição que comemorava os 90 anos da artista, em 2010, a diversidade temática era uma das características essenciais de seu trabalho, uma estratégia para captar o mundo novo. “Imagens que buscam os anônimos e conhecidos, imagens que buscam o pulsar da vida nos mais diferentes lugares e situações, imagens que buscam, enfim, um mundo pleno de luz, ingênuo e seguro, contraponto das memórias do Velho Mundo em cinzas, inseguro e amedrontador, que ficou no passado além-mar.”
Protesto diante do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1965 / Alice Brill/Instituto Moreira Salles
As fotos realizadas na capital paulista seriam destinadas a um livro comemorativo ao quarto centenário de sua fundação, desejado pelo fundador do Museu de Arte de São Paulo, Pietro Maria Bardi, mas jamais publicado. Na fila do ônibus no Vale do Anhangabaú, está em primeiro plano, diante do fundo esfumaçado e masculino, a mulher que se atém a uma revista, essencial janela para o mundo em 1953.
É a representação de uma paulistana como poderia ser dela própria, sensível à pulsão das multidões da cidade antiga. A composição surge naturalista, plena de declínios, ascendências e triângulos, quando ela se detém nos olhares que hesitam ao lado de uma banca de jornal do Centro, no mesmo ano. E a fotógrafa que retratou sorridentes realizadores como o artista Burle Marx e o arquiteto Villanova Artigas nunca humilha os personagens desconhecidos com sua miséria ou tristeza.
Diante do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1965, época em que teria sido imediato, ou fácil, enxergar as excluídas a partir do alto, ela olha diretamente para as mulheres afirmativas de sua condição feminina, uma delas a amamentar o filho na escadaria.
Alice captou os quatro filhos ainda crianças, e talvez tenha sido uma das primeiras a exercerem a naturalidade fotográfica aplicada ao universo infantil. As imagens da década de 1950 expostas na galeria do Espaço Itaú Frei Caneca mostram meninos curiosos em relação à campainha que ainda não sabem tocar.
Eles se viram de costas para a câmera, a cabeça entre as pernas, ou apontam uma flecha com um arco no meio da rua, em imagens surpreendentemente assemelhadas àquelas que Diane Arbus realizaria nos Estados Unidos apenas na década seguinte. A artista radicada no Brasil, contudo, cercaria a figura humana também por meio da arquitetura.A cúpula e as torres da Catedral da Sé em construção, vistas na São Paulo de 1953 a partir de uma janela onde há grafismos incompletos, dizem bastante sobre a finitude do sonho humano.
Alice Brill ansiava pela elegância até mesmo nas imagens que traduziam o sofrimento. Quem presencia sua fila do ônibus no Vale do Anhangabaú naquele mesmo ano assiste a um épico de linhas e curvas, uma redenção artística para a vida solitária na grande cidade.
Fonte: Carta Capital
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