Setembro de 2015. Em Santa Maria, Rio Grande do Sul, Cheick Oumar Diba, refugiado do Senegal, dormia num dos vagões abandonados na gare da Viação Férrea, depois de ser recusado no abrigo dos sem-teto, quando três pessoas atearam fogo em seu colchão.
Com queimaduras em todo o corpo, Cheick tentou esconder o ataque por ele sofrido, mas, uma hora e meia depois, na padaria onde foi buscar o que comer, não resistiu às dores, chorou convulsivamente e acabou socorrido pelos atendentes.
Tinha menos raiva do que vergonha – o suplício de ser um pária, um estrangeiro, de dormir na rua. Vergonha de provocar nas pessoas o pior que pode existir dentro delas. Ninguém foi indiciado.
Dia 26 de agosto de 2013, desembarca em Fortaleza, Ceará, o primeiro contingente local de médicos cubanos recrutados pelo governo Dilma e pelo Programa Mais Médicos. Quando se esperava que fossem recebidos com entusiasmo pela população carente, o que se viu foi, no aeroporto da capital, uma ruidosa manifestação de médicos locais contra os cubanos. Xingamentos racistas coroaram a desconfiança rasteira de que os estrangeiros viriam inocular a saúde pública brasileira com o vírus do comunismo – seja lá como isso fosse acontecer. A patrulha raça-pura de Fortaleza, com suas becas, seus apitos e seu nariz de palhaço, deixou claro, porém, que o que incomodava mesmo era a cor da pele dos cubanos.
Haitianos diante da Igreja do Glicério, SP: acolhimento e, de vez em quando, tiros (Foto: Nelson Antoine/Fotoarena)
Noite de 1º de agosto de 2015. Um grupo de imigrantes haitianos reúne-se diante da Igreja do Glicério, no Centro de São Paulo. Ali funciona a Missão da Paz, ligada à Pastoral do Migrante, que tenta oferecer abrigo a todos os refugiados que chegam à metrópole. Passa um carro cinza com quatro passageiros. Para, e os insultos começam: “Por que vocês não voltam para casa? Vocês não sabem que estão roubando os empregos dos brasileiros?” De repente, passam a atirar. Com balas de chumbinho ferem cinco homens e uma mulher. Outros três ataques contra haitianos já haviam acontecido naquele mesmo dia e naquela mesma região, no espaço de menos de duas horas.
Em fevereiro de 2012, chegou às mãos do Ministério Público, em São Luís, a denúncia, por ofensas racistas e xenofobia, contra o professor Clóvis Saraiva, da Universidade Federal do Maranhão. A vítima dos insultos era o estudante nigeriano Nuhu Ayuba, do curso de Engenharia Química. A perseguição a ele era implacável. Certa vez, incapaz de responder a uma pergunta do professor, ouviu dele: “Se você não sabe, pode voltar para a África de navio negreiro”. O deboche recorrente era o de perguntar ao aluno “com quantas onças você lutou lá na sua terra?” Ayuba chegou a pensar em abandonar o curso, mas os colegas o demoveram e o caso chegou à Polícia Federal. Saraiva publicou uma “retratação” em que não se retratava de nada e continua alegremente dando suas aulas de preconceito.
Em junho do ano passado, Daniel Barbosa, que se apresentava como “gerente de vendas”, postou no Facebook um vídeo em que orgulhosamente hostilizava dois haitianos que trabalhavam como frentistas num posto em Porto Alegre. Um deles está enchendo o tanque quando o indivíduo, trajando roupas militares, ironiza o fato de, num quadro de desemprego, ele “ter sorte” de estar ali trabalhando. Culpa o “governo comunista de Dilma” e denuncia uma “invasão bolivariana”. Daniel Barbosa é um velho conhecido da polícia gaúcha, que abriu mais um processo contra ele, dessa vez por racismo. O agressor retirou o vídeo da rede, mas continua solto.
A cinegrafista Petra Laszlo mostra o que a ultradireita húngara pensa dos refugiados (Foto: Reprodução)
Terça-feira, 9 de setembro de 2015, na fronteira entre a Sérvia e a Hungria. Centenas de refugiados das guerras na Síria e no Iraque, precariamente abrigados no campo de Roszeke, conseguem furar a barreira policial e ingressar em território húngaro, lugar de passagem para países mais amigáveis para com os imigrantes, como a Alemanha e a Inglaterra. Um homem, de jeans, tênis e mochila às costas, corre em desespero carregando nos braços o filho pequeno. Passa ao lado de um grupo de jornalistas. A cinegrafista Petra Laszlo, que trabalha numa emissora ligada ao partido de ultradireita Jobbit, estica a perna e derruba propositalmente o homem e seu filho. Não satisfeita, chuta uma menina que também corria em meio ao caos. Petra virou celebridade em seu país.
Casos como esses, no Brasil e no mundo, se multiplicam aos milhares na direta proporção em que as guerras, a fome, as perseguições e as intempéries vão lançando nas trilhas atrozes da desumanidade os novos desclassificados da Terra.
Que são hoje 54 milhões de pessoas, segundo a Acnur, a agência das Nações Unidas encarregada de amainar o calvário dessa avalanche humana em fuga – 54 milhões em movimento, a esmo, que tiveram de deixar forçosamente seus lares. Só de um ano para outro, de 2013 para 2014, 8 milhões tornaram-se novos passageiros de uma involuntária e sofrida diáspora.
Esperam por eles, numa travessia arriscada em que a morte espreita, na mira dos mercenários ou no berço traiçoeiro do doce Mediterrâneo, como aconteceu com o menino Aylan, um eventual prato de comida, a lona precária de um campo provisório e o que pode ter restado de solidariedade entre aqueles que, no entanto, são seus semelhantes.
Mas a verdade é que, chamem-se refugiados, ou exilados, ou imigrantes, ou dissidentes, ou hereges, ou infiéis, ou divergentes, ou clandestinos, ou ilegais, ou invisíveis, ou intocáveis, serão sempre estrangeiros, no difícil acolhimento, malvistos e quase nunca bem-vindos, rejeitados sistematicamente pelo olhar do racismo e da xenofobia.
O papa acusa a 'globalização da indiferença', em Lampedusa, e chora os que sucumbem na travessia entre a África e a Itália (julho de 2013)
“São corpos estranhos”, define o professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior, doutor em História Social pela Unicamp, professor de História na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autor de Xenofobia, que a Cortez Editora acaba de lançar. Corpos estranhos no sentido simbólico, mas também literal. “O corpo estrangeiro não nos causa apenas medo e rejeição”, escreve ele, nas pegadas de Michel Foucault e de sua biopolítica.
“O corpo exótico é também motivo de desejo e sedução. O mesmo corpo que amedronta, fascina, atrai pela diferença. Muitas vezes a atitude de recusa e rejeição do corpo estranho está na ordem direta da intensidade do desejo, da atração, da comoção que ele provoca.” A ambiguidade inquietante do fetiche obriga que, para aplacar o desconforto, o outro seja aniquilado. A violência pode ser uma das faces do desejo.
A sina milenar dos ciganos é a de serem estrangeiros onde quer que estejam. Nômades, são por definição desterrados desde que seus antecessores deixaram a Índia ainda na Idade Média. Em 2010, o governo Nicolas Sarkozy decidiu a expulsão de 700 ciganos tidos como ilegais e decretou o desmantelamento de 51 precários acampamentos que, num país como a França, lembravam favelas do Terceiro Mundo.
O então primeiro-ministro da Itália Silvio Berlusconi chamou os ciganos de “horda de bárbaros” (os gregos da Antiguidade intitulavam de “bárbaros” todos aqueles que não fossem gregos de berço). Em 2013, François Hollande repetiria Sarkozy. Pressionado pela maré montante da extrema-direita, encarnada no Front National, o premier socialista abria nova safra de desmonte dos acampamentos rom.
O estorvo com os ciganos assemelha-se com o longo ciclo histórico de perseguição aos judeus: a sedimentação de uma cultura sólida e de hábitos próprios, contrastantes com o meio ambiente em que provisoriamente se alojam (no caso dos judeus, cultura embasada em religião), impede a absorção nas sociedades locais.
Os judeus, sempre acusados de serem estrangeiros em terras que, no entanto, habitavam por séculos a fio, pagaram, em pogroms sucessivos e no Holocausto nazifascista, o preço de não abrirem mão de sua própria identidade. Por ironia, o Estado de Israel persegue hoje os palestinos pelas razões pelas quais os judeus foram no passado perseguidos.
A xenofobia cresce, num cenário de cercas, muros e campos de concentração. Muros como o que Israel ergueu, para se isolar do contágio dos sinistros vizinhos, e que Donald Trump, no calor marqueteiro da campanha, anunciou que ia construir, de forma a barrar a migração ilegal dos latinos através da fronteira com o México – muro que, anunciou o candidato republicano, em requinte de desfaçatez, teria de ser bancado pelo próprio México.
Por aquela fronteira, disse Trump, só entram “traficantes, criminosos e estupradores”. Acabou visitando, dias atrás, o presidente Peña Nieto. O discurso do gringo viejo não foi exatamente um pedido de desculpas.
Ao acervo de intolerância e racismo veio se juntar recentemente, com a quebradeira que se seguiu à crise financeira internacional, a dissimulação de um argumento econômico: o migrante é aquele que ameaça o emprego do trabalhador local.
O rancor que os haitianos suscitam nos brasileiros selvagens – aqueles poucos haitianos, bem entendido, que conseguem sobreviver em meio ao ambiente de cega e truculenta hostilidade – pode trazer o mesmo substrato que levou tradicionais redutos eleitorais dos comunistas franceses a se jogarem nos braços da direita xenófoba.
O sociólogo Michel Simon, da Universidade de Lille, observa que o novo mapa político da França atesta essa sinistra migração do voto trabalhador – assustado com a presença de um estrangeiro disposto a tudo pelo emprego – em direção aos partidos cujo nacionalismo viceja no racismo.
Em seu enciclopédico e detalhado livro, dedicado não por acaso aos professores que exercem “a indispensável tarefa de combater todas as formas de preconceito, de discriminação e intolerância”, Durval Muniz de Albuquerque Júnior aponta, na enumeração dos episódios de xenofobia que assolam o Brasil, uma ironia dolorosa: são os estados do Sul, de São Paulo até o Rio Grande, que mais exercitam hoje o ódio ao outro e insistem na perseguição aqueles que estão fora do padrão.
Exatamente os estados que recepcionaram no passado aquele tropel de migrantes sem destino, famintos, desterrados, quase sempre analfabetos, de mãos calejadas, desesperados e muitas vezes desqualificados, assim como os refugiados da Síria de hoje, do Iraque, do Afeganistão, da Somália, da Nigéria, do atroz Haiti.
O Sul do Brasil, ou pelo menos parte dele, que se ergueu com a mão de obra italiana, alemã, japonesa, ucraniana, polonesa, constrói agora sua ojeriza a partir do pigmento da pele dos refugiados que aqui buscam asilo e segurança. Se isso não é racismo, o que é então?
Fonte: Carta Capital
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