A participação dos EUA e da própria CIA está mais do que comprovada numa tragédia para expulsar um presidente que vinha materializando avanços sociais
Os advogados dos trabalhadores sem-terra julgados pela morte de seis policiais em Marina Kue, no município de Curuguaty, conseguiram novamente nesta quarta-feira, em Assunção, suspender o processo, que se cala a respeito dos 11 camponeses que também perderam a vida na tragédia. Desta vez, o julgamento foi paralisado devido à postura arbitrária dos juízes do Tribunal de Sentença do Paraguai, que sequer disponibilizaram tradutores para o guarani – a língua dos acusados – como já havia sido determinado previamente.
“Libertad, libertad, a los presos por luchar” comemoraram as dezenas de militantes dos movimentos sociais, intelectuais e familiares dos sem-terra, que tomaram o plenário acompanhados por “pyragues” – espiões do governo de Horacio Cartes.
“Queriam pisotear até mesmo o direito linguístico dos camponeses, mais um atropelo feito por esta justiça politizada, paga, que está recebendo ordens de fora e tem de desaparecer”, declarou Pablo Aguayo, advogado dos sem-terra, rechaçando o elitismo de um setor considerável do judiciário paraguaio, que quer silenciar a língua da grande maioria do seu próprio povo.
De acordo com Pelao Carvallo, da Articulação Curuguaty, que engloba várias entidades populares solidárias à luta pela terra, “o fato é que, para os juízes, falar em guarani nesse ambiente refinado representaria um desprestígio. “Para a elite, a formulação é feita em castelhano ou inglês, o apego ao guarani é somente para que suas decisões sejam entendidas e suas ordens cumpridas. Ou para ganhar votos”, frisou.
TIERRAS MAL HABIDAS
No dia 15 de junho de 2012, lembrou Margarita Duran, professora de História e intelectual, houve um confronto em Marina Kue, nas terras “mal habidas” – que pertencem ao Estado, entregues pelo poder público a apaniguados ou simplesmente tomadas por latifundiários. Sendo assim, o local não poderia ter sido objeto de “despejo” para satisfazer a um grande proprietário – como Blas Riquelme – que chegou a comandar o partido do ex-ditador Alfredo Stroessner, da mesma forma como o pai do promotor Jalil Rachid, que trabalha incansavelmente pela condenação das vítimas.
“Há um julgamento absurdo, como se apenas os policiais mortos fossem pessoas, desconsiderando totalmente os camponeses. Estão vomitando uma sentença de 25 anos de prisão. O promotor Rachid não quer perder tempo, pois pretende criminalizar a luta pela terra, a fim de que o caso sirva de exemplo”, assinalou Margarita Duran. Segundo a professora da Universidade Católica de Assunção, “embora seja lastimável, acabamos sendo privilegiados por assistir a um caso que será estudado durante anos, da mesma forma como o de Gastón Gadín”.
DEFENDER OS DIREITOS HUMANOS
Último fuzilamento ocorrido no Paraguai, em 1917, o francês Gastón Gadín era menor de idade quando foi condenado à morte pelo assassinato dos pais. A lei paraguaia não permitia a execução da sentença contra um menor. Sem a certidão de nascimento, a lei estabelecia que um médico fosse convocado para “comprovar” quantos anos tinha. Sob a pressão da opinião pública, foi sentenciado. “A certidão finalmente apareceu: Gadín era menor de idade. Como cidadãos preocupados com os direitos humanos isso deve nos fazer refletir”, disse Durán.
De acordo com Clyde Soto Badaui, do Centro de Documentação e Estudos (CDE), de uma forma evidente, “o julgamento de Marina Kue foi armado para condenar os camponeses”. “Aos poucos, pelo ativismo nacional e internacional, fomos desarmando, desmontando os argumentos da acusação, demonstrando que há um padrão de atuação da repressão contra os movimentos sociais que exibe todo o seu esplendor neste massacre. A partir daí há um processo político que está sendo freado pela determinação e valentia dos acusados”, destacou.
O advogado Aguayo reitera a inocência dos camponeses: “isso é comprovado pelo vídeo do ABC Color, que mostra que não foram eles que iniciaram os disparos”. “Mais do que nunca é preciso investigar a fundo para saber quem foram os responsáveis, para castigar os mandantes. Temos o dever moral de salvar a Justiça e para isso fazemos um apelo à Corte Suprema”, enfatizou.
A participação dos Estados Unidos e da própria CIA, conforme a professora Margarita Duran, “está mais do que comprovada”, não só pelo envolvimento dos franco-atiradores como de todo a extensa e complexa rede armada. Uma intervenção de 324 soldados contra menos de 60 sem-terra - metade deles mulheres, crianças e anciãos - desemboca rapidamente numa tragédia para expulsar um presidente que vinha materializando avanços sociais, e isso não é investigado, mas banalizado, porque abriu espaço ao impeachment. “Não pensaram nas consequências, que as pessoas iam se perguntar. O helicóptero militar sobrevoou para filmar e fotografar o acampamento. Onde está a filmagem? Agora o piloto, que era uma testemunha chave, morre. É muita sujeira”, assinalou.
Para Marta Almada, representante do Serviço de Paz e Justiça (Serpaj) na Articulação Curuguaty, o julgamento escancarou a existência de um sistema de justiça que viola todos os direitos humanos e que é altamente excludente, uma vez que só foca na morte dos policiais sem dar o mínimo espaço ao contraditório. No vídeo Desmontando Curuguaty, conta Marta com orgulho, contribuímos para a “desconstrução comunicacional que havia contra os camponeses, apontando as inúmeras irregularidades do processo”.
Os grandes conglomerados de mídia, assinalou Liz Torres, da coordenação do Serpaj, “tentam construir no imaginário coletivo uma verdade com toda a montagem do julgamento”. Mas aos poucos, pondera, o cenário de mentiras e manipulações vai se decompondo, pois “a força da articulação entre as vítimas diretas construiu uma unidade muito forte de enfrentamento ao sistema, e conseguiu calar fundo”. “Agora, até mesmo os familiares dos policiais não fazem acusação direta aos camponeses”, asseverou.
No entendimento de Cristina Coronel, também coordenadora do Serpaj, a verdade “única e oficializada”, que coloca os camponeses como vagabundos e delinquentes, vai se dissipando e dando lugar a visões cada vez mais críticas. “O trabalho cuidadoso e sério desenvolvido pela Articulação Curuguaty e pelas entidades populares que se somaram ao movimento de solidariedade se instalou na agenda social e política do Paraguai para que o julgamento não passasse despercebido. Não é fácil, mas com a ação nacional e o apoio internacional começamos a enfrentar este fato emblemático da nossa história, apontando seus vícios e iniciando seu desmantelamento, o que fez com que a própria imprensa também começasse a duvidar. É uma ação rigorosa, que representa uma ameaça ao sistema”, concluiu Cristina.
Fonte: Carta Maior
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