Após um ano e cinco meses paralisado, julgamento é concluído com oito votos pela inconstitucionalidade das contribuições de pessoa jurídica. Regras valem a partir de 2016
Até Maradona coraria. “Teve a mão de Deus”, disse o ministro Gilmar Mendes na quarta 16 ao defender seu longo pedido de vista, de um ano e cinco meses, no julgamento do Supremo Tribunal Federal que analisa a inconstitucionalidade das doações empresariais em campanhas eleitorais. Mas a “mão divina”, no caso, a do próprio ministro, não foi suficiente.
O julgamento da ação proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil foi concluído em 8 votos a 3 pelo fim das contribuições, após os ministros Celso de Mello, Rosa Weber e Carmem Lúcia terem finalmente concluído sua análise na quinta 17. As doações de pessoas físicas continuam autorizadas e devem ser reguladas pelo Legislativo. As regras terão efeito a partir das eleições de 2016.
Rouco durante a sessão da quarta 16, Mendes desculpou-se por estar “afônico”. “Imagine se não estivesse”, ironizou Marco Aurélio Mello, após escutar o colega por quase cinco horas. Ao menos metade deste tempo o ministro dedicou-se a sua tese principal. A matéria em análise seria uma “conspirata” da Comissão Federal da OAB para favorecer “o projeto do PT de se perpetuar no poder”.
Em seu voto, Mendes recorreu a uma estimativa da Policia Federal de um rombo de 19 bilhões de reais no caixa da Petrobras para sugerir que a legenda teria recursos suficientes, inclusive no exterior, para financiar suas campanhas até 2038. “O partido que mais leva vantagem para captar recursos das empresas, agora, como Madre Teresa de Calcutá, defende o fim das doações empresariais. É uma conversão que merece canonização”.O fim das contribuições transformaria o cenário político em uma luta de um “Eder Jofre”, o PT, e um “algemado”, a oposição.
Mendes estava destemperado. Indignou-se com a autorização dada por Ricardo Lewandovski, presidente da Corte, para que o representante da OAB defendesse a entidade e saiu porta a fora. Seu voto foi criticado pela entidade e por juristas brasileiros. Presidida por Marcus Vinicius Furtado, a OAB reagiu com firmeza ao voto de Mendes. “Comportamentos como o adotado pelo ministro são incompatíveis com o que se exige de um magistrado”, diz a nota. “Não mais o tempo do poder absoluto dos juízes. Não mais a postura intolerante, símbolo de um Judiciário arcaico, que os ventos da democracia varreram.”
Em texto conjunto, os juristas Joaquim Falcão, Thomaz Pereira e Diogo Arguelhes, da FGV do Rio de Janeiro, criticaram a falta de fundamentação do voto. “Se sobrou imaginação para as conspirações, faltou a capacidade de levar ideias a sério. A história de Mendes só fecha em um mundo em que as ideias não tenham poder algum. ”
Além de ofender a OAB, Mendes atacou indiretamente dois integrantes da entidade. Primeiro, o ex-presidente Ophir Cavalcante, responsável por organizar, em 2010, os seminários sobre reforma política da ordem. À época, jamais se insinuava que o advogado teria qualquer relação partidária com o PT. Outro alvo indireto de Mendes foi o colega Luís Roberto Barroso, ausente da sessão de ontem por ter proferido seu voto no ano passado. Barroso foi o relator da proposta da entidade de dar fim às contribuições de empresas em 2010. Na sessão da quinta 17, o relator Luiz Fux defendeu que análise do fim das doações foi tema de diversas audiências públicas e afirmou que as suposições de Mendes contra a OAB foram “absolutamente equivocadas”.
As grosserias e teorias conspiratórias de Mendes têm motivo. Recentemente, o Senado votou pelo fim das doações empresariais. Em resposta a um projeto da Câmara, complementar à proposta de Emenda à Constituição da Reforma Política, que busca constitucionalizar as doações empresariais, os senadores vetaram a formalização da prática por 36 votos a 31.
O resultado diminui sensivelmente as chances de a PEC prosperar. Ao contrário do projeto complementar, que foi rapidamente modificado pela Câmara em favor das contribuições em 9 de setembro, a emenda tem de ser aprovada pelas duas Casas por três quintos dos votos. Sem a mudança constitucional, os votos na retomada do julgamento no STF não teriam razões jurídicas para serem revistos.
Tal derrota levou Mendes a investir em um fato político. Ao evocar uma conspiração petista e impedir qualquer colega de votar na mesma sessão, o ministro tentou seduzir Weber, Lúcia e Mello a aderirem a sua tese. Não deu certo. Sem repetir as teorias conspiratórias de Mendes, Mello julgou a ação da OAB improcedente.
Mas as ministras afirmaram que, baseada na atual legislação e no limite de 2% do faturamento bruto de empresas para contribuições, a doação empresarial influencia o processo eleitoral e é, portanto, inconstitucional. Segundo Weber, se o teto para a contribuição fosse diminuto, algo como 100 reais, a influência não ocorreria. Mas este não é o caso da lei eleitoral, tampouco do projeto aprovado pela Câmara, que prevê um novo limite de até 20 milhões de reais por empresa.
A decisão do STF facilita a vida de Dilma Rousseff, que tem a carta branca para vetar parte do projeto da Câmara baseada na decisão da Corte, sem ter de assumir o ônus político de contrariar o Legislativo. Com a inconstitucionalidade das doações, outra aberração do projeto de reforma política perde seu efeito: a legalização das chamadas doações ocultas. No projeto, os deputados aprovaram um artigo que libera os deputados de especificarem os doadores originais ao receber recursos de campanha do partido. O texto contraria uma resolução de 2014 do Tribunal Superior Eleitoral que impede as contribuições ocultas.
Segundo Alberto Rollo, advogado especialista em direito eleitoral e integrante da comissão de reforma política da OAB de São Paulo, a aprovação das doações ocultas seria um retrocesso. “O Congresso legislou em causa própria”. Caso a decisão do STF fosse favorável às doações, Rollo afirma que seria possível contestar as doações ocultas na Justiça sob a ótica de princípios constitucionais que devem reger a administração, entre eles a moralidade e a transparência. “Mas o TSE não poderia tomar essa decisão por si próprio. Alguém teria de provocar a discussão por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo”.
Além da questão central em torno das doações, o projeto aprovado pela Câmara prevê um teto de gastos de campanha. Se for aprovado, o limite para cada partido nas eleições presidenciais será de 70% do maior gasto do pleito anterior. A Câmara aprovou ainda o fim da reeleição para cargos do Executivo. Governadores e prefeitos eleitos em 2014 e 2016, respectivamente, poderão ainda concorrer mais uma vez ao cargo. Outro artigo incluído versa sobre a cláusula de barreira, exigência de os partidos possuírem representação na Câmara para terem acesso a recursos do Fundo Partidário.
Curiosamente, a cláusula havia sido considerada inconstitucional pelo STF em 2006. Na esteira das primeiras denúncias do “mensalão”, a Corte considerou que o fortalecimento de partidos menores era fundamental para promover a fiscalização das grandes siglas, principalmente o PT. Atualmente, 5% do fundo é distribuído igualmente a todas as legendas, que também têm acesso ao tempo de rádio e TV. No projeto aprovado, a Câmara determinou que só poderão receber tais recursos e ter acesso ao horário eleitoral gratuito as legendas com ao menos um parlamentar eleito.
Outro ponto polêmico aprovado é a chamada janela para desfiliação. Os deputados incluíram na proposta de reforma política as regras de fidelidade partidária previstas em uma resolução do TSE. O ocupante de cargo eletivo que se desligar da legenda perderá o mandato, salvo em casos de grave discriminação pessoal, de fusão, criação ou incorporação de uma sigla ou desvio reiterado do programa praticado pelo partido. Parlamentares terão 30 dias após uma eventual promulgação da PEC para migrar de sigla sem perder o mandato. O deputado Welinton Prado, do PT, pode ser beneficiado com a medida. Recentemente, ele entrou na Justiça para pedir sua desfiliação com base no suposto descumprimento por parte do PT do programa de defesa dos trabalhadores.
A Câmara aprovou ainda um pacote de reforma eleitoral repleto de pontos polêmicos. A propaganda eleitoral no rádio e na tevê teve seu período reduzido de 45 para 35 dias. O sociólogo Marcos Coimbra, presidente do Instituto Vox Populi, discorda da medida e critica o texto por produzir uma instabilidade no sistema eleitoral. “Não vejo algo positivo em se limitar o acesso do público à informação. Tem-se gasto muito esforço em pontos sem grande importância”.
Coimbra critica ainda o critério imposto para as legendas participarem dos debates eleitorais: agora, um partido terá de ter 9 representantes na Câmara. “Nos Estados Unidos, essa questão saiu da esfera legislativa e judicial. As emissoras norte-americanas adotam o princípio da representatividade jornalística para convidar quem elas consideram relevante. ”
À parte a falta de compromisso republicano da Câmara ao aprovar um projeto de reforma política em causa própria, o Senado e o STF tiveram papel oposto ao atenderem princípios constitucionais e a vontade da maior parte da população, respectivamente. Sem a mão de Deus, mas com espírito público.
Fonte: Carta Capital
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