quarta-feira, 23 de abril de 2014

TURQUIA, ESPELHO DA AMÉRICA LATINA NO ORIENTE



As acusações de fraude e corrupção, os ataques da maior parte da mídia, a veemência de protestos de rua e as respostas repressivas lembram cenas de Caracas, mas é Istambul. Tanto quanto o presidente Nicolás Maduro ou seu antecessor Hugo Chávez, o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan tem o apoio firme da metade mais pobre de seu povo, vence regularmente as eleições e é cada vez mais odiado por um amplo setor da classe média.

Entretanto, o partido de Maduro está aliado internacionalmente a outros partidos de esquerda e centro-esquerda da América Latina em organizações como o Foro de São Paulo e é visto como socialista, quando não “castro-comunista”, enquanto o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla turca) de Erdogan filia-se à aliança conservadora-reformista europeia liderada pelo Partido Conservador britânico (algo mais liberal que os conservadores ortodoxos do Partido Popular Europeu de Angela Merkel, Nicolas Sarkozy e Mariano Rajoy) e é visto como direitista ou mesmo “fundamentalista islâmico”.

As aparências podem enganar, mas os rótulos também. Os dois movimentos são mais parecidos entre si do que essa linguagem sugere. Como expressão política da autovalorização das massas (ou destas por seus aliados intelectuais) em oposição a uma classe média cosmopolita e aparentemente comprometida com interesses estrangeiros, o islamismo político desempenha no Oriente Médio um papel semelhante ao do nacionalismo populista e desenvolvimentista na América Latina desde os anos 1950 e 1960.

O mal-entendido resulta de se ver o mundo pelas lentes dos países ocidentais ricos, onde a esquerda é inseparável do laicismo e da contestação das tradições. No Oriente Médio, a exemplo da América Latina, o apego a uma moral de fundo religioso tem pouca correlação com esquerda ou direita no sentido politicamente mais relevante da atitude em relação à desigualdade social – fato ainda mal compreendido por institutos de pesquisa que, perplexos, concluem que “a ideologia tem pouca influência sobre o voto”. Em países como a Arábia Saudita, a religião legitima a monarquia e o poder da elite fundamentalista e tem de fato um papel conservador. Mas a realidade é mais complicada em países como a Turquia e o Egito, onde a riqueza e o prestígio se acumularam nas mãos de uma elite laica e as massas têm na religião e suas organizações assistenciais uma rede de proteção contra a injustiça social.

O Partido Republicano (CHP), herdeiro da revolução positivista e ocidentalizante promovida por Mustafá Kemal Atatürk após a Primeira Guerra Mundial, é laico, pertence à aliança dos partidos social-democratas da Europa e tem apoio sindical. Entretanto, sua base está em áreas de classe média. A base do AKP são os bairros populares das grandes cidades e o interior rural e assegurou uma vitória folgada na metrópole Istambul (com 48%, ante 39% do CHP) e apertada na capital Ancara (44,7% a 43,8%), enquanto o CHP ganhou na ocidentalizada Esmirna (por 49,5% a 35,9%).

Apesar de teoricamente de centro-esquerda, o CHP na prática se identificou com as grandes empresas e funcionários públicos, militares e trabalhadores urbanos relativamente privilegiados, bem como com a repressão com a insurgência curda (que causou 45 mil mortes de 1984 a 2013) e o autoritarismo militar responsável por seguidos golpes de Estado dos anos 1960 e 1990, sempre contra governos de perfil semelhante ao de Erdogan. E o conservador AKP defendeu os interesses dos pobres e pequenos empresários do interior, fez a paz com os curdos, reduziu o orçamento militar para priorizar a educação, saúde, transportes e desenvolvimento regional.

Nas eleições municipais do domingo 30, na Turquia, o partido de Erdogan obteve 43% dos votos, contra 26% do CHP de “centro-esquerda”. O Partido do Movimento Nacionalista (MHP), com 18%, é uma ultradireita de conotações fascistas. O Partido da Paz e Democracia (BDP), com 5%, mais nitidamente à esquerda, representa apenas a minoria curda. Nas eleições anteriores (2011), os resultados respectivos foram, 49,8%, 26%, 13% e 6,6%. Certo desgaste do governo era de se esperar, dadas as dificuldades da economia e o fracasso das iniciativas diplomáticas de Erdogan ao apoiar movimentos islâmicos na Síria e Egito, mas, desde sua primeira eleição em 2002 (como sucessor do Partido da Virtude, posto fora da lei em 2001), o piso do AKP de Erdogan é de cerca de 34% e o teto em torno de 53%.

O AKP claramente serviu-se da máquina do Estado na campanha e as acusações de fraude não podem ser levianamente descartadas. Mas, se ocorreram, foram pontuais: os resultados não estão fora das expectativas dos analistas e das indicações das pesquisas. Apesar da ampla divulgação de acusações de corrupção no governo. Em 17 de dezembro houve prisões, às dezenas, de gente próxima a Erdogan, inclusive os filhos de três ministros (que renunciaram em seguida) e o dirigente de um banco estatal. Foi em seguida divulgada na internet a gravação de uma suposta conversa dos dias seguintes na qual o primeiro-ministro instruía o filho a fazer “desaparecer” centenas de milhões de euros, entre muitas outras conversas comprometedoras atribuídas a membros do governo.

Erdogan acusou o clérigo turco dissidente Fethullah Gülen, autoexilado nos Estados Unidos desde 1991 e líder da confraria muçulmana Hizmet (“Serviço”), cuja presença na sociedade turca é comparável à do Opus Dei na América Latina e que está em guerra aberta com Erdogan desde os protestos do verão de 2013. Sete mil policiais e 300 promotores e juízes foram demitidos, acusados de cumplicidade com escutas ilegais em massa desde 2011 e, até 28 de fevereiro, os detidos pelo escândalo foram postos em liberdade. Enfurecido pela divulgação das gravações, Erdogan bloqueou o Twitter e o YouTube nas últimas semanas antes das eleições, ato depois julgado ilegal pelo Supremo turco, e ameaçou processar os responsáveis pela “divulgação de mentiras”, alguns dos quais teriam de “fugir do país”.

Segundo as pesquisas, 77% dos turcos acreditaram nas denúncias, mas boa parte destes votou no partido de Erdogan por razões familiares a qualquer latino-americano. Consideram a oposição não só igualmente corrupta como ansiosa para voltar ao passado e incapaz de formular um projeto alternativo. Ao que tudo indica, o primeiro-ministro continua favorito para vencer as eleições presidenciais de agosto, as primeiras na história do país a serem decididas pelo voto direto, e conquistar mais sete anos de poder.

Mas, assim como em alguns países da América Latina, a democracia está de fato ameaçada. Não pela permissão do uso do véu em repartições públicas ou pelas restrições à venda de álcool depois das 22 horas que tanto indignaram a oposição laica em 2013, mas pela crispação política similar à da América Latina. Na sua primeira década de governo, o AKP foi um fator de democratização e em muitos sentidos os turcos continuam mais livres do que antes, inclusive para insultar o chefe do governo. Mas o endurecimento desde meados de 2013 é inegável.

De um lado, uma oposição estruturalmente incapaz de vencer nas urnas, apesar de ter detido o poder por gerações, receia ver-se marginalizada por no mínimo mais uma década e tenta deslegitimar o poder com protestos exaltados. De outro, o governo recorre cada vez mais ao autoritarismo e ao personalismo para mobilizar suas bases majoritárias contra um movimento que vê como potencialmente golpista. O que pode não ser mera paranoia, como mostram vários exemplos, dos quais o mais próximo foi o uso de protestos de rua para justificar o brutal golpe militar contra o governo de Mohamed Morsi, de perfil muito semelhante ao de Erdogan.

Fonte: Carta Capital

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