segunda-feira, 11 de maio de 2015

A ÁFRICA PARA ALÉM DOS JORNAIS


O secretário-adjunto da ONU Carlos Lopes desmitifica a imagem negativa do continente

Guarda-costeira da Líbia resgata imigrantes africano no mar Mediterrêno no último dia 3 de maio

A imagem da África ante a opinião pública mundial é baseada em exageros, equívocos e preconceitos. Os principais investidores dos países mais ricos sabem disso há tempos e o Brasil, antes um parceiro privilegiado do continente, vem perdendo espaço para outros emergentes, como a Turquia. Essa é a avaliação de Carlos Lopes, secretário-adjunto da ONU, que em abril esteve no Brasil por uma semana para uma série de compromissos, entre eles a formação do Conselho África, iniciativa do Instituto Lula, congregando historiadores, diplomatas e estudiosos do continente.

Natural da Guiné-Bissau, Lopes é o responsável maior pela África nas Nações Unidas e divide a sede da organização na Etiópia com outros 2 mil funcionários. “Adis-Abeba é a Genebra da África, lá também está a sede da União Africana, com outros 2,5 mil funcionários”, explica.

CartaCapital: Naufrágios como os ocorridos recentemente no Mediterrâneo são a face trágica do fluxo de imigrantes africanos rumo à Europa. Qual a equação possível?

Carlos Lopes: Há quatro aspectos importantes. Primeiro, trata-se de uma tragédia humanitária, e os líderes europeus têm dado sinais contraditórios, não sabem muito bem o que fazer. O segundo ponto é a alteração demográfica. Há um envelhecimento muito grande da população europeia, os partidos de direita pressionam os governos e o debate da imigração acaba no campo da segurança. Mas a própria Comissão Europeia reconhece a situação catastrófica da natalidade. A Europa, na verdade, precisa dos imigrantes.

O terceiro elemento é que a imigração africana é, na verdade, pequena. Se olharmos do ponto de vista macro, cerca de 2 milhões de imigrantes seguem em direção à Europa a cada ano, e isso é muito pouco em relação a 1 bilhão de africanos. Por último, a maior parte desses imigrantes parte de duas zonas em tensão, a Somália e a Eritreia. Seguem em direção à Líbia através do deserto tunisiano. Desses quatro territórios – Líbia, Tunísia, Somália e Eritreia –, três são antigas colônias italianas, e isso não é coincidência, estamos tentando resolver um problema pós-colonial.

CC: Então, o senhor acredita que a imigração, em vez de um problema, pode ser parte de uma solução de problemas econômicos europeus, como a falta de mão de obra, inclusive a qualificada?

CL: Exatamente. Há uma grande oportunidade na Europa, se for estruturada uma política de imigração voltada para as suas necessidades. A previdência e a proteção social, por exemplo, não podem ser mantidas com esse envelhecimento da população.

CC: Doenças como o ebola causam grande temor e reforçam estigmas negativos do continente e até a xenofobia?

CL: O mundo tem alguma experiência com epidemias. Recentemente, lidamos com epidemias como a Aids, o H1N1 ou a gripe aviária, e em todas essas crises houve certo exagero no impacto econômico e na forma de transmissão. Aos poucos vamos conhecendo-as melhor, e hoje ninguém, por exemplo, é estigmatizado de forma ostensiva porque tem Aids. Mas, no princípio, era, e havia esse pânico. No caso do ebola acontece um pouco isso, a doença não é muito conhecida e imagina-se uma transmissibilidade gigantesca. E essa percepção não se dá por acaso, há muita informação exagerada.

Vejamos: o centro de controle e prevenção de doenças em Atlanta, nos Estados Unidos, um dos principais do mundo, previu há alguns anos que a África teria 1 milhão de casos de ebola em 2015. Temos hoje 19 mil casos. O Banco Mundial também fez uma projeção, a do impacto econômico do ebola para o continente: 32 bilhões de dólares. A entidade reviu sua projeção agora em fevereiro para 3 bilhões de dólares. Esqueceu-se, por exemplo, que a economia dos três países atingidos (Guiné-Conacri, Libéria e Serra Leoa) somam 6,4 bilhões de PIB, menos de 1% do total do continente. Portanto, houve aí também um exagero gigantesco. O número de pessoas que chegaram a morrer de ebola, cerca de 2 mil, não é muito diferente do balanço de outras febres hemorrágicas.

Centro Donka de tratamento contra o Ébola, em Guiné-Conacri

CC: O impacto do ebola não é então assim avassalador?

CL: Se em vez de termos exagerado e dramatizado tivéssemos tido uma análise um pouco mais fria, correta e racional sobre o que está se passando, os esforços feitos de uma forma dispersa teriam sido muito mais focados e teriam havido menos mortos. Comparemos, por exemplo, com a dengue. Em São Paulo há hoje mais de 20 mil casos de dengue. Obviamente não vão morrer 20 mil pessoas porque há estruturas sanitárias capazes de absorver boa parte da epidemia. Na África isso não existe em todos os países. Mas existe em alguns.

Quando o ebola chegou ao Senegal, à Nigéria e ao Mali, países com estruturas sanitárias de melhor qualidade, foi imediatamente contido. No Senegal foi só uma pessoa. No Mali, também apenas um contaminado. Na Nigéria, o país mais populoso do continente, foram 19 pessoas. Portanto é preciso dar a correta dimensão das coisas, e a dramatização excessiva não ajuda.

CC: Milícias cristãs realizaram uma limpeza étnica de muçulmanos na República Centro-Africana em janeiro. Ao mesmo tempo, o Boko Haram, o Al-Shabab e o Estado Islâmico protagonizam casos terríveis de violência jihadista. Esses problemas adicionam novos ingredientes a um mosaico de conflitos já bastante complexo?

CL: A sensação de risco aumenta e isso é péssimo para a economia. Mas o pior é para as pessoas. São 100 milhões de africanos afetadas pelos conflitos. É muita gente. Mas a África tem 1 bilhão de habitantes. Há, portanto, 900 milhões não afetados. Ou seja, 90% do continente marcha na boa direção, tem ganhos de governança e está fazendo muito melhor do que se fazia antes. Mas 100 milhões ainda é muito. Por muito tempo havia dois tipos de conflitos no continente: primeiro, aqueles gerados por grupos armados com interesses econômicos em zonas ricas em minérios. Interessava criar desordem para se beneficiar das indústrias extrativas em regiões como a dos grandes lagos – Congo, República Centro-Africana etc.

O outro tipo de conflito vem da má gestão da diversidade. Os africanos tratam mal as minorias, a solidariedade africana é um mito. Quem chega ao poder, mesmo por meio de eleições, quer governar absolutamente. Agora surgiu um terceiro elemento, a filiação de grupos locais com grandes causas mundiais, como o islamismo radical. A mescla desses ingredientes é particularmente forte no Sul do Saara. Nessa faixa, de uma ponta à outra da África, os grupos têm conexões uns com os outros, e alguns estão ligados ao Estado Islâmico, outros à Al-Qaeda... É um coquetel explosivo.


Funeral em Bagdá de vítimas de jihadistas, mortas em Tikrit, região em disputa com o Estado Islâmico


CC: Há ainda as ditaduras longevas, como a da Guiné Equatorial, falada aqui no Brasil este ano pelo patrocínio à escola de samba Beija-Flor. De forma geral, como anda a democracia no continente africano?

CL: Só em 2015, sete países já mudaram de líder de forma pacífica. Até o final do ano teremos mais 20 eleições presidenciais. E, entre esses sete países, está a Nigéria, o mais populoso do continente, que nunca tinha passado por uma mudança pacífica de liderança. Portanto há progressos claros, o número de ditadores longevos é pequeno. Não despareceram como ainda não desapareceram na Ásia, e como podem reaparecer na América Latina dependendo das mudanças em curso em alguns países... De uma maneira geral as constituições africanas impõem limites de mandato, hoje cerca de 90% delas têm esses limites.

CC: Hoje, o mundo todo está de olho no continente...

CL: Há um paradoxo. A imprensa especializada, como o Financial Times, The Economistou o Wall Street Jornal, diz só coisas positivas, estão muito otimistas. Consultorias importantes, como McKinsey, Boston Consulting Group ou Ernst & Young têm análises extremamente positivas com relação à África. A influência sobre a opinião dos investidores é a mais favorável dos últimos 30 anos. O continente cresce cerca de 5% ao ano há mais de 15 anos, resistiu bem à crise de 2008-2009 e os investimentos privados só fazem aumentar. E neste ano serão aportados 104 bilhões de dólares, o equivalente aos investimentos a serem feitos no mesmo período na China, que tem uma população similar.

Estamos bem nessa fotografia. Mas na grande mídia e na opinião pública internacional a imagem segue muito negativa, baseada em doenças, guerra, corrupção, fome... E agora há a dramatização dos imigrantes, antes havia a pirataria na costa da Somália...

CC: Nessa má imagem, influencia o preconceito racial?

CL: Pode até ter algum preconceito racial, mas há uma questão de fundo ainda pior: o costume de considerar a África um continente para o qual não há muitas esperanças, de crescimento mais débil...

CC: E esses investimentos chegam ao “andar de baixo”, em forma de benefícios à população?

CL: Não chega nem perto do que deve. É um crescimento sem qualidade porque não é includente, não é estruturante. A economia africana está extremamente dependente do consumo interno, e isso não é bom porque não é necessariamente gerador de empregos. A transformação tem que vir de uma maior produtividade agrícola e de uma industrialização. Enquanto isso não acontecer, o “andar de baixo” será algo beneficiado por esses investimentos, mas não muito.

CC: Após a aproximação promovida pelo governo Lula, o Brasil seguiu avançando em sua relação com a África?

CL: Houve muito investimento de empresas brasileiras e algum do BNDES – mas não muito –, e uma relação mais estreita traz consequências boas tanto para o Brasil quanto para os africanos. O interesse crescente pelo continente, entretanto, não está sendo acompanhado pelo Brasil. Parceiros mais recentes como a Turquia ou países do Leste Europeu já fazem mais. Digo isso para o País acordar e não perder o espaço conquistado nos últimos anos.

Fonte: Carta Capital

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