O momento é de defesa incondicional da ordem constitucional, dos direitos sociais e trabalhistas, como forma de evitar retrocessos.
É importante saber que se há uma crise econômica é porque no capitalismo as crises são cíclicas e inevitáveis, sendo certo que se o capitalismo tem sido capaz de se reinventar na superação de cada crise, também é certo que as crises, no processo dialético, têm sido cada vez mais graves e profundas, exigindo que se leve a sério a necessidade de se pensar na organização de um novo modelo de sociedade, sob pena de, falseando a realidade, sermos conduzidos à barbárie pensando que estamos fazendo algo efetivo para melhorar as coisas, como se dá, por exemplo, com o projeto de redução da maioridade penal.
Claro que a inevitabilidade da crise não retira as responsabilidades de ações políticas e econômicas que podem acelerar o ciclo ou piorar o problema. Há, por certo, várias críticas que se podem fazer ao governo federal neste assunto, como, por exemplo, referente ao modo como lidou com os direitos trabalhistas, tratando a classe que vive do trabalho como mera reprodutora da lógica do capital, propondo uma inserção social apenas por meio do consumo e não pela realização de projetos sociais de base.
Mas não é possível concluir que sem os erros que possam ser apontados não adviria uma crise, como se o capitalismo fosse sempre justo, bom e equilibrado e que são os governos os culpados de algum eventual desajuste, sendo mais grave ainda querer obter um benefício político eleitoral da crise, tentando fazer supor, de forma absolutamente artificial, que a crise não adviria caso outros nomes sejam conduzidos ao poder governamental.
Por outro lado, parece-me também equivocado imaginar que não se possa interferir no percurso histórico e que toda racionalidade só tem sentido para o desencadear de um processo revolucionário. Mesmo com limites, muito pode se fazer quanto à declaração e à efetivação de direitos sociais e tanto os governos quanto às instituições e a classe trabalhadora, na cobrança e na luta, são responsáveis pelo incremento dessa obra, que se não é suficiente para superar a lógica capitalista, baseada na concorrência e na exploração do trabalho, que parte do pressuposto da acumulação do capital e da desigualdade social, ao menos é capaz de minorar os sofrimentos pessoais, o que é, para tantos, essencial, além de estimular a organização política e as próprias práticas emancipatórias.
Vale perceber, também, que o tamanho real da crise não há como ser medida e esta pode, portanto, ser bastante aumentada por rumores e medos. Os receios e as incertezas do futuro fazem com que muitas empresas, para não sofrerem perdas que possam, mais adiante, ser irreparáveis, pensem em saídas como a diminuição de custos com a redução de pessoal ou mesmo como a diminuição de salários por meio da redução da jornada. Isso, no entanto, apenas reforça a lógica da crise, vez que o desemprego piora o consumo, seja pela perda mesmo de consumidores, já que os desempregados perdem os seus ganhos, seja pelo medo que aqueles que ainda estão empregados têm de consumir, preferindo, em atitude responsável, poupar o dinheiro. Essa redução drástica do consumo causa prejuízo às próprias empresas, mesmo àqueles que buscaram soluções por meio de demissões.
O que se percebe no noticiário de boa parte da grande mídia é que muita gente, infelizmente, está apostando na crise, isto é, incentivando os sentimentos que a agravam.
A quem interessa isso? As respostas não são óbvias. No entanto, a hipótese mais visualizável é a de que a crise econômica interessa a quem deseja estimular o advento de uma crise institucional.
Claro que os fatos noticiados na grande imprensa são relevantes e devem mesmo ser veiculados, apurados, para que os responsáveis sejam efetivamente punidos. No entanto, se os casos estão sendo noticiados, se as instituições (Justiça Federal, Ministério Público Federal e Polícia Federal) estão funcionando, com políticos e empresários de grandes corporações presos, parece-me que o propósito dessa desintegração social vai além de trocar os nomes dos governantes e do partido no poder.
O que se pretende, segundo se anuncia na já divulgada Agenda Brasil, é justificar demandas de redução de direitos trabalhistas, pressionando o governo para encampar as medidas políticas necessárias para tanto, sendo este um percurso facilitado por uma suposta dificuldade de resistência da classe trabalhadora, que se vê diante do dilema de se opor à desestabilização institucional e com isso favorecer a preservação de um governo que tem partido para cima, literalmente, dos direitos trabalhistas, tendo encampado, inclusive, o nefasto projeto de ampliação da terceirização e de privatização das instituições públicas ligadas à educação, saúde, ciência, tecnologia, desporto e meio ambiente, por meio da terceirização e da entrega da administração de serviços públicos nas áreas mencionadas a OSCIPs e OSs, ou de não fazer nada, para não se aliar aos propósitos de sustentação do governo, e com isso ver seus direitos perecerem sem sequer ter lutado por eles.
O mais grave é que a lógica de diminuição do Estado e do ataque frontal aos direitos sociais, criada no governo Collor, aprofundada no governo FHC e continuada nos governos petistas, serviu para fragilizar a classe trabalhadora e ao mesmo tempo aumentar o poder e a influência de alguns setores econômicos, favorecendo a promiscuidade entre o interesse público e o interesse privado da qual se alimenta a corrupção. Assim, quando se pensa em mudanças na sociedade para a correção da corrupção, da forma como o tema tem sido tratado, na linha da pessoalidade, não se está cuidando, nem perifericamente, da reversão desse estado de coisas. Com isso, mesmo o movimento pela moralidade está a serviço de interesses privados não revelados, não sendo apto para a correção dos problemas da corrupção.
À classe trabalhadora é essencial perceber que está em curso, de forma extremamente forte, um grande golpe engendrado para a destruição da garantias sociais historicamente conquistadas: MPs 664 e 665 (já convertidas nas leis n. 13.134/15 e n. 13.135/15) que ampliaram os requisitos para obtenção de benefícios previdenciários; MP 680, que apresentou para os trabalhadores a conta da crise, absolvendo empresas que obtiveram enormes lucros nas duas últimas décadas; PLC 30/15, que trata da ampliação da terceirização; PL 8.294/14, que propõe a eliminação do direito do trabalho quando: “I – o empregado for portador de diploma de nível superior e perceber salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo do salário-de-contribuição da previdência social; II – o empregado, independentemente do nível de escolaridade, perceber salário mensal igual ou superior a três vezes o limite máximo do salário-de-contribuição da previdência social”, retomando, mais uma vez, de forma indireta, a ladainha do negociado sobre o legislado; e dois esdrúxulos Projetos de Decreto Legislativo (PDL), um com trâmite no Senado Federal, n. 43/15, e outro com trâmite na Câmara dos Deputados, n. 1408/13, que visam sustar a aplicação da NR-12, do Ministério do Trabalho e Emprego, que trata da Segurança no Trabalho em Máquinas e Equipamentos1.
Em paralelo a isso, como forma mesmo de se conseguir enfim levar às últimas consequências o projeto neoliberal, se está produzindo uma destruição das instituições públicas que seriam, ao menos em tese, responsáveis pela aplicação do direito social e de sua racionalidade.
Para a classe trabalhadora há uma necessidade, paradoxal, portanto, de sair em defesa das instituições democráticas, sem, com isso, legitimar tudo o que os governos, nos últimos 20 anos têm realizado, e que ainda prometem realizar, no que se refere ao ataque a direitos trabalhistas.
É importante afastar-se dos dilemas políticos partidários e das chantagens da crise, que só servem para mascarar a realidade e para evitar a produção de um raciocínio voltado ao enfrentamento dos efetivos problemas que nos impedem de possuir uma sociedade sem corrupção, sem desigualdades, sem opressões de toda espécie, sem miséria e justa.
Aliás, ao falar isso já antevejo comentários, vindos de todos os lados, acusando-me de sonhador, iludido ou utópico. Mas o problema desses burocratas, que querem manter suas regalias ou tentar assumir as regalias dos outros, pautando-se na inexorabilidade ou na lógica do mal menor, é exatamente o de vedarem a toda uma geração a possibilidade de ter sonhos e de lutar por um mundo melhor, buscando mergulhá-los na individualidade egoísta.
Além disso, os ajustes de sustentabilidade já firmados pelo governo com o setor econômico, à revelia do debate popular, notadamente com a classe trabalhadora, carregam consigo, em razão do próprio modo como estão sendo concretizados, uma carga autoritária muito forte, sendo certo que a sensação de um poder quase absoluto, percebida pelos setores que estão conseguindo acuar o governo (que, de todo modo, não pode ser visto como vítima), não verá limites para promover ações persecutórias, de índole ideológica, no âmbito de instituições públicas e mesmo privadas.
Veja-se, por exemplo, a publicação, em 20/08/15, da Carta Aberta de Professores Eméritos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nenhum deles ligados ao Direito, direcionada ao Ministro da Educação, pedindo a este que tome providências contra o Reitor da Universidade, Prof. Eduardo Serra, precisamente porque este Reitor, enfim, após longos anos de negação da ordem constitucional, resolveu respeitar o direito de greve e sua lei reguladora (Lei n. 7.783/89), que determina que a continuidade dos serviços essenciais deve ser deliberada de comum acordo com os trabalhadores em greve. A Carta dos Eméritos em questão representa, claramente, a tentativa de supressão das instâncias institucionais, judiciais, para solução de conflitos, buscando uma “solução” autoritária, ditada pelo império das próprias razões e com uso da força do Estado impulsionada pela pessoalidade, ferindo, inclusive, os princípios constitucionais do ato administrativo (art. 37).
A Carta serve, portanto, para demonstrar como as articulações para um golpe fazem escola e para advertir quanto é importante defender as instituições democráticas em momentos de pouca tolerância e escassa racionalidade como o que vivemos.
Há, pois, uma emergência na defesa das instituições democráticas e dos direitos sociais e humanos, não representando isto uma defesa do governo e muito menos da impunidade.
O fato é que a quebra da institucionalidade seria, por certo, um problema imediato para toda a sociedade e, em especial, para a classe trabalhadora. Claro que não seria o fim da história e pode até ser que deixar a crise do capitalismo chegar ao extremo, como pretendem mesmo alguns setores do grande capital, conduza a um processo dialético mais intenso, sendo compreensível, por isso, que parte da esquerda também aposte na crise e até mesmo que parte do setor econômico, também percebendo isso, comece a reduzir seus impulsos para estimular o aprofundamento da crise econômica, política e institucional.
Mas não me parece que seja racional e mesmo humano apostar no caos. O processo histórico dialético, certamente, é complexo e imprevisível. De concreto mesmo o que se tem até agora é um ajuste entre o governo e alguns setores da economia para fazer com que os trabalhadores paguem a conta da crise, haja vista o advento abrupto, de cima para baixo, de uma tal “Agenda Brasil”, que massacra os trabalhadores e esfacela as instituições públicas.
Ocorre que sem uma oposição a tudo isso, com a pretensão de corroborar a Agenda ou com o objetivo de apostar no caos para incrementar uma ação revolucionária mas sem uma agenda concreta, ou seja, não se apresentando ao menos uma racionalidade pautada pela fundamentalidade da democracia e dos direitos sociais e humanos, que, bem ou mal, trazem algum projeto, o que resta é apenas a sensação de uma completa desordem, que elimina utopias. Isso não apenas atrai um individualismo pragmático, mas também gera intolerância, alimentando ódios, violências, linchamentos, reações xenófobas e até o advento de seitas fundamentalistas ou, simplesmente, desesperança, desilusão e desânimo2. Não se trata, pois, de proposições que favorecem a avanços, e sim a graves retrocessos.
É urgente, pois, tentar estabelecer uma racionalidade sobre as complexidades que envolvem o ponto central da vida na sociedade capitalista que é a relação capital-trabalho, inclusive para aproveitar a força que está nas ruas, que não deixa de ser, ainda, um reflexo de junho de 2013.
Em vez da classe que vive do trabalho ficar acuada e temerosa quanto às possibilidades de retrocesso, precisa retomar as ruas e colocar as suas pautas, que devem ser: a defesa da democracia, das instituições públicas e dos direitos trabalhistas e sociais. É totalmente pertinente, portanto, os lemas que correm entre os trabalhadores: “nenhum direito a menos” e “os trabalhadores não vão pagar pela crise”.
Do ponto de vista jurídico, impõe-se a defesa da ordem constitucional vigente, que instituída a partir da noção de Estado Democrático de Direito, prevê, em seu artigo 3º, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Fonte: Carta Maior
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