A mídia posiciona-se contra a regulamentação, sob o pretexto de cerceamento da liberdade de expressão.
Por que silencia sobre o episódio?
Na semana passada, pela mídia alternativa, tomei conhecimento de uma notícia muito grave que consistia no fato de uma guarnição da polícia militar de São Paulo ter interrompido uma peça de teatro popular em Santos, crítica à instituição.
Os policiais apreenderam o material do cenário e os celulares dos integrantes da plateia que, indignados, filmavam aquela “ação policial”. Alguns atores da Trupe Olho da Rua foram, ainda, conduzidos à delegacia.
Em cena, o elenco trajava roupas similares ao fardamento oficial da PM, mas no lugar de calças, saias. Além disso, a bandeira nacional que integrava o cenário estava de ponta cabeça. Com isso, os artistas pediam atenção para a truculência e o machismo que transparecem nas atuações policiais, além de, com a bandeira invertida, simbolizar que o País estava de pernas para o ar, em referência à crise atual e geral.
Independentemente da discussão envolvendo a possibilidade ou não de utilizar a bandeira para protestar, questão que envolveria um maior espaço para os limites da liberdade de expressão, fato é que o episódio do dia 30 de outubro foi lamentável.
Não só pelo evidente abuso de autoridade dos policiais que afrontaram os exercícios da liberdade de expressão e de manifestação, já que a peça fazia carga contra uma instituição do Estado, mas, também e principalmente, porque esse episódio flagrantemente inconstitucional não recebeu espaço razoável nas agendas temáticas dos grandes veículos de comunicação, concessionários do direito de exploração comunicativa.
Afinal, a conduta da PM foi uma evidente censura, aliás, uma censura à moda clássica, inclusive com a apreensão de itens do cenário e o uso de algemas. Nada a diferenciar dos abusos cometidos na vigência da Ditadura Militar que tanto revoltavam a imprensa e os artistas da época e que impulsionaram manifestações de resistência, algumas até cruentas, tudo com o objetivo de que a Constituição de 88 contemplasse a proibição da censura.
Vale lembrar que a criticada Lei de Imprensa vigeu até há poucos anos, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), por ocasião do julgamento da ADPF 130, declarou sua não recepção pela atual Constituição.
Na ocasião, por maioria (é bom registrar), o STF definiu que o conflito entre a liberdade de expressão e os direitos individuais seria resolvido a partir da fórmula modulada que, num primeiro momento, daria total liberdade ao exercício de se expressar e, num segundo momento, se o caso, o ofendido poderia socorrer-se ao Poder Judiciário.
Sem prejuízo das críticas que eu tenho em relação à parte técnica e à efetividade dessa forma de proteção definida pela maioria do Supremo, fato é que, desde aquele julgamento, os grandes veículos da mídia têm se posicionado contra qualquer tipo de tentativa de regulamentação do exercício da liberdade de imprensa, sob o pretexto de que isso seria sinônimo de censura.
Inúmeros são os artigos escritos, as palestras proferidas, as notas públicas assinadas por associações de jornalismo etc, no sentido de que regulamentação é sinônimo de censura, argumento que, por certo, não merece guarida, a exemplo do modelo português, alemão e tantos outros países democráticos.
E aqui uma pergunta importante, parafraseando o professor Aury Lopes Jr: censura para quem?
Afinal, quando acontece um evidente ato de censura, como aquele sofrido pelo elenco teatral da cidade de Santos, a imprensa profissional não se presta a dar espaço razoável para o assunto?
Isso é, no mínimo, triste.
Afinal, a notícia só ganhou certo espaço na mídia amadora das redes sociais, além de tímidos espaços em jornais de grande circulação. Não se viu nenhuma capa de jornal impresso ou espaço em jornal televisivo de horário nobre. Não se viu sequer uma campanha encampada por artistas exilados no governo ditatorial e que, portanto, sentiram na pele o arrepio da censura.
Não seria esse episódio um exemplo de censura?
Vale a pena refletir o motivo da postura da grande mídia ter preferido superar a questão em um quase silêncio, como se estimulasse a paz.
Paz ou omissão?
Eis o questionamento que constou em um dos pouquíssimos artigos publicados sobre o tema, assinado pelo dramaturgo Lauro César Muniz e publicado no caderno “Aliás”, do Estadão, no domingo 6.
A conclusão a que se chega é lamentável, na medida exata em que a percepção que fica é de que o argumento da censura só é invocado quando as poucas e grandes empresas da mídia entendem que poderão sofrer qualquer tipo de prejuízo financeiro, não necessariamente quando o risco permeia o exercício da liberdade de imprensa propriamente dito.
Uma pena o episódio envolvendo os artistas da cidade de Santos – peça que inclusive tinha apoio cultural e financeiro do Governo do Estado de São Paulo – não ter significado nenhum risco ao faturamento do oligopólio empresarial-midiático. Não fosse isso, talvez o fato tivesse dividido espaço de alguma grande operação policial nas tão concorridas agendas temáticas jornalísticas.
Como não foi o caso, o episódio será esquecido e a liberdade de expressão continuará inviolável - desde que a expressão seja de algum dos integrantes da mídia de grife.
* Rafael de Souza Lira é Mestre e Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Secretário-Geral da Comissão Especial IBCCRIM-Coimbra. Sócio do Silva Franco, Feltrin e Souza Lira – Advogados Associados. Autor da obra “Mídia Sensacionalista. O segredo de justiça como regra”
Fonte: Carta Capital
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