Relatório reúne relatos de soldados israelenses sobre excessos cometidos durante uma operação que matou cerca de 2100 palestinos e 66 soldados israelenses.
Verão de 2014, Faixa de Gaza. Um senhor de idade palestino está caído no chão. Ele caminhava perto de um posto de identificação do exército israelense. Um soldado decidiu atirar. O senhor ficou gravemente ferido na perna, sem se mover. Está vivo? Os soldados discordam entre si. Um deles decide acabar com a discussão e abate o velho.
Esta história, contada por vários de seus participantes, faz parte da acusação mais devastadora contra o exército israelense desde a guerra, e parte de seus próprios soldados. A ONG Breaking the Silence ("Quebrando o silêncio"), que inclui veteranos das Forças de Defesa de Israel, publica nesta segunda-feira, 4 de maio, uma série de entrevistas concedidas anonimamente por cerca de 60 participantes da operação "Limite protetor".
Uma operação realizada entre 8 de julho e 26 de agosto de 2014, que resultou na morte de cerca de 2100 palestinos e 66 soldados israelenses. Israel destruiu 32 túneis que permitiam entrar em seu território clandestinamente, e em seguida fez um acordo de cessar-fogo com o Hamas que não resolveu nada. A ofensiva causou danos materiais e humanos sem precedentes. E levanta "sérias dúvidas sobre a ética" do exército de Israel, de acordo com a ONG.
"Se vir alguém, atire!"
Breaking the Silence nunca usa o termo "crimes de guerra". Mas o material que a organização coletou, verificou e, em seguida, submeteu à censura militar – como é exigido a todas as publicações relacionadas à segurança nacional – é impressionante. "Este trabalho levanta suspeitas preocupantes de violações das leis humanitárias”, diz o advogado Michael Sfard, consultor da ONG há dez anos. “Espero que haja um debate, mas temo que se fale mais do mensageiro que da mensagem. Os israelenses estão cada vez mais autocentrados e nacionalistas, intolerantes às críticas”.
Aproximadamente um quarto das testemunhas são oficiais do Exército. Todas as corporações estão representadas. Alguns carregavam armas, outros estavam na cadeia de comando. Esta diversidade permite, de acordo com a ONG, traçar uma imagem das "políticas sistêmicas" decididas pelo Estado-Maior, tanto durante os bombardeios quanto nas operações por terra. Este quadro contrasta com o discurso oficial sobre a lealdade do exército, seus rigorosos procedimentos e advertências feitas aos civis para fugir antes da ofensiva.
Os testemunhos que compõem o relatório contam uma história um pouco mais turva. Em nome da obsessão do risco mínimo para os soldados, as regras de engajamento – a distinção entre inimigos combatentes e civis, o princípio da proporcionalidade – se embaralharam. "Os soldados foram instruídos por seus comandantes a disparar em cada pessoa identificada em uma zona de combate, uma vez que a hipótese de trabalho era que qualquer pessoa no solo era um inimigo", diz a introdução. "Disseram-nos que não deveria haver civis no local: se você vir alguém, atire!”, recorda-se um sargento de infantaria, lotado no norte de Gaza.
As instruções são claras: a dúvida é um risco. Uma pessoa observa os soldados de uma janela ou de um telhado? É um alvo. Alguém está andando na rua a 200 metros do exército? É alvo. Mora num prédio cujos moradores foram alertados? É alvo. Quando não há alvos, atiramos granadas ou morteiros: "esterilizamos", segundo a expressão recorrente. Ou ainda enviamos os D-9, escavadoras blindadas para destruir casas e ampliar o campo de visão.
"O bem e o mal se misturam"
Um soldado se lembra de duas mulheres que caminhavam e falavam ao telefone certa manhã, a cerca de 800 metros das forças israelenses. Seriam “olheiras”? Um drone as segue. Nenhuma certeza. Logo são abatidas, e classificadas como "terroristas". Um sargento conta de um "Bom dia, Al-Bourej!” dirigido em outra manhã por sua unidade de tanques a este distrito localizado na parte central do território. Os tanques então se alinham e, obedecendo a ordens, atiram todos ao mesmo tempo, de forma aleatória, para marcar a presença israelense.
Muita liberdade de avaliação era deixada para os homens na ponta da operação. Ao longo dos dias, "o bem e o mal se misturam um pouco (...) e tudo se torna quase como um videogame", conta um soldado. Esta liberdade corresponde a um modus operandi. No nível do Estado-maior, havia, de acordo com a ONG, três "níveis de ativação", determinando justamente as distâncias de segurança aceitáveis em relação aos civis palestinos. No nível três, são previstos danos colaterais importantes. "À medida que a operação avançava, diminuíam as limitações", explica a ONG. "Nossa pesquisa mostra que, para a artilharia, a distância a ser mantida dos civis era muito inferior à distância em relação aos nossos soldados", disse Yehuda Shaul, um dos fundadores da Breaking the Silence.
Um tenente de infantaria, lotado no norte de Gaza, recorda: "Mesmo se nós não entramos (nas zonas de combate), é granada, granada, granada. Uma estrutura suspeita, uma área aberta, uma possível entrada de túnel: tiro, tiro, tiro”. O oficial evoca o afrouxamento das restrições à medida que passam os dias. Quando o terceiro nível de operação é decidido, a Força Aérea têm o direito a um "nível razoável de perdas civis”, diz. “Isto é algo indefinível, que depende do comandante da brigada, em função de seu humor”.
No fim de 2014, o vice-procurador militar Eli Bar-On recebia o Le Monde para defender a capacidade de discernimento das forças armadas. "Realizamos mais de cinco mil ataques aéreos durante a campanha. O número de vítimas é fenomenalmente baixo", garantiu. Segundo ele, cada ataque aéreo é objeto de reflexão e de uma investigação profunda. Ele afirma que "a maior parte dos danos foi causada pelo Hamas". O magistrado contesta o movimento islâmico por sua utilização de construções civis. "Dispomos de um mapa com as coordenadas de todos os sítios sensíveis, como mesquitas, escolas, hospitais, atualizado várias vezes por dia. Quando o sobrepomos ao mapa dos tiros de foguetes, percebemos que uma parte significativa foi disparada desses lugares”.
Treze inquéritos criminais abertos
O exército pode ele próprio se investigar? O Ministério Público Militar abriu treze investigações criminais, dos quais dois sobre saqueamentos já encerrados porque os denunciantes não se apresentaram. Os outros casos envolvem episódios tristemente notórios do conflito, como a morte de quatro crianças na praia de Gaza, em 16 de julho de 2014. Seis outros casos foram encaminhados ao Ministério Público para que seja aberta uma investigação criminal, após um processo de verificação inicial.
Estes procedimentos internos não inspiram muita confiança. Em setembro, duas ONGs israelenses, B'Tselem e Yesh Din, anunciaram que deixariam de cooperar com o Ministério Público Militar. Foram convencidas pelos resultados de investigações anteriores. Depois da guerra 2008-2009 na Faixa de Gaza (quando quase 1400 palestinos foram mortos), 52 inquéritos foram abertos. A sentença mais severa – quinze meses de prisão, com liberdade condicional no meio da pena – foi dada a um soldado que roubou um cartão de crédito. Após a operação "Pilar Defensivo", em Novembro de 2012 (167 palestinos mortos), foi criada uma comissão interna, mas nenhum inquérito foi aberto. O comportamento do exército foi considerado "profissional".
Tradução de Clarisse Meireles.
Fonte: Carta Maior
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