O jornalista Chris Hedges (prêmio Pulitzer) defende que vivemos o auge de uma crise humanitária sem precedentes.
Rui Matoso, do Bloco de Esquerda de Portugal, é professor universitário
Numa entrevista publicada no Salon, a propósito do lançamento do seu novo livro Wages of Rebellion: The Moral Imperative of Revolt, o jornalista Chris Hedges (prêmio Pulitzer) afirma que vivemos num período de incubação, um interregnum prévio ao eclodir da revolução, tal como Antonio Gramsci o havia descrito nos Cadernos do Cárcere a propósito do conceito de crise orgânica: a crise consiste precisamente no fato do antigo estar a morrer e do novo ainda não poder nascer; neste interregno uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem.
É a partir da definição de situação revolucionária (Lênin) que Gramsci situa este interregno, uma suspensão das funções democráticas de governação, onde os governantes já não conseguem governar e os governados não pretendem continuar a a ser governados. Mas é também neste impasse que os Estados tendem a impor o estado de exceção como paradigma de governo e regra dominante na política contemporânea, desde a 1ª Guerra (Giorgio Agamben), dificultando assim, através do exercício sistemático da violência, o surgimento de plataformas favoráveis à democracia radical, à luta antiglobalização ou aos movimentos anticapitalistas.
Na história mais recente do estado de exceção, o efeito panóptico do controle foi ampliado pela cibernética, o infame Patriot Act – iniciativa de George Bush após o 9/11- teve consequências sobejamente conhecidas na escalada da vigilância e controlo dos diversos movimentos sociais. Dada a situação de fim parcial de validade legal desta medida, o congresso americano poderá ainda mantê-la ou suspender os seus atos, nomeadamente desligar os sistemas de vigilância massivos da NSA, é isso que exigem os movimentos que defendem a liberdade de expressão e o direito à privacidade.
Na entrevista e num outro texto intitulado Our Invisible Revolution, Chris Hedges menciona o anarquista Alexander Berkman, para se referir à ideia de “ponto de ebulição” revolucionário. No ensaio The Idea is the Thing, Berkman coloca uma questão inicial que é ainda aquela que nos colocamos um século depois: já alguma vez se perguntaram como é que acontece que estes governos e o capitalismo continuem a existir apesar de toda miséria e problemas causados no mundo?
Apesar dos muitos (os 99%) terem consciência deste paradoxo, também sabemos que não existem fórmulas mágicas ou soluções prontas a usar. Neste sentido, Berkman diz que a revolução é o clímax de uma trajetória evolutiva, a revolução é pois o ponto de ebulição da evolução, e as condições econômicas e políticas o fogo que aquece mais, ou menos, o caldeirão social. De acordo com esta lógica, a Grécia teria atingido já o limiar da ebulição, sendo o Syriza o motor da revolução contra as políticas neoliberais e austeritárias em solo europeu.
Contudo, não se trata apenas de mecânica clássica dos fluidos, há mais variáveis na equação, segundo Berkman: as pressões vindas de cima (opressão política e económica); as pressões vindas de baixo (emancipação, ativismo e pensamento crítico); a disseminação e debate de ideias críticas que facilitem a emergência de subjetividades rebeldes (esclarecimento).
A causalidade necessária entre a preparação individual e coletiva, e a efetiva emergência de um movimento revolucionário organizado é um dos principais fatores de uma transformação social e política bem sucedidas. No caso da revolução Russa de 1917, Berkman só a reconhece como caso de sucesso até o ponto em que a falta de esclarecimento das massas acerca dos fundamentos políticos redundou na imposição da ditadura após a morte de Lênin.
Na atualidade, também se tornou evidente que os movimentos dos Indignados da Espanha, a partir do 15-M (15 Maio, 2011), precisaram de tempo para reforçar a construção de um programa político e a organização da ação, até ao momento em que eclodiram como movimento político Podemos e iniciaram a mudança política na Espanha. Também os Occupy necessitam de ter em conta essa “diferença de potencial” entre a difusão e o enraizamento de uma cultura de crítica política e social, tal como Slavoj Zizek mencionou no Occupy Wall Street: "há um perigo: não se apaixonem por vocês mesmos. Passamos um tempo bom aqui. Mas lembrem-se, carnavais vêm fácil. O que importa é o que vem depois, quando retornarmos às nossas vidas normais".
Chris Hedges menciona essencialmente as circunstâncias atuais nos EUA. Lá, apesar das revoltas em torno das mortes de cidadãos afroamericanos e contra a violência policial, a cada 28 horas uma pessoa de cor é abatida pela polícia, pessoas que na maioria dos casos estão desarmadas. Isto é sintomático de um Estado ossificado em torno dos interesses das corporações, que já não se preocupa nem age a favor da sociedade civil. Atingido este ponto, afirma Chris Hedges, os mecanismos normais de reforma incremental das instituições sociais deixam de funcionar porque foram capturados por outros poderes exteriores ao Estado (corporações financeiras ou impérios de comunicação social, p.ex).
As frentes de luta são muitas e em diversas escalas, desde a globalização secreta dos mercados livres inscrita no atual Tratado Transatlântico às privatizações nacionais, passando pelas alterações climáticas, migrações forçadas e inumanas, a expansão do poder militar e da guerra, ou o reforço da violência contra os cidadãos, etc. É aliás na conjuntura desta frente de confronto, onde a violência e os recursos tecnológicos bélicos serão certamente usados em caso de levantamento popular, que os ativistas e movimentos sociais têm hoje de aliar-se aos hackers e ciberativistas.
Miguel Caetano (investigador em Ciências da Comunicação), questiona, num post sobre a entrevista de Chris Hedges: como é possível vencer o aparelho militar-industrial dos EUA? Eu diria que sem intervenção de hackers é quase impossível. O resultado só poderá ser uma guerra civil sangrenta e, consequentemente, o regresso à barbárie... De qualquer forma, EUA e Espanha continuam a ser países com um elevado potencial "revolucionário", seja pela via pacífica ou não.... é que parece impossível que uma revolução ocorra em pleno século XXI sem ter em conta o plano da ciberguerra e dos ataques informáticos contra infraestruturas militares e de comunicações. De outro modo o número de vítimas tenderá a ser gigantesco, dada a capacidade de extermínio das armas dos dias de hoje.
Seja como for é preciso atenção redobrada neste interregnum, e ter em consideração que na derradeira carta ao comité revolucionário Lenin fez notar que a história não perdoará aos revolucionários procrastinadores...
Fonte: Carta Maior
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