As demandas são legítimas, mas as soluções propostas revelam um entendimento precário da política e prenunciam uma democracia ainda mais frágil
No início de 2011, estive no Egito durante as manifestações contra Hosni Mubarak. Nas ruas do Cairo, poucos olhavam para o futuro e o imediatismo trazia consigo um frenético questionamento sobre a permanência ou não do ditador. Era um comportamento compreensível para um povo que sempre viveu sob regimes autoritários.
No domingo 16 de agosto de 2015, em São Paulo, as conversas com os manifestantes anti-Dilma estranhamente remeteram aos eventos no Cairo. O Brasil está no 30º ano de seu segundo experimento democrático (o primeiro durou apenas 18 anos), mas boa parte da população ainda tem conhecimentos rudimentares sobre a democracia, o sistema político e as possibilidades de transformá-lo.
Nesse cenário, demandas legítimas como menos corrupção, economia mais organizada e melhores serviços de saúde e educação, que podem ser traduzidas como um apelo por uma democracia melhor, são direcionadas de maneira tão equivocada que ensejam ameaças ao regime democrático, e nenhuma solução para os problemas descritos.
Uma das mais preocupantes características dos manifestantes é o impulso em se dizerem apartidários. Entrevistas feitas na Avenida Paulista deixaram essa impressão, comprovada por uma pesquisa da Universidade de Vila Velha (UVV), nos atos em Vitória, no Espírito Santo. Quase três quartos dos presentes no protesto (70,49%) se disseram “apartidários” ou “apolíticos”.
A falta de representatividade dos partidos e o histórico de decepções proporcionado pelas siglas brasileiras criou uma ojeriza à política e uma “verdade” segundo a qual só pode ter razão em um debate quem é “neutro” ou “apartidário”. Ocorre que o desprezo aos partidos não pode ser confundido com uma rejeição à política. Por uma razão bastante simples: não há substituto para a política. É na fenda aberta entre a sociedade e o sistema representativo que grassa a cretinice dos defensores da ditadura. Para fechar essa fresta, a solução não é acabar com os partidos, mas reformá-los, pois eles são basicamente o único canal formal de contato entre a sociedade e o Estado.
Também causa inquietação a amplitude da bandeira do impeachment nos atos, apoiado por 82% das pessoas em São Paulo (Datafolha) e visto como parte da melhor solução para a crise por 71,58% em Vitória (UVV).
Um processo de impeachment é, em alto grau, político, e de fato só é desencadeado pela perda de apoio de um governo. Há, no entanto, um componente jurídico na ação e, no caso de Dilma Rousseff, esse elemento ainda não está posto. A derrubada de um presidente sem um fato concreto que o incrimine seria uma demonstração de que a política vence o devido processo legal. Como têm afirmado diversos analistas e veículos jornalísticos estrangeiros, largamente ignorados pela imprensa brasileira, muito afeita a repercutir quando se fala mal do País, um desfecho como esse para a crise teria como resultado o enfraquecimento das instituições, justamente por demonstrar que elas não estão protegidas dos ânimos políticos, mas sim suscetíveis a mudanças bruscas.
Um terceiro aspecto alarmante das manifestações é a demanda genérica por “menos corrupção”. Sem propostas concretas para enfrentar esse problema endêmico, muitos manifestantes apostam na figura salvadora que virá para expiar os pecados. Na crise do “mensalão”, o herói era Joaquim Barbosa. Na atual, é Sergio Moro (que, aliás, nem pode julgar políticos). Assim como o apelo do apartidarismo e o ímpeto pelo impeachment sem provas, esse pensamento tem matriz antidemocrática, uma característica que está incrustada na nossa sociedade, como afirmava Mario Covas (PSDB), segundo quem “somos resultado de uma cultura extremamente autoritária, que nos faz sempre ansiar e esperar pelo milagroso que vai aparecer e resolver os nossos problemas”.
Essa espera pela salvação é, lamentavelmente, acompanhada por uma sanha punitiva que, sozinha, é incapaz de resolver o problema da corrupção. Isso está evidenciado na própria Lava Jato: alguns dos presos nas fases mais recentes da operação continuavam recebendo propina, mesmo com a investigação em andamento. Como demonstram as experiências de países como Dinamarca, Finlândia, Nova Zelândia e Suécia, consistentemente apontados como alguns dos menos corruptos do mundo, a ampliação da participação popular e da transparência do Estado é que são decisivos para impedir a repetição de casos de corrupção.
No Egito, os milhares nas ruas se sentiram contemplados quando Mubarak foi derrubado, mas pouco perceberam que a saída do ditador era a cortina de fumaça criada pelo sistema para continuar funcionando.
O Brasil tem instituições infinitamente mais firmes do que as egípcias. A Operação Lava Jato pode ser um marco no combate à corrupção, status negado à Satiagraha e à Castelo de Areia, e, por isso, é uma grande oportunidade. Ainda há tempo para o País sair mais forte da crise, mas isso certamente não ocorrerá com as soluções propostas pelos manifestantes de domingo 16.
Fonte: Carta Capital
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