Musoki, que escapou da guerra no Congo, espera a família
Em agosto, chegou a 8,4 mil o número de asilados vivendo no País
Romain Musoki não vê a mulher e os dois filhos pequenos desde o dia em que trocou o Congo pelo Brasil, há um ano e dois meses, mas logo matará a saudade. Final alegre de uma história triste. No fim da década de 90, Musoki foi obrigado a entrar para o Exército congolês, após o guerrilheiro Laurent Kabila derrubar uma ditadura de 1965, dispensar os aliados estrangeiros e remontar as Forças Armadas.
Esteve por três anos no “Holocausto Africano”, conflito mais mortal desde a Segunda Guerra Mundial. Cansado do front, decidiu desertar. Seu comandante descobriu, ele ficou preso um mês, foi solto e mandado de volta à linha de frente. Tinha de carregar armas pesadas e, franzino, ia devagar. Um golpe de fuzil nas costas por suspeita de corpo mole afetou sua locomoção. Por uma década, viveu entre camas de hospital, cadeiras de rodas, muletas e tentativas do Exército de reintegrá-lo.
Quando, em 2011, uma clínica descobriu que ele tinha uma deformação na coluna, Musoki obteve autorização para se tratar no exterior e resolveu usá-la para fugir de vez do país. Plano cumprido em 2014. “Quando cheguei ao Brasil, senti a paz cair na minha cabeça”, relembra o congolês de 38 anos, à espera de receber a família nos próximos dias.
Refugiados como Musoki nunca foram tantos no Brasil e no mundo. Uma massa de 19,5 milhões de seres humanos perambula pelo planeta, informa um relatório de junho da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Um total correspondente à população de Minas Gerais. As guerras são a principal causa da diáspora. Em cinco anos surgiram ou recomeçaram 15 conflitos em lugares como Síria, Iraque, Sudão do Sul, Paquistão e Ucrânia, que levaram ao recorde de 59,5 milhões de indivíduos deslocados de seus lares. É o pior quadro desde a Segunda Guerra Mundial.
Diante de uma aparente falta de vontade política global para lidar com a situação, que exige mais dinheiro e boa vontade dos países, as Nações Unidas convocaram a I Cúpula Humanitária. Será em maio de 2016, na Turquia, país campeão de abrigo de asilados, graças à guerra civil da vizinha Síria. Os sírios são o maior grupo de refugiados do globo, 3,8 milhões, quase 20% da população. Em seguida aparecem o Afeganistão, ainda sob os efeitos da caçada a Osama bin Laden pelos EUA, e a Somália, pátria dos habitantes do maior campo de refugiados do mundo.
Embora ainda absorva uma fração pequena, o Brasil é cada vez mais procurado como destino. Em cinco anos dobrou a quantidade de refugiados aqui, condição que garante ao indivíduo RG, Carteira de Trabalho, passaporte e proteção contra extradição. Eram 4,2 mil em 2010 e em agosto chegaram a 8,4 mil. O IMDH, uma ONG que coordena 55 entidades pelo País, viu explodir por dez o número de pedidos de refúgio desde 2010. São Paulo tornou-se a cidade latino-americana mais procurada. Não estranha ter sido a sede de uma Copa dos Refugiados pelo segundo ano, a última vencida no início do mês por Camarões.
Os asilados no País são na maioria homens (70%) e jovens (65% têm de 18 a 39 anos). Metade foi acolhida por grave e generalizada violação dos direitos humanos, 22% por perseguição política, 22% por reunião familiar (caso Musoki) e o restante por perseguição social ou religiosa. Vieram, sobretudo, da Síria (2.077), Angola (1.480), Colômbia (1.093) e Congo (844).
É fácil entender a atração exercida pelo Brasil. O País, diz Andrés Ramirez, chefe do escritório brasileiro da Acnur, ganhou projeção recente, por ter se tornado, em 2011, o sexto PIB mundial (voltou a cair no ranking), hospedado a Copa do Mundo em 2014 e ser a sede da próxima Olimpíada no ano que vem. Não só, ressalta Ramirez. “Há uma política mais restritiva, com países a fechar as fronteiras, como na Europa. Os refugiados têm de tentar outros destinos.”
O paquistanês Haaron Ali, de 20 anos, é um desses casos. Era mais fácil, conta, tirar visto brasileiro do que para Europa ou EUA. Ao deixar o Paquistão em 2013, ele cursava a faculdade de Medicina, mas agora faz Enfermagem. Em seu país, o apreço pela vida anda em baixa, graças ao terrorismo, que afugentou a família Ali. O noroeste está em guerra desde 2004, também por obra da caçada a Bin Laden. Um ramo local do Talebã tenta criar um Estado islâmico. Em dezembro, um ataque a uma escola matou mais de uma centena de crianças. “Nunca mais vou voltar para lá, ninguém sabe quando isso tudo vai acabar”, diz.
Fugitivos do Burundi rumo à Tanzânia / Crédito: Daniel Hayduk/AFP
O súbito aumento da procura por guarida pegou o Brasil desprevenido. Na quarta-feira 19, o governo anunciou medidas para encorpar o Conselho Nacional para os Refugiados (Conare), que abrirá gabinetes em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. A equipe atual de cinco funcionários encarregados de examinar pedidos de refúgio ganhará até outros 15. Entrevistas com interessados vão ocorrer também por videoconferência. Tudo para tentar resolver os 12 mil pedidos de refúgio no aguardo de uma decisão e para dar conta de uma demanda que não arrefecerá tão cedo.
O Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas sobre Refugiados, de 1951, e tem uma Lei de Refugiados, de 1997, considerada pela ONU uma das melhores do mundo. As obrigações legais não são, porém, as únicas apontadas pelo governo para investir no Conare perto de 8 milhões de reais anuais. “É uma postura humanitária. Os refugiados não buscam uma oportunidade de viver melhor, mas de viver”, diz o secretário Nacional de Justiça, Beto Vasconcelos. E como, segundo ele, “a intolerância perdeu a vergonha no Brasil”, o governo lançou, além das medidas, uma campanha na internet para sensibilizar a sociedade sobre refúgio e a razão de concedê-lo.
A maior presença estrangeira no País, decorrente de asilados e imigrantes tradicionais, não tem produzido, até aqui, ondas xenófobas, como se vê na Europa. Doutor em Sociologia e coordenador científico do Observatório das Migrações Internacionais, Leonardo Cavalcanti diz que nos últimos tempos houve apenas episódios isolados, incluídos os recentes tiros disparados contra haitianos em São Paulo. “Está mais para racismo do que para xenofobia.”
O colombiano Arvei Mima Mosquera, de 50 anos, passou certos embaraços ao chegar ao Brasil em 2012 e às vezes ainda experimenta dissabores. Quando, no início, ia a restaurantes populares, ouvia gente dizer que o País dava comida a estranhos. Hoje nota que a cerveja fica mais cara quando descobrem que é de fora. Mas nada disso o faz pensar em ir embora, nem em voltar à Colômbia. Não quer estar de novo no fogo cruzado entre o governo e as Farc.
Em seu país, Mosquera fazia fretes de caminhão para os guerrilheiros, até começar a se sentir seguido. A casa onde morava com a mulher e um filho passou a ser vigiada. Chamar a polícia era inútil. Um dia a situação ficou insuportável e ele decidiu fugir para o Brasil, onde trabalha para uma transportadora. A distância, não alimenta ilusão sobre as negociações de paz em curso. “Não vão terminar nunca, muita gente lucra com a situação.”
O Brasil também se esforça além de suas fronteiras para auxiliar refugiados. Uma medida provisória de 2010 convertida em lei no ano seguinte liberou o governo para fazer doações internacionais de alimentos provenientes dos estoques públicos. De lá para cá, foram distribuídas 328 mil toneladas de arroz, feijão e milho, das quais 57% tiveram a África como destino.
No ano passado, 11 mil toneladas de arroz brasileiro garantiram o suprimento de todos os palestinos na Faixa de Gaza, “um campo de concentração a céu aberto”, na definição do diplomata Milton Rondó Filho, coordenador-geral de Ações Internacionais de Combate à Fome.
*Reportagem publicada originalmente na edição 864 de CartaCapital, com o título "De braços abertos"
Fonte: Carta Capital
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