Neste 16 de agosto, a elite branca mais uma vez destilou na Avenida Paulista um veneno bastante conhecido dos pobres.
Às vezes dizer o óbvio tem a sua importância. As pessoas que participaram das manifestações no último dia 16 de agosto não são idênticas. Nas ruas, havia de tudo. Pobres e ricos, brancos e negros, trabalhadores e patrões. É fato que a insatisfação desceu. Cabe à esquerda compreendê-la e oferecer saídas. Mas daí a concluir que o "povo" tomou as ruas é um grande equívoco.
O que predominou no domingo?
De início, é importante notar que os extremistas, entusiastas da ditadura e defensores da "intervenção militar constitucional", representam uma minoria. A maioria não parece fechar com suas ideias, embora não faça o menor esforço para contestá-las, antes dando-lhes guarida e abrigo.
Todavia, ao contrário do que os patrocinadores das manifestações alegam, também o povo figurou em minoria nas ruas no último dia 16 de agosto.
A tabela abaixo, divulgada pelo insuspeito Datafolha, não deixa dúvida de que, na Avenida Paulista, predominava a elite branca, repetindo o quadro de abril e de março, como notou na época o também insuspeito jornalista Fernando Canzian: "Os que foram à rua em São Paulo pareciam muito representativos dos ricos" (15/03/2015)
Por que a elite branca protesta?
Seria útil se o Datafolha incluísse em sua pesquisa perguntas que oferecessem um perfil mais detalhado dos manifestantes, que incluisse suas opiniões e atitudes em relação aos pobres. Ajudaria muito a explicar as razões profundas das manifestações. Mas talvez o grupo Folha de S. Paulo não tenha interesse nisso.
É certo que, entre as pessoas de maior renda, nem todos são necessariamente o tipo de gente que pensa "esse aeroporto está parecendo uma rodoviária". Há sempre exceções. Contudo, inúmeras pesquisas têm mostrado que predomina na classe média tradicional - isto é, na elite branca - uma forte insatisfação devido à perda relativa de prestígio e status fruto da mobilidade social promovida pelo governo Lula.
São pessoas que não aceitam qualquer fissura na cultura senhorial legada de nossa formação social escravocrata, por mais tíimida e modesta que seja. É o tipo de gente que até gosta da empregada doméstica, desde que ela "fique no seu lugar". Mas como agora a empregada doméstica "está ficando folgada", sobrou para Lula, Dilma e o PT.
Embora a corrupção mereça ser alvo de protestos - cabendo ao PT uma dura autocrítica na prática -, para a maioria a operação Lava Jato foi o pretexto. Não que a maioria não queira o fim da corrupção, mas querer isso e votar em Aécio Neves não é exatamente sinal de coerência.
Não é o vago desejo de um país livre da corrupção que os move neste momento. Se assim fosse, o Datafolha teria revelado outro quadro. Os pobres também querem o fim da corrupção e, mais uma vez, abstiveram-se de misturar-se com os ricos na avenida. Os pobres não sentem ódio do PT por causa, por exemplo, do Mais Médicos; os ricos, sim.
Os pobres estão descontentes e decepcionados com Dilma, e com razão, mas daí a supor que eles não têm discernimento é outro equívoco, dessa vez banhado de preconceito. Os pobres intuem com aguda clareza que, por trás do ódio ao PT e aos dois mandatários presidenciais, esconde-se na verdade um profundo e arraigado ódio contra eles próprios.
Por mais que "elite branca" tenha se tornado um bordão na boca da esquerda, de modo que alguns jornalistas e ativistas da direita já começam a ironizar, o que importa é que os de baixo percebem a existênca de uma elite branca e sabem que ela os odeia. Sabem porque, afinal, trata-se de um ódio que se manifesta diária e cotidianamente. Experientia docet.
Nesse sentido, fotos e vídeos das manifestações são extremamente instrutivas. Sobretudo aquelas imagens nas quais o mal-disfarçado preconceito vêm à tona, ganhando contornos e voz em cartazes, faixas, estampas e declarações.
Na Avenida Paulista, a elite branca mais uma vez destilou um veneno bastante conhecido dos pobres. Escancarando o submundo senhorial de nossas elites, as manifestações desde ano ao menos têm um mérito: tornar mais visível a herança de um passado que não cessa de persistir no presente. Essa é a maior de todas as heranças malditas.
Fonte: Carta Maior
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