Este texto procura apresentar as reais dimensões econômico-financeiras da dívida, através de indicadores usados pelos órgãos técnicos do Governo.
Ao final de 2014 acendeu-se o sinal amarelo sobre as contas do Governo, em razão da constatação de um déficit primário nas contas fiscais de 2014. Logo, esse déficit passou a ser explorado midiaticamente pelas oposições derrotadas em outubro daquele ano, em paralelo às denúncias da operação lava jato, que vem sido conduzidas por autoridades judiciárias do estado do Paraná.
Em lugar de ser analisado como conseqüência da conjuntura recessiva, tanto interna como externamente, o resultado negativo das contas primárias serviu para renegar a qualidade das políticas públicas dos governos petistas, Lula e Dilma, e para dar lugar a exigências de um ajuste fiscal austero, que poderá ter efeitos perversos para os trabalhadores e benéficos para os financistas. Apesar de suas dimensões mínimas, o déficit de 2014 foi de apenas 0,6% do PIB-Produto Interno Bruto, há o receio de que, se persistir, haverá riscos para a sustentabilidade da dívida pública. Um tal receio parece justificado à vista dos encargos que oneram o endividamento, isto é, as elevadas comissões de intermediação bancária e juros condizentes com o ambiente inflacionário.
Na tentativa de contribuir para ampliar a transparência e o entendimento sobre a atual dívida pública do Governo, este texto procura apresentar as reais dimensões econômico-financeiras da dívida, através de indicadores usados cotidianamente pelos órgãos técnicos do Governo. Em seguida, discute-se a natureza das críticas levantadas, que versam em torno de três questões: legitimidade, funcionalidade da taxa SELIC e redução dos graus de liberdade do orçamento público.
1-Indicadores do endividamento
Previamente cabe observar que, à diferença do que se verificou na Argentina e no Equador em período recente, nossa dívida pública é dívida interna em moeda nacional, isto é, ao passivo do Governo correspondem ativos de pessoas físicas e jurídicas brasileiras calculados em reais correntes (embora 20% da dívida mobiliária esteja em mãos de não-residentes).
Quanto ao montante, deve-se fazer distinção entre valores brutos e líquidos. Até junho de 2015, a dívida bruta do Governo Geral elevou-se a R$ 3,6 trilhões, dos quais uma parcela correspondeu a operações compromissadas do Banco Central (R$ 833 bilhões). A maior parcela, e objeto central do debate, é constituída por dívida pública federal mobiliária interna (DPMFi), isto é, títulos do Tesouro Nacional ofertados no mercado, no valor total de R$ 2,4 trilhões.
São detentores desses títulos: instituições financeiras (26,5%), não-residentes (20%), fundos de investimento (19,8%), fundos de previdência (19%) e outros. Segundo o Tesouro Nacional o custo médio atual da DPMFi é levemente superior a 14% a.a, montante desproporcional à receita tributária atual e futura do Governo Federal, pois o pagamento integral desse custo anual (cerca de R$ 340 bilhões em 2015) corresponde a montante próximo a 85% da receita de tributação (impostos) do Governo federal em 2014. Porque o Governo não dispõe de quantia necessária ao pagamento dos juros anuais, o Governo é obrigado a rolar a dívida, somando ao principal o montante de juros devidos e não pagos. Esta é uma das razões para o aumento recorrente da DPMFi periodicamente.
Na verdade, especialistas em finanças públicas afirmam que toda vez que a taxa de juros, ou custo anual da dívida, é maior do que o crescimento do PIB, a tendência é a expansão do endividamento no curto e médio prazo. É por isto que a dívida vem crescendo após 2010, último ano de vigoroso crescimento do PIB real (7,6%). Desde então se passou ao crescimento lento (3,9%, 1% e 2,5% nos anos de 2011, 2012 e 2013) e ao não-crescimento em 2014, ano em que o PIB real cresceu de apenas 0,1%.
Não cabe nesse espaço discutir as causas da estagnação do Produto, vinculadas não só a questões internas mas principalmente ao ambiente recessivo internacional, que impacta negativamente uma economia cuja expansão esteve até então dependente da exportação de produtos primários e de extração mineral. Do ponto de vista das finanças públicas, necessário é estudar as modalidades de compatibilização entre expectativas de crescimento da economia e as regras do jogo pactuadas em matéria de dívida do Governo. Mas fica claro, desde logo, a necessidade de um ajuste fiscal.
Por enquanto a situação é confortável. Frente ao PIB de R$ 5,7 trilhões, cálculo para junho de 2015, a relação dívida bruta/PIB situou-se em 63%. O indicador dívida líquida/PIB, por outro lado, atingiu 35%.[2] Comparativamente a outros países, a dívida brasileira pode ser considerada em situação confortável, como se indica a seguir.
Em 2013, por exemplo, havia na Europa alguns países situados em nível considerado de risco, pois o tamanho de sua dívida superava 90% do Produto. Este era o caso de: Reino Unido, França, Espanha, Bélgica, Irlanda, Portugal, Islândia, Itália e Grécia (este país, no topo da lista, acusou dívida de 175% do PIB em 2013).
Nos Estados Unidos verificou-se também situação preocupante desde meados de 2014, com o montante da dívida atingindo valor superior ao do PIB, respectivamente US$ 17,3 trilhões e US$ 16,9 trilhões.[3]
Outros países alinhados aos Estados Unidos também registraram níveis excessivos de endividamento, como foi o caso da Alemanha e também do Canadá, nos quais o indicador dívida pública/PIB ficou em 75% e 86% respectivamente. No Japão, onde a dívida pública já é duas vezes maior que o Produto Interno Bruto, em dezembro de 2014 a relação dívida/PIB foi de 230%.
Para o mesmo mês, dezembro de 2014, baixos graus de endividamento governamental foram observados na China (40%), Turquia e Suiça (ambos com 33%), e México (30%).
2.-Natureza das críticas levantadas
A principal crítica diz respeito ao patamar da taxa SELIC. Em média, esta taxa se situou em valores muito elevados, em alguns anos. Em 1995 a média anual da taxa SELIC havia sido de 41,22%, em 1997 foi a 39,9%, reduzindo-se no ano seguinte para 29,2%. Em 2002 voltou a subir e atingiu 24,9%. No governo Lula a SELIC foi reduzida paulatinamente, e seu valor máximo foi de 18% em 2005. Frente à redução das taxas de crescimento do PIB real, o governo Dilma tentou forçar redução mais vigorosa e levou a SELIC para 7,1% do PIB em 2012. Coincidência ou não, foi a partir de então que se acirraram as manifestações públicas contra a presidente, manifestações cuja expressão mais indecorosa foi a vaia a ela dirigida por ocasião da abertura da Copa do Mundo de Futebol 2014.
Resultado do clima político, e do insucesso em matéria de retomada de vigoroso crescimento econômico, em 2013 a SELIC voltou a assumir trajetória ascendente, com índices de 9,9% e 11,6% em 2013 e 2014. A inflação, por outro lado, manteve média anual de 6%, medida pelo INPC.[4] Em termos reais, isto é, descontada a inflação, a taxa de juros SELIC manteve-se alta, 5,4% ao final do primeiro governo de Dilma Roussef.
Na verdade, a queda da taxa de crescimento do PIB real para níveis inferiores a 4%, desde 2011, em paralelo à manutenção da taxa de juros reais em patamar superior (4,3% e 5,4% em 2013 e 2014, respectivamente), selaram o divórcio entre os dois índices e o crescimento autônomo da dívida mobiliária federal. Por isto a dívida bruta passou de 54,2% para 63,4% do PIB, entre 2011 e 2014. A dívida líquida variou pouco, de 36,5% para 36,7% do PIB no mesmo período, reassumindo contudo trajetória ascendente a partir de 2013, ano em que se situou em 33,8% do PIB. (idem, p.97)
Outra questão levantada com relação aos níveis da taxa SELIC é o fato de ela se situar entre as mais altas taxas do mundo. Esta questão precisa ser enfrentada à luz de considerações técnicas e políticas. Uma observação preliminar, contudo, é que nas comparações entre Brasil e outros países, os críticos não fazem distinção entre taxas nominais e reais de juros, o que distorce em geral as conclusões a que chegam. A comparação com países de inflação baixa, ou mesmo sob risco de deflação, caso da União Européia e dos Estados Unidos, requer que se escolha a taxa real de juros SELIC, isto é, entre 5% e 6% ao ano, como média usual. Mesmo assim a diferença é enorme, pois nas regiões citadas a taxa de juros tende para zero e até é negativa ocasionalmente.
Tecnicamente, o ponto central consiste na diferenciação entre as respectivas conjunturas econômicas. Enquanto o maior risco que hoje enfrentam as economias européias e norte-americanas é a deflação, no Brasil, inversamente, o inimigo a combater é a inflação. Segundo a ideologia dominante no mundo hegemonizado por nações imperiais, inflação combate-se com a elevação da taxa real de juros, a deflação requer, ao contrário, aumento da liquidez e taxas reais de juros mínimas ou negativas. Daí a prática de facilidades monetárias (emissão de moeda sem lastro real) nos Estados Unidos, Japão e, mais recentemente, em países da Europa. É possível, e nem é difícil, colocar-se contra os dogmas do neoliberalismo vigente, de um ponto-de-vista técnico ou intelectual, e esta tem sido a postura, justa, de frações crescentes da esquerda brasileira.
Para o governo brasileiro, é muito difícil, quase impossível, no entanto, assumir postura contrária aos dogmas neoliberais em matéria de combate à inflação. Quase impossível, do ponto-de-vista político. Não teria apoio no plano internacional, nem no campo político interno. É o que se pode induzir, empiricamente, de análises já feitas sobre os movimentos de rua contestando a política econômica. Mas também do fato de não haver, por parte dos economistas, uma proposta concreta, e efetiva, de um outro regime monetário capaz de substituir o tripé vigente na condução da política monetária e a essência do modelo econômico implantado a partir de 1994-1995, o Plano Real.
Por essência entende-se aqui o lastro-dólar do Real e a opção por um crescimento direcionado por aumento das exportações com livre movimentação de capitais. Trata-se de um modelo “suicida”, para alguns, pois entre seus efeitos perversos destaca-se a desindustrialização em curso. Efeito perverso que não tem sido contestado por grandes massas da população, e tem sido maquiado por políticas do governo em sustentação da indústria automobilística, segmento responsável por grande parcela do emprego industrial.
Por outro lado, tentativas dos governos petistas, no sentido de reequilibrar prioridades, como o apoio ao crescimento do mercado interno, a associação ao banco dos BRICS, o direcionamento de bancos públicos em sustentação aos esforços de redução da taxa de juros SELIC, o aumento do crédito público ao campo e à agricultura familiar, entre outras medidas, vêm enfrentando forte campanha contrária da mídia, isto é, de representantes das finanças internacionais e dos segmentos rentistas internos.
Frente aos indícios elencados acima, de dificuldades políticas crescentes, para mudança do modelo econômico e da política monetária em curso, uma complementação necessária diz respeito ao argumento de que a dívida é ilegítima e deve ser objeto de auditoria pelo Congresso.
A argüição sobre legitimidade carece de fundamentação plausível sempre que se apoiar na premissa, teórica, que a dívida pública é uma das três modalidade de financiamento do gasto público, ao lado dos tributos e da emissão monetária. Este argumento, que consta dos livros estrangeiros de macro-economia e finanças públicas, deve ser analisado à luz das mudanças introduzidas por ocasião do advento da hegemonia dos princípios neoliberais, tendo à frente os dois principais centros financeiros mundiais: a City (Londres) e Wall Street (Nova Iorque). Na verdade, desde os anos 1990, os Estados, e os periféricos principalmente, estão proibidos de realizar emissão monetária como direito de senhoriagem. Este direito, secular, foi substituído pela securitização, isto é, financiamento via emissão de títulos públicos nos mercados financeiros. Foi um grande negócio para os bancos, sem dúvida. E uma base concreta para o que viria a ser denominado, por professores marxistas franceses, como ditadura dos credores !
Por outro lado, no caso brasileiro a dívida pública não foi contraída para cobrir déficits do orçamento primário, nem para financiar investimentos de longo prazo, o que seria até razoável. Relatório de 2010 do TCU-Tribunal de Contas da União, sobre o desempenho da economia brasileira, esclarece:
...o aumento da dívida bruta resulta da acumulação de ativos e passivos constituídos para fins de capitalização da Petrobrás e de outras empresas estatais, de emissões de títulos em favor de entidades gestoras de políticas públicas e programas oficiais de fomento (caso do BNDES) e do custo de manutenção das reservas internacionais. (www.tcu.gov.br/contasdogoverno)
É provável que a explicação, correta, dada pelo TCU, tenha sido em resposta ao impacto (social e/ou político) do aumento do indicador dívida bruta/PIB, de 57,7% para 60,9% do PIB, entre 2008 e 2009, anos de eclosão da crise internacional. É provável ainda que por isto, o Governo elevou a taxa de juros para 10,7% a.a em 2010, com o apoio de um crescimento robusto do PIB nesse mesmo ano, 7,5%. Com a inflação em torno de 6%, nesse ano de 2010, a taxa SELIC praticada aproximou-se , em valores reais, de 5%, mantendo-se portanto em patamar compatível com o desempenho da economia.
Nos anos posteriores, a perda de dinamismo do crescimento econômico recomendaria redução da taxa real de juros. Foi o que fez o governo Dilma, corretamente. Na falta de suporte político, que imputamos às finanças internacionais e aos rentistas domésticos, teve que recuar e assumir uma rota de risco, isto é, sustentar riscos crescentes de aumento do custo de rolagem da dívida pública, frente ao crescimento fraco e à inflação em ascensão. Uma opção que, apesar dos riscos, garantiu a continuidade das políticas sociais e a vitória nas eleições de outubro de 2014, quando representantes das finanças internacionais e seus aliados internos mostraram claramente o rosto e suas reais intenções de redirecionar a economia brasileira. Derrotados, passaram a fomentar uma crise política de dimensões ainda incalculáveis, tirando das gavetas e dos arquivos a coleção de provas, desveladas por delatores, referentes á operação Lava Jato, com o apoio sempre presente das agências internacionais de avaliação de riscos.
Concluindo, é necessário atentar para a ausência, nesse texto, de referências a outros estudos, de excelente qualidade, que vêm sendo feitos na Academia e por entidades específicas, como a Fundação Perseu Abramo e o grupo da Plataforma Política Social. Mas também de estudos desenvolvidos individualmente por professores universitários empenhados no mesmo propósito: entender a evolução da economia brasileira e da dívida pública para, em um segundo momento, elencar propostas com viabilidade técnica e política. Exemplo é o artigo inserido na bibliografia, de autoria de Rosa Marques e Patrick Andrade, que se destaca dentre todos, por sua abrangência e visão da história recente. Há muitos outros com o mesmo selo de qualidade.
De MARQUES & ANDRADE retiro o parágrafo abaixo, com o qual me solidarizo integralmente.
No campo estritamente econômico, ficou evidente que, sem enfrentar as grandes questões estruturais brasileiras, que inclusive perpetua sua inserção dependente no mercado mundial, e sem enfrentar os interesses do grande capital, nacional ou internacional, a margem de manobra para efetuar uma política autônoma, voltada para o mercado interno é muito reduzida. De um lado, o esforço em garantir a ampliação da demanda via políticas de renda, demonstrou ter um limite. De outro, a estratégia da parceria público–privado de certa forma também, posto que a capacidade de investimento do governo é reduzida (principalmente se considerarmos a punção que significa o pagamento da dívida) e que ...
Cabe aqui, também, agradecimentos ao Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI, por ter oferecido ao público um documento tão valioso quanto o que está citado na bibliografia, com as principais estatísticas e evolução dos indicadores econômico-financeiros, nos últimos vinte anos. Mas também ao portal Carta Maior, principal lócus de divulgação do pensamento crítico brasileiro. E a todos os que debatem nossos problemas, via Internet, mantendo vivos o ardor e a esperança dos brasileiros que lutam por uma Pátria justa e soberana, exercendo dessa forma um direito de cidadania do qual o Brasil não pode prescindir.
BIBLIOGRAFIA
CENTRO DE ALTOS ESTUDOS BRASIL SÉCULO XXI. Vinte anos da economia brasileira. 1995-2014. Sob a coordenação de Gerson Gomes e de Carlos Antonio Silva da Cruz. Brasilia/DF, 2015.
MARQUES, Rosa e RODRIGUES ANDRADE Patrick. Brasil 2003 - 2015: balanço de uma experiência 'popular'. In Carta Maior. http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Política/Brasil-2003-2015-balanco-de-uma-experiencia-popular/4/34342&page=6, acesso feito em 26 de agosto de 2015
TESOURO NACIONAL. A Divida em grandes números. http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt/a-divida-em-grandes-numeros, acesso feito em 26 de agosto de 2015.
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO/TCU. Relatório sobre o desempenho da economia brasileira, 2010. In www.tcu.gov.br/contasdogoverno, acesso feito em 21 de agosto de 2015
Fonte: Carta Maior
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