Após passar cerca de três anos fechada, a sede da delegacia da mulher de Itaituba começou a ser reestruturada na semana passada. Essa foi uma das reivindicações pautadas pelas mulheres dos movimentos sociais no último Oito de Março e é vista como uma conquista da luta.
“Todos os anos no Dia Internacional de Luta das Mulheres a gente faz uma manifestação e desse movimento sai uma carta. Esse foi o primeiro ano que protocolamos no Ministério Público, e tinha essa questão da delegacia que não estava funcionando”, conta Maria Antonieta, do Grupo de Apoio à Mulher Itaitubense (Gami).
No momento, os atendimentos à mulher estão ocorrendo na delegacia comum. A delegada Leilane Reis destaca a importância de ter um espaço próprio: “A questão é que você tem toda uma cadeia de atendimento multidisciplinar, além da questão criminal, que inclui também os meios das mulheres se reerguerem, o abrigamento quando é necessário, a assistência social”, destaca.
A unidade, que passa por reforma, pintura e instalação elétrica, tem previsão de voltar a funcionar dentro de seis meses. “A delegacia estava abandonada, o espaço dela estava dentro da delegacia comum. Existem problemas inerentes às mulheres que nós queremos que sejam atendidos lá. Agora o mato foi cortado, as paredes pintadas, mas ainda temos muito a fazer”, conta Ana Cativo, professora aposentada e militante dos direitos das mulheres.
De acordo com a delegada, que está à frente da delegacia desde julho de 2014, as principais denúncias feitas pelas mulheres são ameaça e agressão psicológica, seguida de agressão física e por fim homicídios.
O número tem aumentado e a delegacia já chegou a fazer até 30 boletins de ocorrência em um dia. “As mulheres estão tendo mais coragem de denunciar e também mais acesso á informação, depois da lei Maria da Penha”, conta a delegada. “O maior problema é que as mulheres muitas vezes não dão prosseguimento, retornam à delegacia pedindo para retirar a denúncia, mas eu explico que isso não pode ser feito na esfera da delegacia, só na judicial”, conta.
Maria Antonieta, do Grupo de Apoio à Mulher Itaitubense
Histórico de violência
A violência contra a mulher em Itaituba guarda relações com o histórico de ocupação da região e seus ciclos econômicos, especialmente o garimpo de ouro, que teve seu auge na década de 80. “Temos uma região onde a violência migra sozinha, e a mulher é fragilizada nessas situações, porque ela vem trabalhar muitas vezes em condições sub-humanas”, conta Maria Cristina Bueno, presidenta da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Itaituba.
“Muitas mães já morreram dentro dos garimpos, por doenças topicais, como malária e hepatite, pois não tinha tempo de chegar à cidade. Outras eram mortas mesmo pelos amantes, ou morriam em acidentes nos barrancos, quando desciam para buscar ouro”, conta Ana Cativo, que também destaca a presença da prostituição nessas áreas.
“A vida era muito sofrida [nos anos 80]. Tinha muita prostituição, não só nas áreas de garimpo, mas também na própria cidade. Muitas vezes o homem ia pro garimpo, arrumava uma amante, e a mulher, que ficava aqui carregada de filhos e sem profissão, acabava também se prostituindo. A cidade inteira era tomada de cabarés”, conta Ana Cativo, que se mudou de Santarém para Itaituba no começo dos anos 80.
Ela recorda de suas vizinhas da época, mulheres vítimas desse processo: “Como eu era professora, elas me pediam para escrever cartas para as famílias delas, que tinham ficado no Maranhão e em outros cantos. Nessas cartas, elas não contavam a vida que levavam, diziam que estava tudo bem, que estavam trabalhando, ganhando dinheiro, mas não diziam que iam para dentro dos garimpos e passavam um ou dois meses lá, depois voltavam para os cabarés da cidade (...) Assim eu ganhei muitas pepitas, pois mesmo sem cobrar, as mulheres davam como forma de agradecimento. Era a época do ouro. Itaituba era uma cidade muito rica, só que não tinha hospitais, nem asfalto, era uma grande currutela (área de garimpo), um contraste louco”, relata.
Par a a delegada Leilane Reis, esse histórico deixa como herança uma mentalidade muito machista que persiste até hoje. “Existe um sentimento de posse sobre a mulher, uma relação de subordinação muito intensa”, conta.
Ana Cativo, professora aposentada e militante social
Novos projetos ameaçam a região
Hoje o garimpo já não é mais tão forte como antigamente, mas outros ciclos econômicos de perfil predatório se anunciam para a região. O principal é o Complexo Hidrelétrico do Tapajós, cuja primeira barragem, São Luís do Tapajós, tem previsão de ser leiloada em novembro desse ano. Além disso, estão sendo construídos portos para escoamento de grãos vindos do Mato Grosso, além de hidrovias, projetos de mineração e pavimentação de rodovias.
“A região do Tapajós é a nova fronteira do avanço do capital na Amazônia. Todos esses projetos permitem um enorme acúmulo de riqueza, através de um processo de rapinagem, que destrói uma das áreas mais preservadas da Amazônia, rodeada de parques nacionais, e viola os direitos da população trabalhadora que aqui vive”, explica Cleidiane Santos, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
O Movimento vem denunciando os impactos das barragens na vida das mulheres em todas as regiões do Brasil. De acordo com Cleidiane, a experiência das outras grandes barragens da Amazônia, onde o MAB também está lutando, serve como um alerta do que pode vir a acontecer no Tapajós. Em Rondônia, a construção das barragens de Santo Antônio e Jirau fez o índice de estupros aumentar em 200%. A construção de Belo Monte, no rio Xingu (PA) também vem atingindo especialmente as mulheres, que são as maiores vítimas da violência, do tráfico humano, da ausência de políticas públicas, entre outros aspectos.
De acordo com as entrevistadas, na região de Miritituba, onde estão sendo construídos os portos do agronegócio, já estão surgindo inúmeros relatos de prostituição infantil. “Ao longo dessa Br tem filhos do nada, meninas que foram violentadas, que tem 12 e 13 anos. Há uma certa conivência com essa situação”, opina Maria Cristina.
Maria Cristina Bueno, presidenta da OAB-Itaituba
O papel dos movimentos sociais
Enfrentar uma situação como essa passa pelo fortalecimento das mulheres nos movimentos sociais. “Temos o desafio de incentivar o protagonismo das mulheres para estarmos preparadas para lidar com esses problemas que estão surgindo”, conta Cleidiane. Segundo ela, o MAB está buscando construir um trabalho específico com as mulheres na região do Tapajós, para o qual conta com uma parceria com a entidade de cooperação Christian Aid e apoio da União Européia.
“Vamos levar informação sobre os impactos previstos para a região, fazer um alerta sobre o que vem ocorrendo em outras barragens, e fortalecer a participação das mulheres nessa luta, pois elas são fundamentais nas comunidades para construir essa resistência”, conta ela. “É um trabalho que queremos fazer conjuntamente com os outros setores da região que trabalham essa temática, envolvendo outros movimentos, os sindicatos, as educadoras nas escolas, as mulheres do campo e da cidade”, afirma.
A delegada Leilane destaca a importância dos movimentos: “O trabalho da polícia depende muito da troca de informações. Como os movimentos estão mais próximos dessa realidade, auxiliam no mapeamento da região, ajudam a identificar onde tem violência e propõem ações que previnam a criminalidade”.
Para Ana Cativo, “as mulheres estão precisando de mais braços firmes pra ajudar, mais pessoas comprometidas com essa caminhada. O movimento tem que continuar, não pode parar, pois através dele a gente vai dizendo pra sociedade: ‘eu estou viva, estou aqui e quero que seja diferente’”.
No Oito de Março de 2015, as mulheres de Itaituba fizeram uma marcha contra a violência. Movimento conquistou reabertura da delegacia da mulher.
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