terça-feira, 21 de julho de 2015

BRASIL: IMPEACHMENT SEM FUNDAMENTO É GOLPE, DIZ JUIZ


André Bezerra, presidente da Associação Juízes pela Democracia, nega semelhança entre a situação de Dilma e a do ex-presidente Collor

Com 43 anos, o juiz de direito Cível André Bezerra preside um movimento organizado de juízes progressistas, todos em atividade, chamado Associação Juízes pela Democracia. Segundo Bezerra, que atua na capital paulista, são “algumas centenas” de integrantes espalhados pelo Brasil. A associação foi fundada há 25 anos, com o objetivo de ajudar a implementar a Constituição e de democratizar o próprio Poder Judiciário.

Na entrevista a seguir, o magistrado lança dúvidas sobre a condução da operação Lava Jato, que deveria estar correndo em segredo de Justiça, e diz que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, está descumprindo a Constituição.

Sobre a possibilidade de impeachment da presidenta Dilma, ele é direto: “Embora esteja previsto na Constituição, o impeachment tem de ter fundamento. Se não há fundamento, o impeachment vira um golpe. É o chamado golpe paraguaio, o golpe da moda na América Latina no século XXI, o golpe com verniz constitucional.”

Juiz, como você tem visto o atual estado de coisas no Brasil? Refiro-me aqui à Operação Lava Jato, em primeiro lugar.

Não sou um especialista na área criminal e não conheço o processo. Um juiz costuma evitar falar sobre qualquer caso em trâmite se não vir o processo. Porque nem sempre aquilo que é divulgado é o que vem sendo de fato apurado, a imprensa destaca alguns aspectos e ignora outros que foram apurados, então fica muito difícil tecer comentários sem efetivamente ter acesso ao que está acontecendo. Mas o que mais me preocupa neste caso é o vazamento seletivo de informações. Isso ficou muito claro no período eleitoral, com a divulgação de supostas delações de algumas pessoas sobre outras, sendo que havia mais delações. Ao que parece, e digo isso porque não se sabe se o que é divulgado é o que está sendo efetivamente investigado, isso visava prejudicar um determinado grupo político. E o Poder Judiciário não pode permitir isso, que um caso que esteja sendo investigado seja usado para fins eleitoreiros. Ainda mais num processo criminal, em que você discute a liberdade da pessoa que está sendo acusada.

A quem caberia, ou cabe, a observância dessas regras, ou a correção de rumos do Judiciário?

Em primeiro lugar, a quem preside o processo. A correção de rumos cabe ao juiz do caso.

Ou seja, ao juiz Sérgio Moro.

Eu não sei se está havendo alguma determinação de apurar isso, mas o fato é que está havendo vazamento de informações do caso. Pelo menos é o que a imprensa diz.

E a quem caberia o papel correcional sobre o juiz?

São dois. O Poder Judiciário brasileiro é controlado por um órgão interno, as corregedorias, e o juiz está, como todos os demais – exceto o STF, que não está submetido a isso – subordinado a um órgão de controle externo, que é o Conselho Nacional de Justiça.

Então é possível deduzir que o Conselho Nacional de Justiça não está cumprindo este papel?

Eu não sei, é muito difícil dizer. O que eu sei sobre a Lava Jato é o que quase todos sabem, ou seja, o que sai nos jornais. É bom lembrar que são réus que têm grandes defensores, renomados, consagrados, que devem saber o que fazer. Eu não sei se algo neste sentido está sendo feito.

É que no caso da imprensa, pouco os defensores podem fazer. Por mais competentes e renomados que sejam.

Não, no caso da imprensa não. É um reflexo da imprensa brasileira a cobertura do caso. É uma imprensa oligopolizada, que defende os interesses de determinado grupo, e faz vazamentos seletivos. Não dá a explicação necessária do caso e parece que coloca a delação como uma prova definitiva. A deleção é um caminho para a investigação, mas não tem esse caráter probatório que a mídia fala. “Não sei quem delatou tal político, então o político é culpado”. Isso não existe. Você não sabe se o delator está falando a verdade.

A rigor, essa investigação deveria estar ocorrendo de maneira sigilosa?

Sim, foi decretado segredo de justiça no caso, então deveria estar ocorrendo sob o mais absoluto sigilo.

Paralelamente, temos assistido a atuação do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que me parece uma coisa inédita na história brasileira, ao menos no período pós-redemocratização. Projetos sendo aprovados à toque de caixa, projetos que são rejeitados num dia e que voltam à pauta no dia seguinte. Isso representa, na sua opinião, uma ameaça ao Estado de Direito?

Acho que representa uma ameaça muito séria. É sempre importante lembrar que quando um país promulga uma Constituição, como o Brasil fez em 1988, não muda da noite para o dia, pois a norma não tem o poder de mudar a realidade. Só que a Constituição indica um projeto de país. Quando ela fala que seu objetivo é construir uma nação justa, livre e solidária, ela está dizendo que o Estado tem de agir conforme este projeto. Qualquer ação em sentido contrário a isso é uma ação inconstitucional. É uma ação portanto antijurídica. Os projetos que têm sido aprovados, mesmo aqueles aprovados em primeiro turno, vão na direção contrária desse projeto, de uma sociedade livre, justa e solidária. De temas inusitados como o fim da rotulagem dos transgênicos – que quem estava afastado do dia-a-dia da pauta do Congresso, nem sabia – à redução da maioridade penal, e esta com uma manobra absolutamente inconstitucional, pois não aceitou o resultado da primeira votação. E com uma manobra que ignorou a própria Constituição.

Mas ele e seus defensores alegam que agiu dentro dos limites do regimento, das margens. Isso é um fato?

Olha, agir dentro das margens é a fonte de toda a violação jurídica neste país. “Direito social é só um preceito programático, enquanto o direito à propriedade é uma norma jurídica” e coisas do tipo. A gente tem de tomar muito cuidado com esse tipo de argumento. O Gabriel Garcia Marquez, em “Cem Anos de Solidão”, fala das multinacionais que atuam em Macondo e que provocam mil malefícios à população, só que na hora dos processos, elas sempre escapam por essas margens. Ele tem até uma expressão: “delírio hermenêutico e ilusionismo do direito”. Então se faz um delírio de interpretação para entrar nessas margens. Interessante: o relator do mandado de segurança impetrado pelos deputados não afastou a hipótese de ilegalidade (na condução da votação da redução da maioridade penal por Eduardo Cunha). Ele ainda não indeferiu a liminar, então a possibilidade existe. Não é uma batalha perdida, ainda. O ministro Celso de Mello (do STF) apenas disse que não era preciso dar a liminar naquele momento, que ela pode ser dada depois (no dia seguinte à aprovação da redução da maioridade penal em primeiro turno, um grupo de 102 deputados ingressou com mandado de segurança no STF).

Ou seja, a matéria ainda está em análise no Supremo. A impressão que ficou, a partir de uma leitura desatenta dos meios de comunicação, é que a liminar estava definitivamente descartada.

Mas é importante que as entidades com interesse na questão dos direitos humanos apresentem seu apoio ao mandado de segurança dos deputados. Porque o STF é um tribunal, mas seus ministros também têm sensibilidade política. Então é importante que as entidades façam pressão. Porque se o STF breca essa manobra regimental (de Cunha), é provável que outras manobras semelhantes não ocorram mais.

A mídia fala cada vez mais em impeachment da presidenta Dilma. Em sua opinião, essa tese tem respaldo, é baseada em uma interpretação sensata da lei?

Olha, para ter impeachment, é preciso ter um fato determinado. Por ora, eu não vi nenhum fato determinado. Isso do ponto de vista jurídico. Do ponto de vista político, é a conveniência e a oportunidade contra uma pessoa que recebeu milhões de votos. Politicamente, me parece um desrespeito a esses milhões de brasileiros. E, repito, do ponto de vista jurídico, não há fato determinado.

Explique melhor o significado da expressão fato determinado.

Por exemplo: a presidente da República ganhou dinheiro da Petrobrás.

Houve comparação, recentemente, entre a situação do ex-presidente Fernando Collor e a da atual presidenta. No caso do Collor, houve fato determinado? Você vê paralelo?

Houve fato determinado sim. Ele foi processado criminalmente, também. Ele foi processado criminalmente, pelo procurador-geral da República. Olha só a diferença. O atual procurador-geral da República sequer está investigando a presidente Dilma. No caso do Collor, não. A Procuradoria-Geral entrou com uma denúncia. Naquele caso, anos depois, o Collor foi absolvido, porque o processo criminal tem de basear apenas no jurídico. O político não, tem todo um julgamento de conveniência por parte dos parlamentares. Mas note que o Collor foi denunciado. E para alguém ser denunciado, do traficante da Cracolândia ao presidente da República, é preciso haver provas de materialidade e indícios de que aquela pessoa cometeu o crime. Indício já é começo de prova. E contra a atual presidente sequer há esse começo de prova. A diferença é muito grande.

Então, acerta quem diz que a insistência na tese de impeachment é um movimento golpista?

Acho que sim. Embora esteja previsto na Constituição, o impeachment tem de ter fundamento. Se não há fundamento, o impeachment vira um golpe. É o chamado golpe paraguaio (referência à derrubada do ex-presidente Fernando Lugo, em 2012), o golpe da moda na América Latina no século XXI, o golpe com verniz constitucional. Cita-se um princípio constitucional que não se aplica ao caso, mas pouco importa. E também é importante destacar que impeachment não é instrumento para derrubar presidente impopular, como alguns sustentam por aí.


Fonte: Carta Maior

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