quinta-feira, 13 de agosto de 2015

BRASIL: IMPOSTO DE RENDA: RETRATO DA DESIGUALDADE


A desigualdade que conhecemos nas ruas, nas empresas, nas periferias, nos campos fica escancarada e confirmada quando verificamos os números da Receita.

Durante muito tempo, as informações relativas ao sistema tributário brasileiro se apresentavam como uma verdadeira caixa-preta para o conjunto de nossa sociedade. Escudados na justificativa do “sigilo do contribuinte”, durante décadas os responsáveis pelo órgão de arrecadação do governo federal se recusavam a revelar informações que propiciassem uma avaliação mais profunda a respeito de nosso modelo. As instituições de pesquisa demonstravam que não seria desrespeitada a privacidade das declarações anuais feitas por empresas ou indivíduos, uma vez que os dados são avaliados de forma agregada. Mas nem assim a informação era liberada.

Só mais recentemente a Secretaria da Receita Federal aceitou iniciar a divulgação de alguns dados relativos à caracterização do universo de contribuintes de alguns impostos. Talvez pressionada pela ampla aceitação de estudos como o “Capital no Século XXI”, de Thomas Piketty, a instituição reconheceu o equívoco das negações anteriores e passou a adotar uma postura um pouco mais flexível. O economista francês realizou pesquisa sobre a base de dados tributários de vários países, para concluir a respeito da permanência do processo de concentração de renda em um conjunto amplo dos países. Mas lamentou publicamente não ter podido incluir o Brasil em seu universo de pesquisa, em razão da negativa da Receita Federal em oferecer a base de dados. Coincidência ou não, a partir de então algumas informações, ainda que bem restritas, encontram-se disponíveis na própria página do Ministério da Fazenda na internet.

A Constituição de 1988 definiu uma estrutura tributária com uma repartição de instrumentos de arrecadação entre a União, os Estados e os Municípios. De acordo com tal arquitetura do pacto federativo, o art. 153 da Carta estabeleceu a competência do governo central em instituir impostos sobre: i) produtos importados; ii) produtos para exportação; iii) renda; iv) produtos industrializados; v) operações financeiras; vi) propriedade rural; vii) grandes fortunas. De acordo com o texto, apenas o último deveria ser mais bem detalhado por meio de lei complementar. E lá se vão quase 27 anos de espera pela legislação que incidisse sobre o patrimônio dos milionários.

O Imposto de Renda se divide em dois subconjuntos. Uma parte se destina às pessoas físicas (IRPF) e a outra se dirige às pessoas jurídicas (IRPJ). O volume de arrecadação da parcela relativa às empresas é bem superior àquela recolhida pelos indivíduos. As informações disponíveis para 2014, por exemplo, revelam que o total dos recolhimentos de IR atingiu R$ 305 bilhões. Esse valor representa 39% do total da arrecadação federal no ano passado, excetuando-se as receitas previdenciárias. O montante pago pelas pessoas jurídicas foi de R$ 189 bi, representando 62% do total. Os R$ 115 bi restantes referem-se ao volume pago pelas pessoas físicas.

O aspecto interessante das informações agora disponibilizadas refere-se à possibilidade de se constatar o fenômeno da brutal concentração de renda em nossa sociedade. A divulgação dos dados da Receita Federal abre o caminho para um amplo espectro de pesquisas e artigos. Nesse pequeno espaço meu foco será sobre a parcela das camadas superiores da pirâmide da distribuição, uma vez que em pouquíssimas ocasiões há pesquisas identificando o topo-do-topo. Com isso, é possível verificar o que ocorre com a renda declarada dos indivíduos e o imposto de renda pago. Quando se fala em concentração no Brasil, por exemplo, a maioria das pesquisas divide o universo das pessoas/famílias nos chamados decis de renda. Assim, os “mais ricos” são identificados como um amplo conjunto composto pelos 10% que auferem renda mais elevada. Ocorre que nesse estrato estão misturados e confundidos grupos de renda muito díspares. Com os dados apresentados, pode-se segmentar os estratos de renda de forma mais refinada, sem se deixar cair na narrativa típica dos contos de fadas das chamadas classes A, B, C ou de que as famílias com renda de 2 salários mínimos passam a integrar a classe média.

As declarações de renda de 2014 referem-se aos fatos ocorridos ao longo de 2013. De acordo com o relatório da Receita, o topo da pirâmide é ocupado pelos contribuintes que declararam uma renda anual superior a 160 salários mínimos. Considerados os valores atuais, esse patamar corresponderia a R$ 126.080 de renda mensal. Parece óbvio que se trata de uma parcela bastante reduzida da população brasileira, mas que reflete o nível extremo de nossa desigualdade. Trata-se de apenas 71.040 contribuintes em um universo total superior a 26 milhões de indivíduos que apresentaram sua declaração. Ou seja, representam apenas 0,3% do total. Não haveria razão para tanto espanto caso vivêssemos em um uma sociedade onde a tributação fosse equânime e progressiva.


Ocorre que a desigualdade que conhecemos nas ruas, nas empresas, nas periferias, nos campos fica escancarada e confirmada quando verificamos os números da Receita. As distorções incorporadas pelo sistema tributário fazem com que essa ínfima parcela seja a que menos imposto de renda paga, em termos proporcionais. A renda total desse grupo foi superior a R$ 298 bilhões, o que representa um rendimento médio anual próximo a R$ 4,2 milhões por cada declarante. Mas as facilidades e benesses concedidas às elites fazem com que 66% da renda total recebida por esse grupo sejam considerados isentos de tributação! São os famosos casos de lucros e dividendos de empresas que não são afetados pelo imposto de renda. Em geral, são pessoas que não recebem renda do trabalho, mas renda do capital.

Outra informação que chama a atenção refere-se à disparidade na distribuição patrimonial. Ainda que seja apenas declaratória e também sujeita a muito sub-dimensionamento ou sonegação, a participação da riqueza desse pequeno segmento é muito significativa. De um total de R$ 5,9 trilhões declarados pelo conjunto dos contribuintes, apenas esses 0,3% dizem ser possuidores de um patrimônio que soma R$ 1,3 trilhão - algo em torno de 22% do total da riqueza. É importante considerar que o próprio governo avalia em US$ 200 bilhões o total de recursos enviados ilegalmente para o exterior, o que resultaria em mais de R$ 700 bilhões - metade do total declarado oficialmente. Além disso, os patrimônios imobiliários normalmente são apresentados com valores inferiores aos de mercado e corre à margem das declarações um sem-número de bens não oficializados. Ou seja, o nível da desigualdade é ainda mais elevado do que aparenta.

De acordo com as informações apresentadas, a elite-da-elite contribui com uma alíquota média efetiva de imposto de renda correspondente a 2,6% sobre seus rendimentos. Esse percentual é até mesmo um pouco inferior ao estrato de 5 a 10 salários mínimos (2,9%) e muito abaixo das camadas médias que chegam a recolher entre 8% e 10%. Ora, esse quadro é exatamente o oposto do princípio da progressividade da tributação, onde os que mais recebem deveriam contribuir mais para o bem estar coletivo.

O retrato aqui descrito está apenas circunscrito à desigualdade expressa pelo modelo do imposto de renda atualmente existente. Cabem mudanças com o objetivo de eliminar as injustiças, de rever as isenções despropositadas e de estabelecer novas alíquotas para as faixas de renda. Mas também é importante ter em mente a necessidade de novos instrumentos de tributação para promover a justiça social, a exemplo do imposto sobre grandes fortunas, imposto sobre heranças e sobre as transações financeiras.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.


Fonte: Carta Maior

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