terça-feira, 15 de dezembro de 2015

BRASIL: VOCÊ SOUBE? - A POLÊMICA RECEITA DA BANCADA DO MEDICAMENTO NO CONGRESSO


Em defesa do setor que fatura cerca de US$ 1 trilhão por ano, parlamentares desconsideram matérias que poderiam baratear o custo dos medicamentos.

A decisão da atriz norte-americana Angelina Jolie de se submeter a uma mastectomia, em 2013, estimulou debates mundo afora sobre um tema tão novo quanto controverso: o patenteamento de seres vivos. Considerada uma das mulheres mais lindas do mundo, Jolie optou pela cirurgia após descobrir que possuía o gene BRCA1, que a colocava no grupo de alto risco para ocorrência de câncer de mama. E foi justamente o gene BRCA1, ao lado do seu correlato BRCA2, que a empresa MyriadGenetics Inc. tentou patentear para fazer uso comercial de sua possível utilização futura no tratamento da doença.

Naquele mesmo ano, porém, a Suprema Corte dos Estados Unidos negou o patenteamento dos genes por unanimidade. O entendimento foi o de o isolamento de ambos, embora pudesse ser útil ao combate ao câncer de mama, não constituía uma invenção. Com isso, ficou estabelecido que, naquele país, só é possível patentear organismos vivos que foram modificados geneticamente.

O Brasil, entretanto, ainda não decidiu como irá tratar o tema. Sociedade civil, comunidade acadêmica e a indústria nacional são contrárias ao patenteamento de organismos vivos por questões sociais e éticas. Mas a medida tem o apoio das grandes entidades que representam os laboratórios multinacionais no país, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). E, por consequência, dos parlamentares que lhes dão voz.

Na Câmara, tramita o Projeto de Lei (PL) 4961/05, do deputado Mendes Thame (PSDB-SP), que prevê a alteração da Lei de Propriedade Industrial (9.279/96) para introduzir na legislação a concessão de patentes de seres vivos. A justificativa, na contramão do processo iniciado nos Estados Unidos, é que, caso o Brasil não permita o patenteamento dos microrganismos vivos, ficará em desvantagem em relação aos demais países do mundo.

“O patenteamento de seres vivos torna o campo patentário atual, já bastante amplo no Brasil, ainda mais impeditivo e restritivo [para a defesa da saúde], e pode prejudicar, por exemplo, a fabricação de vacinas”, explica Jorge Bermudez, o vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, um dos principais centros públicos de pesquisa e produção de medicamentos do país.

Mesmo assim, a matéria ganha cada vez mais adeptos no legislativo. No dia 1/10, a Comissão de Desenvolvimento Econômico (CDE) aprovou sem dificuldades o parecer favorável ao PL do deputado Laercio Oliveira (SD-SE), para quem “o patenteamento de materiais de origem biológica é fundamental para alinhar a norma de propriedade industrial com marcos legais nacionais e internacionais sobre acesso a recursos da biodiversidade”.

Situação bem diferente ocorreu em 2013, quando o então deputado Newton Lima (PT-SP) tentou aprovar na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) um parecer no sentido oposto. Antes que o documento pudesse ser votado, o deputado Bruno Araújo (PSDB-SP) pediu a suspensão da sessão para a realização de uma audiência pública sobre o tema. O debate nunca aconteceu, mas o projeto foi enviado para a comissão seguinte sem que o parecer de Lima fosse apreciado.

O episódio ilustra bem como a chamada “Bancada do Medicamento” atua no parlamento para defender os interesses da indústria farmacêutica internacional, um setor que lucra algo em torno de US$ 1 trilhão por ano e não mede esforços para faturar ainda mais. Bruno Araújo foi eleito deputado, em 2010, com doações da Interfarma, a principal entidade que representa os laboratórios internacionais no Brasil. Em 2011, 2012 e 2013, viajou para os Estados Unidos e a Europa em viagens patrocinadas pela entidade.



Reforma da Lei das Patentes

Embora o patenteamento de seres vivos ainda esteja em discussão no Congresso, a legislação brasileira vigente que trata das patentes em geral já é bastante abrangente no que refere à proteção de patentes. Muito mais do que exigem os tratados internacionais sobre o tema. Por isso, tramitam na Câmara 16 PLs apresentados por deputados de diferentes partidos que buscam reformar a Lei 9.279/96, que disciplina as regras das concessões desses monopólios no país.

O mais antigo é o PL 139/99, do deputado Alberto Goldman (PSDB-SP), que reforça na legislação brasileira o mecanismo da suspensão dos monopólios por não uso, ou seja, permite o licenciamento da patente quando o detentor não explorar o objeto da patente no território nacional. Esse tipo de mecanismo “use ou perca” seus direitos de patentes foi recomendado em matéria de capa da revista “The Economist” de agosto de 2015 como forma de tornar o sistema de patentes mais equilibrado.

O mais importante é o PL 5402/13, dos ex-deputados Newton Lima (PT-SP) e Dr. Rosinha (PT-R), que promove uma profunda revisão da lei atual. Alinhado com as demandas da sociedade civil e acadêmica, prevê a adoção de diversos mecanismos que protegem os direitos dos pacientes. “Esse projeto muda completamente a lei de patentes e a deixa muito mais próxima às demandas da saúde pública”, esclarece Bermudez.

O PL fixa o período de vigência das patentes em 20 anos, o mínimo permitido pelos tratados internacionais que regulam o assunto e dos quais o Brasil é signatário. Pela legislação atual, se o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi) atrasar a análise dos pedidos, esse prazo pode ser dilatado ainda mais. “Isso é uma aberração, porque, ao estender os monopólios, a lei impede a fabricação de genéricos e evita que o preço dos medicamentos caia. Exemplos são as novas drogas para tratamento de câncer e hepatite B, todas elas caríssimas”, ressalta o dirigente da Fiocruz.

O projeto também inova ao introduzir o uso público não comercial de patentes, desde que para fins de interesse público, inclusive os de defesa nacional e interesse social. Em outras palavras, permite a produção ou importação de versões genéricas de drogas patenteadas para uso em programas públicos de saúde. Desse modo, as patentes continuam em vigor no setor privado, mas não impedem que o governo utilize genéricos no SUS para tratar, por exemplo, uma epidemia. O projeto ainda proíbe a concessão de patentes para medicamentos de segundo uso, ou seja, aqueles que já foram patenteados para o tratamento de determinada doença e passam a ser usados no de outra enfermidade.



Críticas consolidadas

As críticas ao atual modelo de proteção de patentes não são exclusividade brasileira. O tratado internacional pactuado na década de 1990, o chamado Acordo Trips da Organização Mundial do Comércio (OMC), que embasou as leis nacionais acerca do tema, tem sido condenado por especialistas de várias partes do mundo. Prêmio Nobel de Economia em 2010, Joseph Stiglitz é um dos que tem questionado o sistema. “Há um reconhecimento crescente de que o sistema de patentes, como atualmente concebido, não só impõe custos sociais incalculáveis, mas também tem falhado em maximizar a inovação”, alertou, em artigo divulgado pelo site Outras Palavras, em 2013.

Diante do avanço da pressão por mudanças, o presidente de Inovação em Saúde da Fiocruz avalia que as possíveis alterações nos tratados internacionais devam impactar na legislação brasileira. Mesmo com base nas regras atuais, porém, ele avalia ser possível operar mudanças positivas. Isso porque, na experiência brasileira, os problemas apontados pelos críticos ao sistema internacional são bastante evidentes, pois a legislação aprovada em 1996 foi ainda mais vantajosa para detentores de patentedo que previa o Acordo Trips.

De acordo com o coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), Pedro Villardi, o Brasil também não faz uso adequado dos poucos mecanismos de proteção previstos na sua legislação. “O Artigo 68, por exemplo, é letra morta”, alerta ele, em referência ao mecanismo que prevê que os responsáveis pela patente devam iniciar a produção local do medicamento em até três anos. “Essa norma nunca é cumprida. Já o artigo 40, que interessa à indústria farmacêutica porque impõe a dilatação do prazo das patentes quando há atraso, é cumprido de forma automática”, critica Villardi, que também atua na Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).

Outra vantagem da lei pouco explorada pelo Brasil é a licença compulsória de patente em função de interesse público, que, quando acionada, consegue resultados surpreendentes. Foi o que ocorreu em 2007, quando o país licenciou a patente do medicamento Efavirenz, usado então no tratamento de mais de 35 mil pessoa vivendo com HIV/Aids. Com o uso dessa medida, o preço do medicamento caiu de U$ 580 por paciente/ano para U$ 158 paciente/ano. Isso possibilitou ao Sistema Único de Saúde (SUS) uma economia de U$ 103 milhões num período de cinco anos.



Na mira dos poderosos

Diz a crônica política brasileira que a primeira versão da Lei de Patentes chegou ao Congresso nacional redigida em inglês, enviada diretamente por Washington, tamanho o interesse dos Estados Unidos no assunto. “A força dos movimentos de defesa da saúde conseguiu melhorá-la um pouco, mas ainda assim foram aprovados muitos mecanismos que não interessavam e não interessam ao país”, conta Villardi.

Vice-presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), Reinaldo Guimarães lembra que a lei causou um impacto negativo tão grande na indústria nacional que quase a destruiu por completo. Isso porque o Brasil desconsiderou o prazo de 10 anos previsto pelo Acordo Trips para que os países em desenvolvimento fortalecessem sua indústria local antes de adotarem a legislação patentária.

Ao contrário da Índia, que demorou dez anos para aprovar a sua Lei de Patentes e, com isso, se transformou em uma potência farmacêutica, o Brasil sancionou a sua no afogadilho. “Os parlamentares estavam encantados com a ideia de globalização, de abertura econômica, que naquela época era muito forte, e acabaram aprovando uma lei que fez com que, para a indústria multinacional, se tornasse mais conveniente fechar fábricas no Brasil e importar medicamento acabado, enquanto as indústrias nacionais sofreram um baque muito grande”, explica.

Conforme o estudo “A revisão da Lei de Patentes – Inovação em Prol da competitividade nacional”, produzido em 2013 pelo Centro de Estudos e Debates Estratégicos da Câmara, a sanção da legislação brasileira sobre patentes levou à falência 1.096 unidades produtivas de química fina e fármacos do Brasil, além de provocar o cancelamento de 355 novos projetos. “A indústria nacional só veio a se reestabelecer na década seguinte, com a adoção da política de incentivo aos genéricos”, lembra o vice-presidente da Abifina.

A preocupação é que, agora, os interesses corporativos dos grandes laboratórios sejam novamente colocados como prioridade pelo parlamento. Em 2014, a CCJ já havia negado a análise de mérito do pacote de PLs que miram a revisão da Lei 9.279/96. A matéria, entretanto, foi desarquivada em 2015, na véspera do recesso parlamentar, no mesmo dia em que Eduardo Cunha (PMDB-RJ) anunciou publicamente seu rompimento com o governo.

O deputado Felix Mendonça Júnior (PDT-BA), que até então era o relator da matéria, foi destituído do cargo pelo presidente da CCJ, Artur Lira (PP-AL). O novo relator nomeado para a matéria foi o deputado André Moura (PSC-SE). Muito próximos politicamente, todos eles colegas de “bancada evangélica”, Cunha, Lira e Moura são considerados, hoje, três dos deputados mais poderosos na casa. Por isso, a simples atenção deles ao tema indica o quanto ele é importante no parlamento.

No seu parecer, o relator surpreendeu ao defender a constitucionalidade dos PLs 139/99 e 5402/13, em detrimento dos outros 14. Entretanto, a apreciação da pauta pela CCJ tem sido sucessivamente adiada, o que indica que ainda não há consenso sobre o assunto e, o que é mais grave, que está aberta a temporada de negociações sobre a pauta. Para o bem e para o mal.

Desafeto do governo Dilma Rousseff, Eduardo Cunha tem provado que controla pelo menos a metade dos votos do parlamento. Inclusive os de vários colegas de partido comprometidos com a indústria farmacêutica. Aliás, o PMDB de Cunha é o mesmo partido pelo qual o atual presidente da Interfarma, Antônio Brito, governou o Rio Grande do Sul de 1995 a 1999.

Dentre os peemedebistas próximos aos laboratórios está o deputado Manoel Junior (PB), recentemente cotado para assumir o Ministério da Saúde (MS), que se elegeu em 2014 com contribuição dos laboratórios Eurofarma e Biolab. E também os deputados Osmar Terra (RS), que recebeu R$ 150 mil em doações da Interfarma em 2010, e Darcísio Perondi (RS), que obteve R$ 150 mil da entidade no mesmo pleito.

No grupo também consta o ex-ministro da Saúde do governo Lula Saraiva Felipe (MG), que, em uma gravação de fevereiro de 2013, divulgada pela revista “Veja”, admitia receber recursos da Interfarma e do laboratório Hypermarcas. Em 2010, Saraiva Felipe recebeu R$ 150 mil em doações da Interfarma e, no ano seguinte, viajou aos Estados Unidos com “patrocínio” da entidade.



Pílulas de farinha no Senado

O Senado também tem ajudado a compor a “Bancada do Medicamento”. Sua mais nova representante no grupo é a senadora Ana Amélia (PP-RS), autora do PL 200/15, que muda as regras para a realização de pesquisas clínicas no país, aquelas que envolvem seres humanos. Por desconsiderar questões éticas importantes que são protegidas pela atual legislação brasileira, o projeto é rechaçado pelo setor público, comunidade científica e sociedade civil.

Em contraposição, é a mais nova menina dos olhos da Interfarma, que tem protagonizado discussões públicas com os críticos da matéria.Segundo o presidente da Interfarma admite no artigo Aposta Arriscada, publicado no site da entidade em 24/09/2015, o volume de recursos investido pela indústria farmacêutica em pesquisas clínicas realizadas no Brasil “é rigorosamente ridículo”. De acordo com ele, o setor investe algo entre US$ 120 bilhões e USS 160 bilhões na área a cada ano, que corresponde a um percentual de 12% a 16% do seu faturamento total. Entretanto, o Brasil recebe apenas US$ 300 milhões desse montante.

O problema é que nem comunidade científica e nem pacientes estão de acordo que se abra mão de quaisquer parâmetros para alocar mais recursos para ensaios clínicos no país. “Este projeto [PL 200/15] significa uma redução drástica dos direitos das pessoas que participam das pesquisas clínicas”, afirma o médico e coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), Jorge Venâncio, o órgão ligado ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) que faz o controle social da atividade no país.

Segundo ele, a proposição legislativa permite até mesmo que os laboratórios possam suspender a medicação testada com sucesso em um paciente, mesmo que isso o leve a morte. Ou ainda expor doentes que teriam uma alternativa de tratamento reconhecida aos placebos, as famosas “pílulas de farinha”. Venâncio critica também o fato de o projeto retirar a centralidade do controle das pesquisas do crivo da sociedade, em especial dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). “Este processo significa um retrocesso muito grande na nossa legislação”, resume.

O representa dos usuários do SUS lembra que a Índia aprovou uma legislação similar à proposta por Ana Amélia em 2005, e foi um desastre. “Só nos três primeiros anos foram registradas 2,6 mil mortes em pesquisas clínicas. A Suprema Corte do país acabou suspendo a prática lá até que uma nova legislação seja elaborada”, relata.

O presidente da Conep refuta principalmente o argumento básico usado pela senadora para justificar a matéria. “Ela acusa o conselho de demorar até umano para avaliar as pesquisas clínicas propostas. Mas nos meses de maio, junho e julho passados nós conseguimos reduzir este prazo para 48 dias. Portanto, a premissa dela não tem nenhuma base”, justifica.

Vice-presidente da Abifina, Reinaldo Guimarães reconhece que o órgão precisa passar por uma reestruturação que o permita dar respostas mais rápidas às solicitações, mas não acredita que o caminho seja apartá-lo da regulação. “A questão ética é muito relevante”, aponta.

Candidata de primeira viagem ao Senado, Ana Amélia não recebeu doações de campanha da indústria farmacêutica quando concorreu ao parlamento, em 2010. Mas, depois de eleita, logo caiu nas graças do setor. Em 2014, quando disputou o governo do Rio Grande do Sul, já recebeu R$ 50 mil da distribuidora de medicamentos Dimed. Sua relação com a Interfarma se tornou mais profunda este ano, quando ela apresentou o PL 200/15, que altera as regras para realização de pesquisas clínicas no país.

O relator do projeto é outro alinhado: o senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), advogado, candidato derrotado à vice-presidência da República pelo PSDB no pleito de 2014, recebeu doação da Interfarma para a campanha eleitoral de 2010, quando se elegeu senador. Participou também das viagens promovidas pela entidade ao exterior. Hoje, é relator do PLS 200/2015, que libera geral as pesquisas clínicas com seres vivos no país, na Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação (CCTI).


Outro lado

Procurada pela Repórter Brasil, a Interfarma afirmou, por meio da sua Assessoria de Comunicação, que não iria se pronunciar sobre a reportagem, e indicou a Associação Brasileira de Propriedade Intelectual como fonte adequada para falar sobre o tema das patentes. A ABPI, entretanto, também não quis conceder entrevista sobre o tema.

A Repórter Brasil também solicitou entrevistas aos deputados Eduardo Cunha, Mendes Thames, Laercio Oliveira, Bruno Araújo, Manoel Junior, Artur Lira, André Moura, Osmar Terra, Darcísio Perondi e Saraiva Felipe, e à senadora Ana Amélia, mas eles não atenderam à reportagem.


Fonte: Carta Maior


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