Texto de Fernando Sato e vídeo de Adolfo Garroux, especial para os Jornalistas Livres
Estamos comemorando a Semana da Consciência Negra. Não. Estamos “manifestando” a Semana da Consciência Negra. O que temos para comemorar na semana em que a Marcha das Mulheres Negras é covardemente atacada por militantes do MBL, incluindo policiais civis com arma em punho? No dia em que uma imagem de uma mulher que expõe sua identidade negra é excluída do Facebook sem nenhuma explicação? Quando personalidades negras do mundo das artes são xingadas e vilipendiadas na internet? Quando refugiados negros são assassinados em formato de execução, apenas pelo fato de serem estrangeiros? Quando jogadores são chamados de macacos nos “democráticos” estádios de futebol? No mês que marcou dois anos da morte do estudante Douglas Rodrigues por policiais militares?
Por que o senhor atirou em mim?
Douglas Rodrigues tinha 17 anos, cursava o terceiro ano do ensino médio em seu bairro, Jardim Brasil, e trabalhava numa lanchonete em Pinheiros. Menino tranquilo, adorava empinar pipa, coisa de todo mundo na Zona Norte. A mãe dele, Dona Rossana, andava feliz, já que os dois filhos dela começavam a tecer uma amizade realmente permanente. Aquelas amizades que vão pro resto da vida. O Douglas levava seu irmão menor pra tudo que é lado.
Foi assim naquele dia. Os dois irmãos estavam voltando para casa juntos. De repente, a viatura parou. Não deu tempo pra mais nada. O policial já saiu da viatura atirando. A única coisa que Douglas pode fazer, foi perguntar para o policial: “Por que o senhor atirou em mim?”
Até hoje essa pergunta ainda não foi oficialmente respondida. De acordo com o advogado da família de Douglas, na Vara Cível já existe uma sentença favorável. O juiz de primeira instância deu ganho de causa e considerou o Governo do Estado de São Paulo culpado por homicídio culposo. Como pena, terá de pagar indenização à familia de Douglas.
Mas, o Governo do Estado recorreu. O caso será será julgado em segunda instância. Quando? Ninguém sabe.
Enquanto isso, na Vara Criminal, não existe nem denúncia. A alegação da promotoria é que existem dúvidas no processo. E exigiu uma nova reconstituição do crime. No inquérito policial, o policial alega disparo involuntário. O promotor quer saber se o policial saiu da viatura e só depois disso atirou, ou se o policial já saiu atirando com a arma em punho, o que foi assegurado por testemunhas. Se assim for comprovado, o policial será indiciado por homicídio doloso, quando se tem a intenção de matar ou se assume o risco de matar; e não por homicídio culposo, quando não se tem a intenção de matar.
Quem policia a polícia?
Porque o senhor atirou em mim? Porque o genocídio da população negra e pobre faz parte do dia-a-dia da periferia. Porque o racismo é de tal forma institucionalizado que, no Rio de Janeiro, por exemplo, os policiais caracterizam o suspeito negro, como “elemento cor padrão.”
É incompreensível entender como um policial negro também age dessa forma pré-estabelecida? A socióloga e primeira mulher a dirigir o sistema penitenciário do Rio de Janeiro, Julita Lemgruber, responde: “Policial não tem cor, policial tem farda.”
Outro ponto que deve ser levado em conta é o fato de as classes sociais se distanciarem. Os ricos e os pobres. Em São Paulo, temos o agravante de que as populações mais desprovidas moram na periferia e são invisíveis aos olhos dos cidadãos da classe média. Quando o policial atua em um bairro rico, ele claramente se porta de uma forma mais polida e respeitosa. Mas quando esse policial se dirige às bordas da cidade, seu comportamento se modifica radicalmente; se torna violento e agressivo nas abordagens e trato com a comunidade.
Ação e reação. A população atingida por esse tratamento também cria capas de resistência contra a abordagem policial. O momento seguinte é a falta total de relação entre polícia e comunidade. A agressividade se transfere nos atos de resposta da população para a ação policial e o policial, então, trabalha como se estivesse numa guerra e numa guerra, o objetivo é abater o inimigo.
Assim, funciona o cerne do pensamento policial. Controle social e repressão total. Continuando a citar Julita Lemgruber, ela diz que a polícia rotula de “autos de resistência” os confrontos com a população, o que na verdade são atos de “execução sumária”.
Outro dia, um amigo foi parado pela polícia. Porque foi parado? De acordo com o policial, por causa das várias tatuagens. “Fez essa tatuagem na cadeia?” Meu amigo, calmamente, tentou argumentar que tatuagem não tem nenhuma relação com criminalidade. Sabem o que o policial respondeu? “Até prova em contrário, todo mundo é suspeito.”
Oi?
Esses exemplos poderiam explicar o que aconteceu com o Douglas? Não. Nada explica o que aconteceu com o Douglas. Nada.
Por que o senhor atirou em mim?
A Campanha
Após o assassinato, parentes e amigos de Douglas começaram uma campanha que se viralizou na rede. A campanha “Por que o senhor atirou em mim?” Se transformou em ponta-de-lança em um movimento para dar visibilidade a esse problema da violência, principalmente na periferia. Na mesma época, duas chacinas aconteceram em São Paulo: em Brasilândia e Sapopemba.
Coletivos, entidades e indivíduos, que se organizaram em assembleias abertas em praça pública foram os artífices dessa campanha. Além de lutar pela justiça no caso do menino Douglas, a desmilitarização da polícia, criação de uma polícia comunitária, a redução de direitos também foram postos à mesa. Lideranças de movimentos sociais, políticos, artistas e intelectuais se juntaram à causa.
Mas esse ano já se completam dois anos da morte de Douglas. A justiça anda em passos de tartaruga. Mas o maior problema não é esse. Há 11 anos atrás aconteceu o mesmo com Flávio Santana, dentista, negro, filho de sargento da polícia reformado. Foi assassinado em Santana, também Zona Norte, por policiais que ainda forjaram a cena do crime para alegar auto-defesa. Uma campanha imensa foi organizada, e conseguiram a condenação e posterior reclusão dos policiais envolvidos. E, agora em agosto de 2015, uma chacina em Osasco e Carapicuiba matou 19 moradores da região. Ainda sem resolução da justiça. Tudo continua acontecendo sempre igual. Nada muda. Temos que entender que esse processo é endêmico e só uma grande transformação, uma revolução no conceito de proteção à população pode conseguir acabar com essa guerra diária em que vivemos.
Bacurizinho
A primeira coisa a se fazer é não esquecer. A segunda é lembrar sempre. Dia 31 de outubro, a família de Douglas e mais coletivos, grupos de teatro, amigos, vizinhos fizeram um ato de memória a Douglas. Foram convidados autoridades e entidades. Houve também apresentações de música, poesia e intervenções.
“Os mesmos que mataram meu amigo
Vieram nos escoltar
Nós não queremos escolta
Nós queremos justiça”
O grupo de teatro Mudança de Cena, dirigido por Yara Toscano encenou na rua, a peça “Enquadros”, que discute a morte de Douglas e de outros casos de racismo policial. Num formato chamado de Teatro-Fórum, em um momento da peça foi chamada a participação do advogado de defesa para explicar o processo para todos os presentes.
O local escolhido foi onde Douglas foi assassinado. Rua Bacurizinho. Triste. Numa rua em que o próprio nome homenageia Douglas. Bacurizinho. Em certas regiões do Brasil, bacurizinho é um jeito carinhoso de se referir aos filhos. O bacurizinho de Dona Rossana. Que se preocupa imensamente com seu outro filho, que ainda não conseguiu superar o trauma daquele dia. Que prometeu na despedida do Douglas, buscar, a qualquer custo, justiça pra ele. E mãe cumpre.
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