FRENTE E LADO - Crivella: depois do caso arquivado, ele ganhou
os negativos das fotos “de presente” (VEJA)
O senador Marcelo Crivella foi fichado e preso no Rio de Janeiro em 1990, mas o inquérito desapareceu. VEJA revela os detalhes da história
O olhar é sereno. Só o cenho franzido denota alguma tensão. A camisa, alinhada, parece ter saído do cabide naquele instante. A placa pendurada no pescoço indica uma data (18 de janeiro de 1990), uma delegacia (a 9ª DP, do bairro do Catete, no Rio). O auto de identificação, ou AI, no jargão policial, tem o número 000342. As duas fotos, de frente e de perfil, fazem parte da história de vida de Marcelo Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, senador da República pelo PRB e líder nas pesquisas para a prefeitura do Rio — ele disputa o segundo turno, no próximo domingo, 30, com Marcelo Freixo, do PSOL.
Na foto, Crivella tinha 32 anos. O registro policial, nas palavras do próprio candidato, é “um espinho na minha carne”, referência a uma expressão proferida pelo apóstolo Paulo no Novo Testamento. É natural que ninguém fique alardeando uma nódoa no passado, sobretudo quando se tem ambições políticas. O que não é natural é que as fotos da prisão de Crivella tenham ficado desaparecidas durante 26 anos. Elas não constavam nos arquivos da Polícia Civil, onde são guardados os conteúdos de qualquer investigação. VEJA teve acesso às fotos com uma pessoa que as guardou por décadas. O inquérito sobre o caso foi cedido à revista pelo próprio Crivella, ao longo de uma entrevista de três horas.
O jovem Crivella fichado era pastor iniciante de um templo da Igreja Universal em São Paulo e estava de passagem pelo Rio quando recorreu à força para resolver uma questão muito terrena da igreja — a posse de uma propriedade. Com isso, foi parar na delegacia e passou o dia preso em uma cela do Catete. VEJA reconstituiu os fatos daquele dia e, sobretudo, o mais importante: o sumiço das fotos e do inquérito policial no qual Crivella é personagem central.
A ACUSAÇÃO – O vigia Nilton Linhares morava em um terreno da Universal e não quis sair quando solicitado. Segundo relato do advogado de Linhares, na manhã daquela quarta-feira Crivella arrombou a porta da casa com um pé de cabra. Estava acompanhado de seguranças armados, “ameaçando toda a família”. Ouvido, o senador confirma que esteve lá, sim. “Mas não toquei nas pessoas”, diz
Em casos normais, o número de identificação que aparece nas fotos – o AI 000342 — deveria corresponder ao número do inquérito ou da ocorrência policial. No caso de Crivella, tudo estava trocado. Nem o número da foto era igual ao do inquérito, nem o número do inquérito era igual ao da ocorrência policial. VEJA conseguiu rastrear todo o material, ainda que com números distintos, mas encontrou outro exotismo: a ficha policial de Crivella só voltou aos arquivos oficiais há seis meses, na forma de uma discreta anotação em um cadastro estadual de acesso restrito. Nenhuma fonte ouvida por VEJA sabe explicar por que o registro ficou inexistente durante 25 anos e meio. Confrontado com as fotos apresentadas por VEJA, Crivella contou sua versão.
A DEFESA – A polícia foi chamada e deu voz de prisão a Crivella. Ele passou o dia na cadeia, foi solto e convocado a voltar no dia seguinte. No retorno, passou mais quatro horas isolado em uma sala “fechada e sem ar condicionado”. Ali, segundo a advogada da Universal, Maria do Socorro Costa, “foi humilhado, taxado (sic) de ‘pastor ladrão’ e fotografado”. A igreja ameaçou processar o delegado
Em seu apartamento, na Barra da Tijuca, Crivella localizou uma caixa e dela tirou o inquérito 023/1990 (esse é o número mágico que ninguém tinha) e o calhamaço de 117 páginas amarelado pelo tempo. Crivella tinha, ainda, até os negativos das duas fotos feitas na delegacia, cuidadosamente recortados do filme usado no dia. Contou que o inquérito foi arquivado um ano mais tarde. Por essa ocasião, esteve na delegacia e recebeu graciosamente o material das mãos do delegado João Kepler Fontenelle, já falecido. Por que o delegado teve esse gesto de oceânica bondade? Crivella diz que a Igreja Universal ameaçava processar o delegado pela forma como conduzira o caso. Daí o agrado a Crivella. “Ele me disse: ‘Vou te dar as fotos. Vou tirar isso daqui. Fiz para te constranger, mas estou arrependido’ ”, recorda-se o senador. Repassar os negativos seria a garantia de que as fotos comprometedoras — e o próprio inquérito — nunca mais veriam a luz do dia.
O plano deu certo até VEJA ter acesso a cópia das fotos.
O sumiço de documentos oficiais contra um senador da República, ou quem quer que seja, é um péssimo sinal. Revela uma proteção ilegal e uma inclinação à manipulação que não correspondem ao que se espera de homens públicos. Compreende-se que Crivella não se empenhe em divulgar as fotos de sua prisão, mas mantê-las em sua casa, subtraídas dos arquivos e do escrutínio público, não é uma postura republicana e, caso seja investigado, pode vir a ser enquadrado em crime de subtração de documentos.
O caso, em si, é de menor gravidade. Tudo começou em 1986, quando a Igreja Universal comprou um punhado de imóveis no bairro de Laranjeiras e pôs tudo abaixo. Parte do espaço de 840 metros quadrados foi alugada para a instalação de um estacionamento. Outra parte, situada na Rua Senador Corrêa, foi reservada para a construção de um templo da Universal. Enquanto a obra não começava, Nilton Linhares, 29 anos, largou a função de motorista profissional e virou vigia do local, onde ergueu um casebre com material cedido pela própria igreja e se instalou com a família. Quando a Universal quis o terreno de volta, Linhares reivindicou direito de posse e se recusou a sair. Foi aí que Crivella entrou em ação para reaver a propriedade.
Na semana passada, durante a conversa presenciada pela mulher, Sylvia Jane, 58 anos, o senador relatou a VEJA os eventos daquela semana de janeiro de 1990. “Estava revoltado. Acordei de manhã, peguei os caminhões que a gente tinha e fui para lá. Arrebentei aquela cerca. Entrei lá dentro. Comecei a tirar as coisas dos caras e botei em cima do caminhão. Mas não toquei nas pessoas”, disse. “Tinha uns dez homens comigo.” No inquérito 023/1990, os fatos narrados pelo advogado de Linhares são diferentes. Diz o depoimento que Crivella esteve duas vezes no local. Na terça 16, tentou cortar o acesso ao terreno colocando obstáculos, que foram retirados. Na quarta, chegou violento. Arrombou o portão com um pé de cabra e, acompanhado de seguranças armados de revólver, ameaçou a esposa e as duas filhas de Linhares (morto há quinze anos). Crivella nega. Acionada, a polícia levou o pastor para a delegacia, onde passou o dia preso. À noite, saiu com a condição de voltar no dia seguinte. Voltou, foi fotografado e passou mais quatro horas detido. Consta do inquérito uma petição de sua advogada dizendo que, na ocasião, ele teria sido “humilhado e taxado (sic) de pastor ladrão”. Uma vez arquivado, o inquérito sumiu. O constrangedor é que sumiços fazem parte da história de vida do hoje senador.
Um livro que Crivella escreveu em 1999, contendo insultos pesados a outras religiões e a homossexuais, não aparece mais no catálogo da editora (veja o quadro ao lado). O CD em que o bispo-cantor gravou, em 1998, Um Chute na Heresia, música que faz alusão ao ato de agressão de outro pastor a uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, não se encontra na loja eletrônica que vende sua obra musical. Na semana passada, o site de VEJA revelou que a Universal entrou na Justiça para que o Google retire da internet vídeos de denúncias feitas pelo ex-bispo Alfredo Paulo Filho. Em um deles, Crivella e sua mulher são acusados de receber recursos não declarados para a construção da Fazenda Nova Canaã, projeto social do senador na Bahia. Cerca de 50 000 dólares teriam viajado da África do Sul para o Brasil e sido entregues a Sylvia. O candidato negou as acusações. Fiéis do Brasil todo processaram Alfredo Paulo. Admitir a prisão de 1990 e sair de cima do inquérito é uma tentativa de admitir os erros e evitar barulho demasiado.
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