quarta-feira, 19 de outubro de 2016

BRASIL: QUAIS SÂO OS PAPÉIS SECRETOS NA COSTA RICA SIGNIFICAM PARA O BRASIL E A AMÉRICA LATINA?


A Costa Rica acaba de decretar sigilo sobre 12 memorandos de sua embaixada no Brasil escritos entre janeiro e setembro de 2016, os quais supostamente versavam a respeito da situação política no país em meio ao processo de impeachment. O que dizem as entrelinhas do misterioso caso quanto ao cenário atual da América Latina? Sputnik explica!

"Está declarada reserva sobre os relatórios políticos apresentados pelo chefe da missão diplomática destacada na República Federativa do Brasil, cujo conteúdo se refere, parcial ou integralmente, a assuntos que possam comprometer relações bilaterais", diz o decreto publicado na terça-feira (11) no jornal oficial costarriquenho, o "La Gaceta" segue o link abaixo:

https://www.imprentanacional.go.cr/pub/2016/10/11/comp_11_10_2016.pdf 

A declaração de reserva sobre os documentos listados significa que “nenhuma pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira” poderá ter acesso a eles, e que os destinatários dos informes, bem como os que receberam cópias das mensagens por parte do embaixador da Costa Rica no Brasil, deverão “guardar estrita confidencialidade em relação aos mesmos”.

O governo costarriquenho justificou a ação com base em prerrogativas previstas na Constituição Política – em particular, na independência dos Poderes, e em resoluções da Procuradoria Geral da República que indicam que matérias relativas à segurança, à defesa nacional e às relações exteriores da República podem ser submetidas a segredo de Estado. Na quarta-feira (12), o chanceler da Costa Rica, Manuel González, enviou uma declaração à imprensa brasileira reiterando a atitude tomada pelo governo de seu país:

"Como governo, temos a responsabilidade, a obrigação, de proteger adequadamente correspondências cuja divulgação poderia trazer consequências danosas ao país em matéria de relações diplomáticas", afirmou o ministro das Relações Exteriores.
Façamos uma breve retrospectiva sobre o caso. 

Correspondências secretas e guerra de informações 

Em 18 de março, um mês antes do afastamento da presidenta Dilma Rousseff pela Câmara dos Deputados, todas as embaixadas brasileiras no exterior receberam uma mensagem do Itamaraty alertando sobre o risco iminente de golpe de Estado no país, e instruindo as representações diplomáticas a mediar o contato entre as organizações da sociedade civil locais e as do Brasil. 

Algumas horas depois, a Secretaria Geral do Itamaraty abortou a ordem, alegando que as circulares haviam sido enviadas “sem autorização superior”. Apesar disso, o episódio deixou claro que, mesmo dentro do Itamaraty, sempre houve dúvidas sobre a legitimidade do processo que derrubou a presidenta Dilma e levou Michel Temer à presidência, ao lado do tucano José Serra na chancelaria. 

Talvez fosse necessário retraçar a cartografia dessa história aos idos de 2013, quando, segundo afirma o jornalista Pepe Escobar, teria sido deflagrada uma poderosa operação no país, “com pegadas da ação norte-americana”, para atender a interesses internos e internacionais, tais como a criminalização do PT, a inviabilização de Lula como candidato em 2018, a implantação de uma “política econômica ultraliberal”, a alteração das regras de exploração do pré-sal e a reversão da “política externa multilateralista que resultou nos BRICS, na integração sul-americana e em outros alinhamentos Sul-Sul”. 

Desde os grampos da Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) à Petrobras e à própria Dilma – escândalo cuja revelação, por parte do Wikileaks, desencadeou um período de esfriamento nas relações diplomáticas entre Brasília e Washington – à chegada no Brasil, em agosto de 2013, de uma embaixadora norte-americana que já havia servido no Paraguai pouco antes do golpe parlamentar contra o presidente Fernando Lugo, há uma série de fatores que, de fato, levantam dúvidas sobre os interesses estrangeiros no impeachment de Dilma.

Em dezembro de 2012, o Wikileaks vazou um telegrama diplomático norte-americano que relatava a promessa feita pelo então candidato à presidência José Serra a uma executiva da petroleira Chevron, de que, se eleito, ele mudaria o modelo de partilha do pré-sal fixado pelo governo Lula – o que acaba de acontecer sob o governo Temer, com Serra na pasta de Relações Exteriores. 

Nesse contexto, pulamos para o dia 20 de setembro deste ano, quando, pouco antes de Michel Temer discursar na Assembleia Geral da ONU, o presidente da Costa Rica, Luis Guillermo Solís, e o chanceler González abandonaram o salão, acompanhados no gesto por representantes de Bolívia, Equador, Venezuela, Cuba e Nicarágua.  ​

No mesmo dia, a Presidência da Costa Rica afirmou que a decisão se dera de forma "soberana e individual", e que havia sido suscitada pela "dúvida de que, ante certas atitudes e atuações, se queira lecionar sobre práticas democráticas". A nota citou, particularmente, "certos atos de violência ocorridos após a conclusão do processo de 'impeachement'", fazendo referência a uma série de episódios de violência policial e de repressão contra manifestantes que denunciaram o processo como golpe de Estado.

O ato diplomático, porém, causou profunda surpresa não só em Brasília, como também dentro da própria Costa Rica, insuspeita de "bolivarianismo". Cabe notar que San José não apenas é a sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como sempre foi um aliado diplomático dos EUA na América Central, tendo extinguido suas Forças Armadas em 1948.

Assim, em 29 de setembro, o deputado do Partido Libertação Nacional (PLN), Rolando González, um dos líderes da oposição costarriquenha, exigiu que o chanceler entregasse os memorandos escritos pela embaixada no Brasil no período de janeiro a setembro, a fim de verificar se eles continham alguma informação que pudesse fundamentar o gesto diplomático do presidente Solís na Assembleia Geral da ONU. E, em 3 de outubro, o governo assinou o decreto, publicado no dia 11, baixando sigilo sobre os documentos solicitados. 

Démarche diplomática da Costa Rica 

O presidente costarriquenho, eleito em 2014 com 77% dos votos, se define como um social-democrata de centro-esquerda no espectro político latino-americano. Apesar de nunca ter se pronunciado explicitamente contra o golpe no Brasil, sua retirada da Assembleia Geral da ONU antes da fala de Temer deixou claro suas hesitações a respeito do governo do peemedebista. Em 22 de setembro, Solís reconheceu, em entrevista à CNN em espanhol, que as relações com o Brasil estavam "tensas" após o episódio, mas demonstrou cautela no trato com o governo Temer, reconhecendo o Brasil como uma "potência mundial e latino-americana". 

"Nós nunca havíamos feito nenhuma observação sobre o ‘impeachment’ em ocasiões anteriores. Mantivemos uma atitude muito ponderada durante todo o período prévio à tomada de poder do senhor Temer e nos referimos aos processos posteriores porque nos preocupa que possam marcar uma tendência que leve o Brasil, que é una potência mundial e latino-americana, a um caminho que não seja o adequado", disse ele. 

"Há um ato político indubitável que admito e explico: o tomamos porque nos preocupa a opacidade de alguns dos processos que se seguiram (depois do impeachment), a violência contra a oposição política e a possibilidade de uma lei de anistia que creio que deixaria impune uma série de feitos que são muito questionáveis e que a justiça brasileira terá que atender", acrescentou.

Em 29 de setembro, o chanceler Manuel González afirmou que a relação com o Brasil era "normal" e reiterou que a Costa Rica não tinha "nada a dizer" a respeito do processo de impeachment. "O que assinalamos são situações no exercício da presidência de Temer. Há preocupação sobre uma tendência a atos que podem afetar a democracia nesse país (Brasil)", disse ele em entrevista coletiva.

A tentativa de San José de amenizar o simbolismo do que ocorreu na Assembleia Geral (basta notar que foi a primeira vez em toda a história das participações do Brasil em órgãos multilaterais que outros países se retiraram, em protesto, enquanto um chefe de Estado brasileiro discursava, e que isso aconteceu no principal fórum global dos países, a ONU) parece obedecer a imperativos pragmáticos das relações exteriores, principalmente quando se leva em conta o tamanho do Brasil na conta das importações e exportações da América Latina.

A Bolívia, que sempre denunciou como ilegítimo o governo Temer, anunciou em 3 de outubro a normalização de suas relações diplomáticas com o Brasil. Certamente, o pragmatismo econômico exerceu grande papel nessa decisão, já que La Paz precisa discutir os termos da renovação do contrato de compra e venda de gás boliviano pelas empresas brasileiras, acordo que vence em 2019, bem como os planos de construção de hidrelétricas na Amazônia e a construção de uma ferrovia que ligará os oceanos Atlântico e Pacífico.

O Uruguai, liderado pelo presidente Tabaré Vázquez, que também havia se posicionado a favor da presidenta Dilma durante seu processo de impeachment, também reavaliou sua posição, privilegiando o fato de que o Brasil está entre os maiores países compradores de produtos uruguaios. 

Configuração de forças na América Latina 

Existem dois fundamentos historicamente estabelecidos para o reconhecimento da legitimidade de um Estado nas relações internacionais: por um lado, a declaração interna de soberania; por outro, o reconhecimento externo de outros Estados.

Além da retirada inédita de representantes estrangeiros durante o discurso de Temer em setembro, alguns analistas viram na falta de aplausos durante a fala do peemedebista e no fato de o presidente dos EUA, Barack Obama, ter "se atrasado" para fazer o seu último discurso no fórum (evitando desse modo se encontrar nos bastidores da ONU com o presidente brasileiro) certo isolamento nunca antes visto do Brasil na arena internacional, refletido pelas dúvidas acerca da legitimidade do governo Temer.

Ideologias à parte, e independentemente de se considerar o impeachment legítimo ou não, a cooperação entre os países da região com o Brasil é ameaçada por certa inabilidade da atual chancelaria. Enquanto os governos de Dilma e o de Lula estreitaram os laços do país com os vizinhos latino-americanos e assumiram um papel de liderança na região, o governo Temer se afasta do continente e dos BRICS e volta a política externa para as grandes potências mundiais. Em suas primeiras ações, o novo chanceler acusou governos de países latino-americanos de "propagar falsidades" e disse que o secretário-geral da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) "extrapolava suas funções".

O cenário, enfim, parece caminhar para o fim da multilateralidade que caracterizou os esforços do país nos últimos anos. As perspectivas de integração da América Latina estão baixas. O Brasil parece se alinhar novamente aos EUA. Por outro lado, os governos de esquerda latino-americanos continuam sob ataque. Se o Brasil vai se tornar cada vez mais isolado ou se as nações vizinhas vão se render ao pragmatismo econômico ou ao neoliberalismo, só o tempo, e as resistências, irão dizer. 


Fonte: Diário da Russia




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