segunda-feira, 15 de junho de 2015

BRASIL: MORTE E RESSURREIÇÃO DE UM FANTASMA


Quanto mais se arquiva a ditadura nos fichários da história, mais se conserva o projeto político experimentado no laboratório autoritário dos anos 60 e 70.

Recentemente, assistimos à apresentação do Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e, posteriormente, de algumas comissões da verdade locais ou de instituições específicas. Nestas peças sobre o passado recente do país houve a apuração de acontecimentos históricos sem, contudo, mobilizar seu potencial de gênese do presente ou os seus efeitos na política democrática.

Alguns relatórios, como o da Comissão da Verdade de São Paulo, foram mais enfáticos em fazer a relação entre momentos políticos aparentemente distintos, como os da ditadura e os da democracia. O que se verificou é que a verdade sobre os desaparecidos políticos, a estrutura de repressão, a venda do país para as grandes empresas, os arquivos militares e outros tantos elementos do projeto político iniciado na ditadura foram minimamente desvendados. O grande esforço e dedicação dos que trabalharam nestas comissões se esvai nas fendas de uma construção política precária.

Quanto mais caminhamos em direção à reconstrução deste passado, mais corroboramos com o esquecimento de seus profundos significados ao apresentarmos uma história morta e sem corpo (ver A construção em abismo da história). Sim, de certo modo, é isto que se fabricou no processo de revisitar a história como se ela se encontrasse em um passado que não nos pertence mais – a não ser como herança maldita com a qual a democracia já teria rompido. 

Há poucos dias, a morte da história ressurgiu, como normalmente ocorre, na forma do fantasma. Desta vez, o espectro apareceu como “prova” de uma transição política bem sucedida entre ditadura e democracia. Faleceu o general Leônidas Pires Gonçalves, torturador e assassino durante os anos setenta, quando chefiou o DOI-Codi do Rio de Janeiro. Seu nome consta do Relatório da Comissão Nacional da Verdade.

No momento de sua morte, a grande mídia rapidamente se esforçou por apresentá-lo como um dos artífices da transição pois, como ministro do Exército do presidente José Sarney, teria garantido a continuidade do processo após a morte de Tancredo Neves. Grande falácia. 

Com um pouco de pesquisa, qualquer um de nós pode verificar o quanto aquele general, hoje espectro autoritário desta democracia, destruiu cada passo democratizante do país, forçando a aceitação de “pactos e acordos”, como o da manutenção da impunidade com base na Lei de Anistia de 1979.

Ouvir as notícias da morte do general e da ressureição constante do fantasma do passado nos remete à ideia do impulso do progresso sobre nossas vidas. É como se aquilo que passou já fizesse parte de outro tempo – por isto, é possível contar a história como se ela estivesse morta, ou no máximo como espectro. Trabalhamos com a sensação de que o tempo se apresenta como uma flecha, como nos diz o sociólogo Bruno Latour, de modo que o acontecido fica para sempre eliminado, contabilizado em nossos relatórios sociais como acúmulo do progresso.

O problema é que os acontecimentos se misturam e passado e presente se encontram nas ações da polícia nas periferias e nas manifestações de resistência; na posse da terra por parte de grandes empreendimentos capitalistas e predatórios; na crescente diminuição da liberdade de expressão e no bloqueio das políticas de criação de novas formas de agir. E com isto se amplificam os conflitos, inclusive com o aumento da violência.

As notícias fabricadas no presente, somadas à tese de que houve no passado um conflito extremo entre forças radicalizadas, exigindo a reconciliação nacional e o pacto da transição, parecem indicar que nos alimentamos de nossa história. Mais do que isto, causa a impressão de termos rompido definitivamente com o passado, nos autorizando a construir a história como peça da ruptura, marca dos tempos democráticos em oposição aos maléficos eventos descritos.

Quanto mais se arquiva os tempos da ditadura nos fichários da história, mais se conserva o projeto político experimentado no laboratório autoritário dos anos 60 e 70. Todo relatório de comissões publicado sem a análise e apuração da transição e dos conflitos em democracia, por mais apurado e detalhado que tenha sido, depositou em berço esplêndido a tese do nascimento da democracia por ruptura com a ditadura. Estamos, de fato, tão distantes do projeto autoritário “daqueles tempos” como as notícias e os espectros nos fazem acreditar?
Não há resto da ditadura depois de 30 anos de democracia! Há um projeto político autoritário no Estado de Direito brasileiro.

O passado permanece ou, poderíamos dizer neste caso, continua. Quando as formas autoritárias de controle da vida e do cotidiano ressurgem de forma mais violenta, comenta-se sobre uma herança podre da ditadura deteriorando algumas instituições da democracia. Se rompemos com o passado e consolidamos um outro regime, distinto do anterior, o “retorno” do passado só pode se apresentar como recalque, espectro, revanchismo. Não será difícil ouvirmos: “é preciso tomar cuidado, as forças conservadores podem repetir 64, o melhor é defendermos a governabilidade para garantir a democracia duramente conquistada”.

Só é possível acreditar nas instituições do Estado de Direito, na eficácia das leis, nos processos eleitorais e de representação e participação políticas se houver a crença de que rompemos definitivamente com o passado. Sem a imagem de eliminação e finalização dos eventos do outro tempo, não há docilidade e compreensão diante dos conflitos do agora.

A “tese dos dois demônios” somada à estória da reconciliação nacional e do pacto de transição traveste o projeto autoritário experimentado no laboratório ditatorial em fantasmas do regime democrático. Parece-me que vivemos uma democracia de efeito moral, na qual seu aspecto superficial de liberalismo e de ruptura convive com suas profundezas autoritárias fortemente alicerçadas na história. Ambos aspectos tão reais quanto os fantasmas que nos rondam.
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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010).

Fonte: Carta Maior

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