Pesquisador refaz a viagem pela América do Sul que foi definidora do estilo do criador do jornalismo gonzo - e que previu o golpe militar no Brasil
Hunter S. Thompson era um repórter desconhecido quando iniciou sua viagem de um ano por oito países da América do Sul, em maio de 1962. Com 12 dólares no bolso, entrevistou contrabandistas de La Guajira, na Colômbia, sem falar espanhol. Era sua “última chance de fazer algo grandioso e incômodo, além de ter contato direto com um lugar incivilizado”. O destino anterior às terras colombianas havia sido Aruba, de onde saíra a bordo de um saveiro com uma carga ilegal de uísque. Ao fim de maio de 1963, após testemunhar a realidade sul-americana para o semanário National Observer, tornou-se ácido e pessimista.
A viagem de Thompson desapareceu de sua biografia, e por sua própria culpa, segundo Brian Kevin, autor de The Footloose American: Following the Hunter S. Thompson Trail Across South America (Broadway Books). Morto em 2005, o inventor do chamado jornalismo gonzo, partícipe das ações que descrevia, metamorfoseou-se em “caricatura da contracultura” para se manter em evidência. “No imaginário popular, seu nome e a marca conhecida como gonzo são associados ao consumo excessivo de drogas e às palhaçadas que obscureceram a sua reputação de escritor”, afirma Kevin a CartaCapital.
A indiferença explica por quê, quase dez anos depois de Thompson ter cometido suicídio, seu acervo permanece fora de uma universidade, indisponível. Além do alcoolismo e da obsessão por armas, o estilo nada formal dos seus escritos contribuiu para transformar em persona non grata o autor de Medo e Delírio em Las Vegas (1972). “O meio acadêmico americano absorve com reticência autores contemporâneos, sobretudo se têm características evidentes da cultura pop, como no caso de Thompson”, diz Kevin.
A escrita de viés exagerado teve origem nas visitas às cidades sul-americanas. Nas 18 reportagens para o National Observer, a maioria sobre eleições nacionais, Thompson relatou a extração de recursos minerais, os levantes políticos, a marginalização dos indígenas, a Guerra Fria e a política externa norte-americana. “Antes de maio de 1962, ele era escapista e descobridor”, comenta Kevin. “Um ano depois se tornaria iconoclasta, indiscreto e mais autoconfiante, com um humor fulminante e senso incipiente de injustiça.” Dali em diante, apresentou-se como “um especialista do trabalho no limite”, além de um “jornalista fora da lei e de boca suja”.
Para escrever The Footloose American, Kevin viajou por seis meses pela América do Sul e encontrou países afetados por ditaduras encarniçadas, aquelas cujas agruras socioeconômicas haviam contribuído para aumentar a ansiedade do escritor. Quando Thompson deixou a Colômbia, onde conheceu os guajiros, indígenas cuja subsistência vinha do contrabando e cuja alimentação “era imprópria até para cachorros”, percebeu que, com apoio militar, as elites sufocavam qualquer transformação. Os índios eram os mais atingidos. “Ao sul de Bogotá, as cidades andinas estão inundadas com mendigos indígenas sem pudor de deitar nas calçadas dos centros das cidades e de puxar as pernas dos pedestres que parecem prósperos.”
Em Lima, no Peru, Thompson visualizou-se como um abolicionista no Sul dos Estados Unidos. “E considerando-se as relações entre os indígenas e os endinheirados (não há mais nenhum outro grupo), acho a comparação bastante apropriada.” Em agosto de 1962, testemunhou os efeitos de um golpe nas terras peruanas. “Os indivíduos que precisam de democracia no país não sabem o que essa palavra significa. Aqueles que sabem não precisam da democracia e não se importam em deixar isso claro.”
A última parada da travessia foi o Rio de Janeiro. Em Reino do Medo, ele registrou as primeiras impressões. “O Rio de Janeiro está bem perto de ser o melhor lugar do mundo para ficar perdido eternamente, depois de o mundo finalmente vir abaixo”, afirmou sob o pavor alimentado pela Crise dos Mísseis de Cuba em 1962. Mas o deslumbramento com a cidade durou pouco. “É a maldita realidade daqui que não consigo evitar. Esses pobres coitados, acossados, assediados, pisoteados do nascer ao pôr do sol sem nenhuma razão satisfatória. Eu não os culparia se eles se revoltassem contra quase tudo e em nome de qualquer partido ou ismo que oferecesse as condições para a revolta”, declarou no fim de 1962.
Cinco das quatro reportagens sobre o Rio de Janeiro para o National Observer tratavam da instabilidade político-econômica brasileira. Em janeiro de 1963, um ano e dois meses antes do golpe apoiado pelo governo dos EUA, Thompson especulou sobre a deposição do presidente João Goulart. “Uma revolução, mesmo uma sem armas, provavelmente viria de dentro das Forças Armadas”, previu. “Além disso, ela seria bem-sucedida. O presidente não tem a maioria dos militares a seu lado para sobreviver a um confronto.” Para ele, o Brasil seguia a trajetória histórica dos países da região. “Onde a autoridade civil é fraca e corrupta, os militares tomam o poder automaticamente.”
Enquanto viajava, Kevin buscou interpretar o significado desta frase escrita por Thompson no Rio de Janeiro: “Após um ano perambulando por aqui, sei por que os EUA nunca vão ser o que poderiam ter sido ou pelo menos tentaram ser”. Os países sul-americanos serviram como lições para o autor de Hell’s Angels (1966). “Ele percebeu que as maiores ameaças à promessa norte-americana de igualdade de oportunidades, como o sectarismo político, o poder oligárquico ou a racionalização da pobreza, não poderiam ser relegadas a um estágio passado de desenvolvimento”, diz Kevin. Os EUA, pondera, tornaram-se mais parecidos com a América do Sul do que o contrário. Esse era o medo pressentido por Thompson meio século atrás.
Fonte: Carta Capital
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