Para Renato Janine Ribeiro e docentes de escolas públicas, novo Ensino Médio não garante a mesma oferta a todos os estudantes
Ato contra a reforma no Ensino Médio realizado segunda-feira (26), na Avenida Paulista
Passada uma semana do anúncio da Medida Provisória nº 746 de 2016, que muda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para instituir as escolas de Ensino Médio em tempo integral e a flexibilização curricular, a consulta pública sobre a proposta do presidente Michel Temer, no site do Senado Federal, mostra mais de 58 mil votos contra o texto e 2.700 a favor. Além disso, nesta quinta-feira (29) foi encerrado o prazo para a sociedade civil organizada por meio de confederações de professores, sindicatos, uniões estudantis e outras entidades apresentarem emendas à MP, que, de acordo com o secretário de Educação Básica do MEC, Rossieli Soares da Silva, deve ser complementada nos próximos dias pela publicação de uma portaria sobre a viabilidade financeira da oferta.
Crítico a vários pontos da MP 746, Renato Janine Ribeiro, que foi ministro da Educação de abril a outubro de 2015 e deu início às discussões sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no MEC durante esse período, acredita que a controversa proposta tem um caráter positivo para o debate do Ensino Médio. “Algo bom dessa história é que estamos discutindo um assunto realmente sério e não mais um factoide recente como Escola Sem Partido e ideologia de gênero”, avalia o professor titular de Ética e Filosofia Política da USP.
Na análise de Janine, seria mais justo fazer mudanças com base no Projeto de Lei (PL 6840/2013), porque durante toda sua tramitação a sociedade civil deve ser ouvida. Porém, ele afirma que durante o curto período em que foi ministro, a questão do Ensino Médio não esteve no centro da discussão e que é impossível fazer comparações entre os dois momentos. “O calendário de educação, no caso atual, o resultado do Ideb, influencia as decisões, sim, mas não se pode embarcar na linha da teoria da conspiração, porque a secretária executiva do MEC, Maria Helena Guimarães de Castro, e o secretário de Educação Básica são pessoas preocupadas com os problemas do Ensino Médio. Esse fato, claro, não nos impede de tecer críticas”, acredita.
Janine aponta que o PL, analisado por comissões especiais nos últimos três anos, é uma referência para a Medida Provisória. Além da instituição do ensino integral, com 7 horas/aula por dia, a divisão dos conteúdos em quatro ênfases – linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas – é um outro ponto do projeto em tramitação que acabou mantido na MP.
A diferença é que agora existe uma quinta ênfase – a Formação Técnica e Profissional – em que cada estudante escolhe se aprofundar em uma das quatro áreas do Exame Nacional do Ensino Médio. “Na minha percepção, ao deixar que o Enem organize o Ensino Médio, temos a situação do rabo abanando o cachorro: uma avaliação vai determinar os estudos, enquanto a necessidade real é de adequar o currículo ao que importa para a vida e não só para treinar a passar no vestibular”, afirma Janine.
O professor acrescenta que a ligação direta entre Ensino Médio e Ensino Técnico que a MP traz para a LDB ainda era um ponto sensível colocado em debate durante a tramitação do projeto de lei. Para ele, faltam garantias de que esse modelo dará as mesmas oportunidades de escolha para todos os estudantes. “Quando falamos que o Ensino Médio será composto pelas quatro áreas do Enem e pelo Ensino Técnico, sabemos que em muitos casos a escola vai fornecer apenas uma ou duas opções de aprofundamento, principalmente em cidades pequenas”, analisa.
Na quarta-feira (28), o secretário de Educação Básica do MEC, Rossieli Soares da Silva, afirmou em entrevista ao Portal Brasil que as redes vão definir o que é possível fazer de aprofundamento. “Para aquele jovem que tem um talento maior para a Matemática, por que ele não pode se aprofundar mais ainda em Matemática? Para aquele jovem que tem grande talento em Artes, por que ele não pode se aprofundar mais ainda com as Artes? Por que ele não pode, nas [ciências] Humanas, se aprofundar mais ainda no estudo da Filosofia, da Sociologia ou da História?”, argumentou.
Segundo Janine, por ora, a oferta não é uma certeza, sobretudo no contexto de crise financeira e limitação de investimentos nas áreas sociais. Ele acredita que o estudante na verdade se verá obrigado a escolher o que existir no leque da sua rede. “Se um número menor de estudantes de uma escola tiver interesse no percurso formativo de humanidades enquanto aquela unidade tem a grande maioria dos alunos interessada e inscrita em matemática, a escola vai oferecer o aprofundamento em humanidades para um pequeno grupo? Hoje, a realidade das redes mostra que esse grupo vai ficar sem a opção de cursar o que quer e isso pode frustrar as pessoas”, exemplifica.
Para a professora de sociologia Maira Conde, 35, que leciona na rede estadual de São Paulo desde 2012, a desobrigação das redes de oferecer aulas de determinadas disciplinas pode fazer com que elas sejam apagadas das grades curriculares das escolas. “O aumento no número de aulas de sociologia e filosofia a partir da lei de 2008 foi fruto de muita luta. Ainda assim, na Secretaria Estadual de Educação, a área técnica de sociologia é a que tem a menor equipe e menos investimento. Dessa forma, suponho que, com a liberdade que as redes terão para definir carga horária e outros aspectos da reforma do ensino médio, esses componentes curriculares ficarão ainda mais esquecidos”, afirma.
Na análise de Janine, se a obrigatoriedade recai sobre português, matemática e inglês, de fato, a oferta das outras áreas do conhecimento passa a depender do que cada estado decidir. “Pode ser que o foco, a depender da rede, fique, por exemplo, só em português e matemática, porque são as únicas áreas avaliadas pelo Ideb”, explica.
O professor da USP acrescenta que Matemática, sozinha, não pode ser considerada um itinerário formativo. “Das quatro áreas obrigatórias, matemática é somente matemática, ou seja, é uma área menos abrangente do que linguagens, por exemplo, onde temos, no mínimo, português e inglês. Dessa forma, a pessoa que escolher matemática para se aprofundar terá 12 ou 14 horas por semana somente dessa disciplina, ou quais as disciplinas que vão compor o currículo dessa área?”, questiona.
Para Janine, as disciplinas que agora aparecem riscadas do Ensino Médio na Lei de Diretrizes e Bases com a inclusão dos artigos modificados pela MP são importantes por si e não deveriam estar apenas inclusas no pacote de uma ou duas áreas. “Artes trabalham a criatividade, Sociologia ensina a entender a sociedade onde as pessoas vivem, abordando inclusive de quais formas a pobreza é produzida na sociedade, Educação Física trabalha a saúde, promove felicidade e afasta os jovens da violência e do crime, já a Filosofia pode trabalhar ética e não apenas a história da filosofia”, destaca.
Como o discurso da reforma cita em diversos momentos a Base Nacional Comum, o professor acredita que se ela já tivesse passado por todas as etapas de discussão e sido aprovada, haveria menos incerteza sobre as mudanças no conteúdo. “Hoje, no Ensino Médio, os currículos são mais um ‘trailer’ da graduação de cada área do que uma relação de conteúdos que um jovem de 15 a 17 anos precisa saber”, afirma. O atual ministro, Mendonça Filho, acredita que o texto final da BNCC será conhecido em meados de 2017.
Na avaliação da professora Rafaela de Barros Souza, 31, mestre em educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e docente da rede municipal de São Paulo, a MP faz alterações em diversos outros campos ao mexer na estrutura e na concepção de Ensino Médio. Entre elas, Rafaela ressalta as mudanças no financiamento, com a liberação de transferência de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) sem necessidade de convênio, no ingresso ao ensino superior, com o preparo técnico nos anos finais da Educação Básica, e, sobretudo, na regulamentação da profissão docente, ao redefinir quais profissionais poderão exercer o cargo.
Por outro lado, a professora lembra que as questões relativas à infraestrutura das escolas, valorização dos profissionais da educação, número adequado de alunos por turma e uma nova forma de dar aulas mais uma vez não foram enfrentadas. “Demandas urgentes como formação de professores, condições de trabalho, jornada de trabalho e melhorias salariais continuam sendo desconsideradas. Essas deficiências afastam os profissionais dos sistemas públicos de ensino, resultando em baixa atratividade da carreira e escassez de professores, enquanto a entrada de pessoas não habilitadas formalmente para atuar no Ensino Médio representa um ataque à profissionalização docente, além de interferir na qualidade do trabalho e do currículo”, analisa.
Rafaela avalia ainda que o ensino profissionalizante incorporado ao Ensino Médio reforça o direcionamento de alguns para a universidade e da maioria para carreiras de menor prestígio social e valorização econômica. “As alterações na oferta de habilitações favorecem um ensino desigual entre escolas e redes, gerando trajetórias escolares com defasagem para competir por vagas no ensino superior, confirmando a educação voltada para o mercado de trabalho em detrimento de uma formação mais humanística”, acredita.
Fonte: Carta Capital
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