Vinte anos de idade. Terceiro ano da faculdade de Direito. Noite da sexta-feira Feira, 13 de dezembro de 1968. Rodeado de amigos, em um bar, na hoje avenida Faria Lima, diante de um sorvete que ficou inacabado, como aquele ano de 68, vi e ouvi o então ministro da Justiça, Gama e Silva (ex-reitor da USP e integrante do governo Costa e Silva), estarrecer a nação com o anúncio e a leitura do Ato Institucional número 5. Mais tarde, soube que o Jornal do Brasil, para fugir da censura prévia, em edição extraordinária, publicaria esta manchete: "Previsão do tempo: Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.:5º, nas Laranjeiras.”
A impunidade decretada pelo AI 5 (Art. 11- Excluem-se de qualquer apreciação judicial, os atos praticados de acordo com este Ato Institucional...), combinada com a suspensão da garantia do habeas corpus (art. 10), resultou em massivas e sistemáticas violações de direitos humanos, leia-se torturas, estupros, execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, prisões ilegais, cassação de mandatos legislativos, aposentadoria forçada de ministros do STF, de professores, banimento, censura prévia e indiscriminada, extinção de partidos políticos e organizações estudantis, instauração da pena de morte, entre outros tantos crimes, com exílio de milhares de brasileiros e prisão de outros tantos. O AI 5 não inventou a ilegalidade e o abuso, já presentes desde o início do golpe civil militar, mas cobriu-os com um manto de silêncio.
Ronaldo Mouth Queiroz era meu amigo. Aluno da Geologia, presidiu o DCE/USP e ajudou a manter a resistência na universidade. Dias antes de ele ser morto, em 6 de abril de 1973, cruzei com ele e tomamos um café no Páteo do Colégio. Ele de camisa esporte, evidentemente desarmado. Falamos de coisas gerais. A polícia política inventaria uma história de resistência armada, que o próprio assassino arrependido desmentiria depois. Os tempos eram assim.
A doutrina de segurança nacional inspirou o golpe civil militar de 1964. Não havia opositores. Havia inimigos internos. Não havia resistência ao golpe. Havia uma guerra psicológica adversa. Daí justificou-se a competência da Justiça Militar Federal para julgar estudantes, operários, professores, políticos, homens e mulheres que se insurgiram contra a ditadura.
Nos tribunas da defesa algumas lendas da advocacia e jovens comprometidos com a coerência e a justiça. Justiça de cartas marcadas. Os advogados, na falta do habeas corpus, instituíram a comunicação direta de prisões ao Superior Tribunal Militar, no sentido de tentar evitar a morte ou o desaparecimento do preso. Foram criadas várias instâncias morais para julgar e condenar o arcabouço autoritário (Leis de Segurança Nacional, pena de morte, o Decreto Lei 477). Parte da atuação do advogado passou a ser a denúncia da tortura ou dos crimes da ditadura, em juízo ou publicamente. Foi o momento de uma advocacia criativa e estratégica.
Aceitar um caso novo ou decidir ir a um ato ou a uma missa era matéria de reflexão e discussão com os colegas do escritório ou com a esposa, diante das filhas pequenas. Três prisões e uma invasão de escritório depois, veio a participação nas campanhas pela anistia, pela revogação dos atos de exceção. Receber os exilados no aeroporto, acompanhá-los no interrogatório do DOI-CODI, dentro da Polícia Federal.
Começou para o Brasil a atividade da reconstrução. Luta pela Assembleia Nacional Constituinte. Pelas eleições diretas. Agora, a campanha contra o esquecimento e pela reparação completa das vítimas da ditadura. Pela verdade e pela justiça. Membro da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, participei do redescobrimento da história verdadeira.
A releitura dessa história começou com o Dossiê de Mortos e Desparecidos Políticos. Feito por seus combativos familiares e oficializado pela Lei 9.140/95, culminou com a publicação oficial Direito à Memória e à Verdade da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, com os trabalhos da Comissão da Anistia e da Comissão Nacional da Verdade.
Foi triste ver o Supremo Tribunal Federal aceitar, por maioria de votos, uma interpretação política para a expressão crimes conexos da Lei de Anistia e cobrir os crimes de lesa humanidade com a anistia pensada para insurgência política. Na prática, a vigência do artigo 11 do AI 5, citado logo ao início.
Mas, novos juízes; a posição aguerrida do Ministério Público Federal; o julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determinou ao Brasil levar à Justiça os perpetradores desses crimes; o atual cenário no País, clamando por transparência; os achados das várias Comissões da Verdade que se espalharam por legislativos, ordem dos advogados, país afora, relembrando aqueles tempos sombrios, tudo isto dá alguma esperança numa reviravolta a ser provocada quando do novo julgamento do recurso da OAB.
Foi revigorante, em 2013, transpor os portões da antiga sede da Justiça Militar em São Paulo, com colegas da época, outros advogados e ex-presos e familiares de mortos e desaparecidos, para vê-la destinada a abrigar o futuro Memorial da Luta pela Justiça, em parceria do Núcleo de Preservação da Memória Política com a Comissão da Verdade da OAB/SP e a própria OAB/SP, iniciativa de muitos autores. Isto como prenúncio de outras iniciativas de reconstrução e de memória. Para que aqueles tempos não voltem.
Naquele 5 de agosto de 2013, percorrendo as várias salas vazias da Auditoria Militar, tudo isso retornou à lembrança. Sessenta e cinco anos de idade.
*Belisário dos Santos Jr. foi advogado de presos políticos durante a ditadura. Seu relato faz parte da série de 50 depoimentos coletados para o especial Ecos da Ditadura, sobre os 50 anos do golpe civil-militar de 1964.
Fonte: Carta Capital
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