Chávez completa um ano de ausência, e segue onipresente. Morte do ex-presidente há 12 meses, tratada como ‘desaparecimento físico’, não impede que sua imagem siga em todos os cantos, incomode opositores e sirva de guia a Nicolás Maduro.
Alix Guizmán parece ter tomado um soco na cara. Quando perguntado sobre a morte de Hugo Chávez, seu rosto é tomado de assombro e ele parece perder o ar. Depois de uns 30 segundos, tenta balbuciar algo, mas nada lhe sai da boca. São precisos mais alguns para a voz embargada proclame: “Não é porque Chávez morreu que não há chavismo. Há Chávez no coração de todos. Está muito claro o legado que nos deixou o comandante.
Para ter pátria precisamos nos defender.”
Alix, um mecânico de pele morena com seus 50 anos, leva uma boina vermelha na cabeça, ao estilo do comandante, e tem na carteira pedaços amarrotados de papel nos quais anota telefones de um monte de movimentos, coletivos, grupos dos quais participa.
Nas horas vagas, que dá um jeito de criar, participa do Misión Vivienda, um projeto habitacional que constrói apartamentos em todo o país, inclusive em bairros de classe alta, e os dá à população da Venezuela que não dispõe de moradia. Alix não é exceção entre os chavistas: a maioria dos que apoiam o atual governo se dedica a um, dois, três projetos.
“Foi a primeira missão que nos deu o presidente”, diz, peito estufado, Yaritza Fernández, uma indígena Guayu que viajou 700 quilômetros de Maracaibo a Caracas para participar da marcha do último sábado (22) em apoio ao presidente Nicolás Maduro. O Madres del Barrio – ou mães da periferia – é uma das iniciativas que mais envolvem mulheres no projeto criado por Chávez. É um benefício social dado a mães solteiras em troca de trabalho de base. “Temos de trabalhar e sair da pobreza para sermos independentes, não dependermos dos maridos. Antes os machões nos deixavam no pé deles, lá embaixo.”
O que poderia ter sido o fim do chavismo parece ter funcionado como fator de coesão entre os apoiadores do governo. Em dezembro de 2012, doente, o presidente passou o comando provisoriamente a Nicolás Maduro, que havia sido ministro de Relações Exteriores durante seis anos, avisando se tratar de uma decisão “irrevogável, total, absoluta”.
Em 5 de março foi anunciada a morte de Chávez, até hoje não digerida por boa parte da população. “Viva o socialismo, pátria ou morte. Ele não se foi. Ele se adiantou porque tinha de assinar um contrato com Deus”, afirma Leida Cabrera, uma dona de casa de 57 anos. Pergunto se ela foi ao mausoléu do presidente, instalado na favela 23 de Janeiro, em Caracas. “Não quero vê-lo nessa posição. Quero encontrá-lo vivo, no céu. Daqui a uns 20 anos tenho certeza de que isso vai acontecer.”
A negação da morte de Chávez não é uma característica apenas da população. Há um claro esforço retórico, imagético e sonoro do governo para mantê-lo presente. Um trabalho que começou logo do anúncio do fato, quando se adotou a expressão “desaparecimento físico”, uma maneira de evitar uma palavra sombria, e que seguiu com a versão de que ele simplesmente passou a uma outra vida, na qual segue trabalhando pelas pessoas humildes – pobre também é palavra evitada.
Passado um ano dos fatos, há fotos do comandante por todos os lados, e nos órgãos públicos é mais comum ver fotos de Chávez que de Maduro. O sucessor, está claro, sabe disso muito bem. Menciona-o o tempo todo, diz que dorme de vez em quando no mausoléu e vê o dedo e o olhar do comandante em suas ações.
Ao discursar para os manifestantes que foram ao Palácio Miraflores, no sábado, Maduro afirmou que cumprirá seu mandato até o fim, 2 de fevereiro de 2019, apesar das tentativas abertas de parte da oposição de retirá-lo antes do poder. “Em 1º de fevereiro eu estarei aqui para dizer ‘Presidente Chávez, missão cumprida’”, afirmou, num esforço para recordar que chegou ao comando do “processo” pelas urnas, sim, mas, condição básica, por seu antecessor.
Um antecessor que lhe legou o gosto pelo discurso – ou a obrigação. O atual presidente não tem o poder oratório de Chávez, mas está longe de ser ruim nessa arte. O governo segue a trabalhar para criar uma sensação de onipresença que é um asco para quem odeia o atual modelo, e uma mensagem direta a quem o venera. No último fim de semana, Maduro se valeu por duas vezes da cadeia nacional de rádio e TV. Em ambas, para exibir durante horas discursos ao vivo feitos no Palácio Miraflores.
“Já teve a marcha dos jovens, a das mulheres e a dos trabalhadores. Hoje é a dos velhinhos. Faltam os motoqueiros, os taxistas e os deficientes físicos”, calculavam no domingo militantes reunidos para discutir o futuro do país em meio a marchas e atos de violência entre chavistas e não chavistas. Frente ao acosso buscado pela oposição ao longo de fevereiro, o governo reagiu no campo simbólico convocando manifestações que expressem o apoio popular à atual administração.
O fato de que sejam transmitidas pela televisão para todo o país não é à toa. A duração dos discursos de Maduro, tampouco. São, no melhor estilo de herdeiro de Chávez, conversas com a população, com a finalidade de informar e mobilizar. As falas podem ser marcadas por quatro, cinco, seis anúncios diferentes.
No sábado, por exemplo, ao receber no palácio as mulheres que haviam promovido uma marcha em sua defesa, o presidente informou que iria promover no domingo um concerto para os idosos que o visitariam, que na segunda-feira irá se encontrar com os motoqueiros, que no mesmo dia terá uma reunião com o principal líder da oposição, o governador Enrique Capriles, de Miranda, que vai realizar na quarta-feira uma conferência em prol da construção de um processo de paz e que espera uma resposta do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ao convite de retomada do diálogo.
Num mesmo discurso, Maduro chama a oposição à negociação pacífica e a acusa de ser a responsável pelas mortes ocorridas nas últimas semanas. Pede a Obama que negocie e o aponta como culpado pela instabilidade no país. Faz parte do estilo herdado. Bem como faz parte uma estética midiática voltada ao estabelecimento de uma versão dos fatos em contraposição àquela difundida por opositores e seus respectivos meios de comunicação. No sábado, Maduro por duas vezes exibiu vídeos muito bem editados no qual indicava o dedo norte-americano nos problemas vistos este ano e criticava o cantor panamenho Rúben Blades.
Compositor de salsa em tom revolucionário, famoso na Venezuela, divulgou na última semana uma carta na qual lamenta este começo de 2014 em Caracas. “Maduro, de quem se diz herdeiro por indicação e de apoio derivado, não parece possuir suficiente clareza, sagacidade e jogo de cintura que requer um mandatário para dirigir um país tão complexo”, afirmou, provocando, primeiro, uma resposta do presidente por vídeo e, depois, por discurso no qual exibiu mais uma vez o vídeo.
Maduro especulou se Rúben está no grupo de artistas que recebem dinheiro de organizações internacionais para atacar seu governo e afirmou que o seu agora desafeto está vivendo em uma bolha de plástico na qual não consegue enxergar a realidade. Como tentando fazer Rúben recordar sua origem, o presidente cantou, em rede nacional, acompanhado pelos presentes ao palácio.
Nunca descanses
Pues nos falta andar bastante
Vamos todos adelante!
Para juntos terminar
Maduro é afinado e animado. No domingo, lá estava de novo, falando com velhinhos, citando seu antecessor. A voz de Chávez surge em meio ao hino nacional pedindo “mais forte, mais forte”, e todos o atendem. A voz de Chávez está na casa de Martha Jiménez, artista plástica aposentada, enquanto ela toma o café da manhã e recorda os conselhos do comandante em seu Alô, presidente, programa semanal no qual conversava com pessoas que chamavam pelo telefone.
O sucessor tem o direito, diz, de continuar implementado aquilo que lhe foi deixado – não me venha com inovações. Se parar apenas no testamento, Maduro não tem pela frente pouca coisa: são inúmeros os textos com diretrizes formulados ao longo dos treze anos de presidência. “A Chávez mataram. Estou certa disso. Mas Chávez nos deixou o legado”, diz Martha.
Chávez no se marchó
Chávez no se marchó
Chávez somos millones
Chávez soy yo
Essa ideia de que cada um tem uma obrigação com o presidente é reiterada a todo instante. Para si, entre si, como na construção de uma consciência coletiva que tem de se reafirmar constantemente para não cair em esquecimento. Isso, sabe o governo, sabe a oposição, é o caminho que se tem para encerrar o período chavista. Enquanto Chávez tiver uma ausência onipresente, a derrota do atual projeto será mais difícil.
Fonte: João Peres, RBA
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