Jornalista foi estuprada por um garoto menor de idade. Experiência tão
traumática, entretanto, não a transformou em defensora da redução da maioridade
penal
O principal argumento dos defensores da redução da maioridade
penal pode ser sintetizado em uma frase: “Queria ver se fosse com você”.
Pois foi com a jornalista Luiza Pastor, 56, casada e mãe de uma
menina. Com apenas 19 anos, Luiza, ainda estudante da USP, foi estuprada por um
garoto menor de idade. Experiência tão traumática, entretanto, não a transformou
em defensora da redução da maioridade penal.
Por Luiza Pastor
Eu fui estuprada por um menor de idade e sou contra a redução da
maioridade penal.
Era o ano de 1976 e eu, estudante ainda, trabalhava como
secretária de um pequeno escritório em um prédio cheio das medidas de segurança
ainda novas para a época –crachás, catracas de acesso, registro de documentos
na entrada e montes de seguranças fardados, espalhados pelo saguão.
A porta do escritório estava aberta, à espera de alguém que havia
marcado de vir na hora do almoço. O menino entreabriu a porta, perguntou alguma
coisa, aproveitou para espiar e confirmar que só estava eu no local, e daí a
pouco retornou, revólver em punho, fechando a porta atrás de si.
“Tire a roupa”, foi tudo o que ele disse, apontando a arma. E eu,
morta de medo, obedeci.
Era óbvio que ele era muito novo, subnutrido provavelmente, a arma
tremia em suas mãos. A única coisa que eu conseguia pensar era que não devia
reagir. Aguentei a humilhação e a violência do estupro, chorando de raiva e
vergonha, mas finalmente tudo acabou e ainda estava viva.
Ele me mandou ficar dentro do banheiro e sumiu, depois de ter
escondido minhas roupas e levado uma pulseira de ostensiva bijuteria, além dos
trocados para o ônibus.
A certa
altura que considerei segura, me atrevi a sair. Um segurança do prédio, que
havia visto a porta trancada com a chave do lado de fora e estranhou, veio
perguntar se estava tudo bem. Não, não estava, explodi, gritei e, chorando,
larguei tudo aberto e fui embora, em busca do colo de minha mãe.
Não, não fiz boletim de ocorrência, muito menos exame de corpo de
delito. Eram tempos bicudos em que, estudante de jornalismo na USP, tinha mais
medo da polícia que do bandido, por pior que ele fosse. Fiz os exames
necessários no meu médico e me preparei para ir embora do Brasil para uma longa
temporada.
JUSTIÇA
x JUSTIÇAMENTO
Dias depois, chegou em casa uma intimação para que fosse
identificar um suspeito, um certo P. S., detido a partir de denúncia feita
pelos seguranças do prédio. Na delegacia, ao lado de meu pai, ouvi barbaridades
sobre a ficha corrida do garoto.
Egresso
de várias detenções, tinha o estupro por atividade predileta, mas sempre se
safara. Filho de mãe prostituta e pai desconhecido, havia sido criado pela avó,
uma senhora evangélica que tentara salvar-lhe a alma à custa de muitas surras.
Era óbvio que algo havia dado muito errado no processo.
Enquanto o delegado nos contava tudo aquilo, outro policial entrou
na sala e mandou a pérola: “Ah, de novo esse moleque? Esse não adianta prender,
que o juiz manda soltar, o melhor é a gente deixar ele escapar e mandar logo um
tiro. Vocês não acham?”
Não, eu não achava. Eu tinha claro que a vítima, ali, era eu. Que,
se tivesse tido ferramenta, oportunidade e sangue frio, eu teria gostado de
poder matar o safado que me violentara –e dormiria tranquila o resto da vida.
Mas tinha mais claro ainda que a vingança que meu sangue pedia não cabia à
Justiça, muito menos àquele que pretendia descontar no criminoso sua própria
impotência.
Recusei-me a depor; nada mais disse. Eles não precisavam de mim
para condená-lo; já tinham acusações suficientes e não me deram maior
importância. Ainda me chamaram de covarde, por me discordar de um justiçamento.
E insinuaram que, se eu tinha pena dele, era porque, vai ver,
tinha até gostado. Não preciso dizer do alívio que senti ao embarcar, dois dias
depois, para fora deste país.
Nunca soube que fim levou o criminoso, nem quero saber. Não me
sinto mais nobre ou generosa pelo que fiz, mas apenas cidadã que raciocina
sobre a vida real.
Toda vez que ouço alguém defender a redução da maioridade penal
como solução para o crime de menores, me lembro daquele P. S., de sua história,
e renovo minha crença no que, naquele momento terrível, me ajudou a superar o
trauma.
Sem dar a todos, menores e maiores, uma oportunidade de educação e
de recuperação, algo que exige investimento e vontade política, uma política de
Estado consciente de suas responsabilidades, teremos criminosos cada vez mais
cruéis, formados e pós-graduados nas cadeias e “febens” da vida.
Se os políticos quiserem fazer algo realmente eficaz para combater
o crime na escalada absurda que vivemos, terão que enfrentar os pedidos de
vingança dos ofendidos da vez e criar um sistema penitenciário que efetivamente
recupere quem pode e deve ser recuperado. Sem isso, qualquer mudança nas leis
será pura e simples vingança. E vingança não é Justiça.
PESQUISA
Pesquisa Datafolha divulgada em 17 de abril mostrou que 93% dos
paulistanos concordam com a diminuição da maioridade penal, 6% são contra, e 1%
não soube responder.
As propostas de redução da maioridade penal voltaram à tona depois
do assassinato do estudante Victor Hugo Deppman, 19, no último dia 9, com um
tiro na cabeça.
Ele foi morto por um jovem que se entregou um dias antes de fazer
18 anos.
Após a morte de Deppman, o governador Geraldo Alckmin (PSDB)
entregou projeto à Câmara que prevê internação de até oito anos para jovens
infratores.
Hoje, esse período é de no máximo de três anos, ou até o jovem
completar 20 anos e 11 meses, se for pego na véspera de completar 18 anos. Para
o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, a medida é inconstitucional.
Fonte: FolhaPress
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