Sozinha, Mikhaila Copello, de 22 anos, tomou a iniciativa de defender um homem acusado de ter roubado um celular contra as agressões de cerca de 25 pessoas no Rio de Janeiro
Mikhaila Copello não gosta de falar sobre o assunto, mas carrega no nome uma homenagem a Mikhail Gorbachev, o último líder da União Soviética. Como Gorbachev, que entrou para a história como herói e vilão, a depender do prisma usado para analisar sua figura, Mikhaila viveu, na noite do último 6 de maio, um dia de figura polarizadora. Sozinha, ela impediu que um grupo de 25 pessoas linchasse, na Ladeira da Freguesia, no Rio de Janeiro, um suspeito de ter cometido um assalto. Por conta do ato, Mikhaila foi escrachada por quem não conseguia entender a proteção a um criminoso e aplaudida por quem viu em seu ato a defesa de um semelhante.
Um dia depois de Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, ser linchada no Guarujá, em caso que mobilizou o País, Mikhaila, de 22 anos, estava em um bar na zona oeste do Rio quando viu um homem branco, de baixa estatura, por volta dos 30 anos de idade, correndo para fugir de um grupo de cerca de 25 pessoas que queriam puni-lo por ter supostamente roubado o celular de uma menina. “Cheguei antes do massacre, mas, quando consegui alcançá-lo, o primeiro já estava batendo nele”, conta.
Na primeira rasteira, diz Mikhaila, ele abriu a parte superior da cabeça. Suas mãos sangravam e sua blusa estava encharcada de sangue. Teve início, então, uma série de chutes na cabeça e no tórax do homem, acompanhados de gritos e raiva. “Era surreal”, diz Mikhaila. “E, talvez, só tenham parado porque viram em mim um limite, já que não podiam acertar uma menina, mulher, branca, de classe média."
Enquanto o "réu em praça pública" agonizava, Mikhaila conseguiu com um garçom um pano de prato para estancar o sangue que escorria. À sua frente, um batalhão de “justiceiros” perguntava o que ela estava fazendo, enquanto três pessoas – uma mãe com a filha e um senhor – ficaram ao seu lado, dizendo que ela estava certa. Com os braços abertos, Mikhaila só fazia chorar enquanto gritava para alguém chamar a polícia. Não custou muito para a troca de bordões: “As pessoas diziam: ‘a polícia vai soltá-lo’. E eu: ‘não importa, vocês não são deus para julgar. Olho por olho e todos acabaremos cegos”, diz.
Foi quando apareceu um morador do bairro com um cachorro na coleira. Ele levantou Mikhaila com tanta facilidade que ela se sentiu um “pacote de areia”. “Ele ficou na minha frente e disse: ‘sorte a sua que você é mulher, se não ia apanhar junto. E mais: sorte que você está aqui para proteger esse cara. Se não, meu cachorro iria comê-lo’. Fiquei paralisada, não conseguia falar nada.”
A Polícia Militar chegou ao bar na Freguesia 45 minutos depois. A chegada da PM não trouxe alento a Mikhaila. “Tem que apanhar mesmo. Gosta de bandido, leva pra casa”, disse o PM, para receber um aplauso coletivo. “Fiquei incrédula, com o olho arregalado. Não dava para acreditar naquilo”, lembra. Os PMs pegaram o assaltante, o algemaram e o levaram. “Antes de entrar na viatura, ele me olhou nos olhos e disse: ‘Obrigado’. Chorei tanto, eu tremia".
Apesar de condenar a postura do policial, Mikhaila se mostrou receosa ao tecer comentários: “Eu sou manifestante, né? Claro que tenho receio da polícia. Medo, inclusive”. O que mais a intrigou foi a fala do PM ter escancarado a falta de crença na própria instituição. “Todo mundo sabe que os linchamentos são resultado da falência da polícia e da justiça. Mas, ao dizer aquilo, ele mesmo confirmou isso”, afirma.
O saldo de toda a confusão foi a sensação estranha de parecer estar dentro de A Revolução dos Bichos, de George Orwell, dizMikhaila. “Eu já não conseguia diferenciar os animais dos homens.”
Leis duras
Para Mikhaila, a ação dos justiceiros ecoa a repressão às manifestações de rua: “O Estado deveria ser uma instituição educada, consciente e com noção de justiça, mas acaba exprimindo exatamente o pensamento do justiceiro, de atuar no final da cadeia”, afirma. Para ela, exemplos disso são as leis que proíbem o uso de máscaras em manifestações ou mesmo de bonés em locais públicos.
“O Estado age para modificar a sociedade para justificar seus próprios erros”, diz. “Se a gente age com violência para tentar acabar apenas com o final de toda essa cadeia de acontecimentos, todo início dela continuará ocorrendo. Essas pessoas, então, acreditam na legítima defesa, na justiça como solução final, mas não passa pela cabeça delas atuar no começo desse ciclo, investindo em educação e tendo maior contato com o outro”, afirma.
Para Mikhaila, os linchamentos não representam uma reação instintiva. Eles fazem parte de uma histeria coletiva que anda de braços dados com o desejo de “limpeza social”. Quem se opõe a eles, diz ela, será confundido com o réu e sofrerá a paranoia de ser justiçado. “Não sou o tipo de pessoa que tem medo. Mas fiquei um tempo sem conseguir sair de casa. Hoje, me sinto muito vigiada.”
Fonte: Carta Capital
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