Bundas, seios, praia, calor, bossa-nova, samba, Carnaval. Em cima de carros alegóricos ou no meio da pista, corpos considerados como os mais belos são exibidos. Besuntados de purpurina, cercados de penas artificiais por todos os lados, elas dançam, cantam, festejam. Não há regras, apenas o cronômetro da Sapucaí e os olhares atentos do júri, da imprensa e da torcida.
A cada verão no hemisfério Sul, essa imagem hipersexualizada do Brasil é transmitida mundo afora pelos meios de comunicação. A atmosfera, que dura apenas poucos dias, transcende, tornando-se uma das representações permanentes mais conhecidas do país no exterior. Não à toa, no vídeo promocional da FIFA esses foram os símbolos escolhidos, ao lado dos jogadores da seleção e do Cristo Redentor, para estimular a vinda de torcedores para a Copa do Mundo de 2014.
Essa “ideia” da mulher brasileira, em especial cis e hetero, não é novidade. Desde os primeiros relatos portugueses-cristãos sobre a sexualidade das indígenas que não “se envergonhavam” de suas “vergonhas”, perdura a representação do país como um lugar com excesso de liberdade e promiscuidade. Essa representação também foi incorporada à própria subjetividade e ao cotidiano nacional. Como aponta Kamala Kempadoo em relação à sexualidade caribenha – uma análise que pode ser transportada, ainda que não totalmente traduzida, para o Brasil –, “nós não podemos vê-la apenas como uma fabricação da mente e da imaginação europeias, ou descartá-la como como discursos coloniais ou metáforas, mas precisamos também ver a hipersexualidade como uma realidade vivida e que pulsa”. Kempadoo cita Frantz Fanon para comentar o quanto os discursos coloniais podem estar profundamente inseridos na psique e no comportamento dxs colonizadxs.
Tampouco é novidade o fato de tal ideia ser uma mercadoria e de que ela seria utilizada como um dos elementos para compor o cenário da Copa e dos Jogos Olímpicos de 2016. Nos países colonizados, a sexualidade está profundamente ligada à economia e, ao longo do tempo, os corpos se mantém como artigo de troca e venda. Para Kamala Kempadoo, “a exploração e opressão que produziram hierarquias raciais e que foram, em parte, constituídas através da sexualidade não o foram apenas devido à noções de superioridade de um grupo, mas estavam evidentemente alojados na busca por riqueza – pela acumulação de riqueza e lucros pelas elites da Europa.”
Mas, dentro dessa perspectiva e considerando a Copa do Mundo e as Olimpíadas como dois mega-eventos que movimentam intensamente a economia, de que maneira então as mulheres brasileiras serão afetadas por eles? Será que podemos pensar em impactos específicos sobre elas?
É provável que os mega-eventos não tragam situações novas de desigualdade na estrutura hierárquica que coloca os homens acima das mulheres, mas sim agudizem aquelas que já são vivenciadas por elas. E isso deve ocorrer particularmente em duas esferas:
1 – Entre as mulheres trabalhadoras informais ou sem regulamentação, com destaque para as profissionais do sexo.
2 – Entre as mulheres que integram famílias removidas de áreas afetadas pelas obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas;
Não entrarei aqui na questão do tráfico de pessoas e da exploração sexual de crianças e adolescentes, mas há muita literatura sobre o tema.
Mesmo antes dos mega-eventos, ações como remoções e despejos e restrições ao trabalho informal já apontavam tendências, em especial no Rio de Janeiro, em Recife, Belo Horizonte, Brasília, Salvador e Fortaleza, cidades que receberam em 2013 a Copa das Confederações.
Com isso em mente, recolhi relatos de algumas das pessoas que acompanham os preparativos dos mega-eventos, a partir do ponto de vida das comunidades afetadas e dos movimentos sociais que orbitam em torno dessa pauta.
1. Trabalho informal e sexo
No Dossiê Mega-eventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil, organizado pelos Comitês Populares da Copa, dois pontos são criticados pelos diversos movimentos sociais, comunidades e pessoas que acompanham a organização do evento da FIFA no Brasil: a restrição ao trabalho informal e a criminalização da pobreza, com retirada da população de rua dos pontos turísticos.
Para Argemiro Ferreira Almeida, do Comitê Popular da Copa em Salvador (BA), “na Copa das Confederações ficou muito claro os limites, a força, qual é o poder econômico que está por trás de tudo isso”. Almeida cita as baianas de acarajé como um símbolo da precarização do trabalho informal. A princípio, elas seriam proibidas de comercializar a tradicional comida durante os jogos. “Depois de muita luta e de uma campanha online solicitando sua presença nos estádios, conseguiram negociar com a FIFA – não os patrocinadores, eles não queriam – um pequeno espaço na Arena Fonte Nova para vender o acarajé. Era uma área reservada, que não estava à vista. Na margem do estádio tinha somente os vendedores cadastrados. Havia vendedores ambulantes em todos os estádios, mas eles foram muito mais precarizados porque não eram os produtos que eles estavam acostumados a vender ou que eles mesmos fabricavam e sabiam o quanto iriam lucrar. Era ou a cerveja autorizada, ou o hot-dog autorizado pelos patrocinadores da FIFA. Não tem livre concorrência. Esse espaço que antes era público e poderia ser disputado livremente não existe mais. Ele foi transformado num espaço privado. Isso vale para tudo: para os ambulantes, para as mulheres prostituídas.”
Em São Paulo (SP), Juliana Machado Brito, do Comitê Popular da Copa local, afirma que as mulheres trabalhadoras ambulantes serão as mais afetadas pela Copa. “Muitas vezes são idosas, trabalhadoras ambulantes com filhos, inclusive com deficiência, condições de moradia precária e que dependem desse trabalho para sobreviver. O Estado persegue os ambulantes por meio da força policial e são na sua maioria mulheres que não têm acesso ao trabalho formal. E isso tem um grande impacto na economia popular. Na Copa haverá zonas de exceção, zonas de exclusividade da FIFA em que somente os produtos dos patrocinadores poderão ser vendidos.”
Trabalhadoras ainda sem regulamentação no Brasil, as prostitutas também aparecem nos relatos como setor impactado pelos mega-eventos. Almeida afirma que, em Salvador, as trabalhadoras do sexo, que também atuam na informalidade, têm sofrido perseguição. “Aqui, as mulheres que se prostituem também estão vendendo alguma coisa, uma água, pipoca, enfim. Elas estão num duplo trabalho: o trabalho informal e o sexual. Essas mulheres também sofrem pressão. Foram ameaçadas a não trabalhar em determinados espaços, lugares e horários. E aquele é o espaço de trabalho delas”.
Algo semelhante esteve perto de ocorrer em Belo Horizonte quando a rua Guaicurus, conhecido ponto de prostituição na cidade, quase teve seus hotéis fechados a pedido do Ministério Público de Minas Gerais em 2013, iniciativa vinculada pela imprensa e pelo juiz responsável à organização da Copa do Mundo.
No Dossiê dos Comitês Populares da Copa, um dos grupos citados como afetado pelos mega-eventos é a Aspromig (Associação das Prostitutas de Minas Gerais), que previa a “intensificação de tráfico sexual de mulheres durante os jogos” e com a insegurança em torno do local de trabalho. Segundo Cida Vieira, presidenta da Aspromig, a associação está capacitando as profissionais para a Copa do Mundo. “Estamos dando cursos de idiomas, o inglês é o mais procurado. Esse ano, devido à violência, estamos fazendo parceria com os hotéis para colocar detectores de metais nas entradas. Parceria com a Polícia Militar para ficarmos alertas sobre a violência contra a mulher e também contra as pessoas em geral que passam na região da rua Guaicurus. Estamos trabalhando na perspectiva da quebra de preconceito, da cidadania e pela regulamentação da profissão.”
Para Viera, a violência e a falta de regulamentação são os principais problemas:
“É importante aprovar o PL Gabriela Leite antes da Copa. Nós somos a favor dele porque ele tinha o apoio da Gabriela Leite e trazia proposta de organização de cooperativas. Esse não vai ser só o ano da Copa, vai ser o ano das putas! Pouco se fala das prostitutas, que são mulheres, cidadãs, que trabalham. O preconceito é demais. Eu defendo o direito, a legalização. Inclusive temos que criar uma lei que vai se chamar ‘Puta Maria’, porque a Lei Maria da Penha não abrange as prostitutas. Na Copa das Confederações, lutamos pela higienização dos hotéis e das boates. Ameaçavam fechar a rua Guaicurus, mas não conseguiram.”
2. Remoções
Outro ponto destacado pelos Comitês Populares da Copa são as remoções. Seus integrantes estimam que entre 170 mil a 250 mil pessoas serão ameaçadas ou removidas por conta dos mega-eventos no Brasil.
Em São Paulo, Juliana Machado Brito afirma que “as mulheres estão na linha de frente da luta contras remoções. É uma luta majoritariamente feminina. Claro, o machismo está sempre presente: os homens nos processos de negociação acabam tomando a frente. É uma luta cotidiana das mulheres.” Para Brito, “as mulheres são mais afetadas que qualquer outro grupo, exceto as crianças, porque elas geralmente são as responsáveis pela moradia”:
“São as mulheres que cuidam da casa, que colocam a renda familiar lá, são as mulheres que cuidam dos filhos. Na comunidade da Paz, na Zona Leste, elas estão muito bem localizadas, em uma espécie de centro do entorno. Têm acesso a emprego, hospital, creche, escola, equipamentos de assistência social, lazer, transporte. É melhor do que áreas periféricas a 2 ou 3 quilômetros dali. Então elas vão ser diretamente afetadas se forem removidas porque tem que dar conta de cuidar da casa, dos filhos, de trabalhar. Essa população vai ser substituída por outra de classe média e classe média alta que vai poder pagar pela moradia ali. E os que estão sendo removidos serão expulsos para cada vez mais longe.”
Brito detalha o caso da comunidade da Paz:
“Ela fica a 800 metros do estádio. A área que a favela está é da Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação) e a Prefeitura quer tirar 101 famílias de lá, das quase 400 que moram no local, até junho, antes da Copa. Existe um discurso que isso não é uma obra oficial da Copa e que elas estão em risco. Mas elas moram lá há 22 anos e o Estado nunca se preocupou com essa situação. Os moradores elaboraram um plano popular como alternativa à falta de propostas da Prefeitura. Nesse plano consta a possibilidade de parte das famílias ser reassentada em terrenos muito próximos da área atual e das demais famílias permanecerem com a urbanização daquela área. Isso é diferente da desapropriação, que é um processo judicial que acontece quando a pessoa é proprietária do terreno e o Estado precisa fazer uma obra pública. Isso se acelera com a chegada da Copa do Mundo, mas é algo que existia há bastante tempo. É uma expansão que aumenta com a crise global, em que o capital imobiliário e as corporações vem explorar as metrópoles do sul do mundo que ainda tem possibilidade de expansão. No caso de Itaquera, as obra que são muito próximas do estádio, na Avenida Jacu-Pêssego, prolongamento da Radial Leste, são obras que não teriam acontecido num prazo tão curto e dessa maneira se não fosse a Copa.”
Antonieta Simões dá um testemunho semelhante. Moradora da comunidade do Campinho, no Rio de Janeiro, ela foi removida de sua casa porque o local ficava em uma das áreas em que está sendo construída a TransCarioca, via de ligação entre o aeroporto internacional do Galeão e a Barra da Tijuca. A obra, a princípio, estaria pronta para a Copa do Mundo. Para não retirar a filha da escola nem ficar longe de seu local de trabalho e da família, Simões mudou-se para um morro ao lado:
“A comunidade inteira saiu. Em 2010 começaram as pressões para demolir as casas. Só sabíamos que a nossa comunidade ia sair, mas não sabíamos quando. Nada de discutirem projeto com a gente e nada de dizer se ia ser necessário sair, para onde a gente ia. A gente ia na Prefeitura e nunca tinha resposta. Na Defensoria Pública a gente foi orientado pelo núcleo de terras. Mas toda vez que o defensor público nos orientava em alguma coisa, a Prefeitura vinha nos aterrorizar e dizer que tínhamos que sair. Ofereceram depois de ir para Cosmes, a 60 quilômetros daqui. Muitas pessoas acabaram indo porque não têm instrução nenhuma e se sentiram coagidas. A princípio só disseram que tínhamos que desocupar o espaço e não falavam em indenização. Eu fiquei lutando. Eu não saí. Para mim era inviável porque meu trabalho é próximo daqui, a minha filha estuda perto de casa e a minha família também. A luta foi por uma indenização justa. Ofereceram então o bolsa-aluguel de três meses, já descontado de uma indenização de R$ 37.500,00 para todo mundo, independentemente do tamanho da casa. E só conseguimos isso por conta de muitas brigas. Estamos tentando receber mais da Justiça. Tem um valor depositado em juízo para o proprietário de todas as casas da área, que é morto e não tem ninguém para receber. É mais de R$ 400 mil para dividir entre os moradores, mas sabe deus quando vamos receber. A comunidade acabou se separando e os que foram para Cosmes se arrependeram.”
Simões avalia o quanto a remoção prejudicou-a:
“Agora estou numa outra comunidade perto, no topo do morro. É complicado estar subindo o tempo todo. Antes a gente morava no plano. Mas o único lugar que você pode morar com esse dinheiro que ganhamos é em cima do morro. Antes a vizinha ia levar o filho na creche e aproveitava e deixava minha filha na escola que ela estuda. Agora não. Tem que pagar alguém pra tomar conta do filho, pagar transporte para levar e buscar filho na escola. Tem que se adaptar ao morro e à nova vizinha. E lá é milícia então eu não sei com quem estou lidando. Minha qualidade de vida caiu muito. Morava perto de escola, de mercado. Agora estou bem no topo do morro. Nem dá para levar sozinha sacolas de compra. Às vezes a gente fica sem esperança. A Copa teria que ser algo muito legal para a gente, deixar um legado. Mas o que acontece é o Prefeito cada vez mais rico com tantas obras.”
3. Capitalismo regulatório
São muitos casos e denúncias, caberia acompanhar cada um em detalhe. Esses relatos prévios dão conta que processos de remoção e desapropriação em curso nas cidades escolhidas para sediar a Copa – e no Rio de Janeiro, também os Jogos Olímpicos – foram acelerados. Da mesma maneira, foi agravada perseguição existente axs trabalhadores informais, limitando sua possibilidade de trabalho.
Soma-se a isso a confirmação de que as mulheres têm sido prejudicadas de maneira específica, enquanto classe, nas funções que lhes são atribuídas a partir da divisão sexual do trabalho, diretamente imbricada com divisão social do trabalho. Quando afastadas do local onde vivem, perdem a infra-estrutura que poderia contribuir para amenizar sua dupla ou tripla jornada: creches, escolas, postos de saúde e hospitais e a própria comunidade, como demonstra o depoimento de Antonieta Simões. Quando trabalhadoras informais ou sem regulamentação, estão expostas à violência e, por vezes, à impossibilidade de conseguir renda. Assim, dentro de um contexto de mega-eventos que movimentam milhões de dólares a cada edição, é possível afirmar que as mulheres estão perdendo o jogo.
Por outro lado, casos como o da favela da Paz, em São Paulo, das baianas do acarajé em Salvador, da Aspromig, em Belo Horizonte, e da antiga comunidade do Campinho, no Rio de Janeiro, têm demonstrado que a realidade está em permanente transformação. Onde há impacto, há resistência.
Ao analisar a Olimpíada de Londres, Mike Raco afirma que não foi nada fora do normal, embora a literatura sobre os mega-eventos tente fazer parecer que sim. Para ele, houve apenas uma amostra, bastante destacada, da maneira como opera o capitalismo regulatório. Segundo Raco, “sob o capitalismo regulatório, relacionamentos híbridos emergem entre os Estados e corporações poderosas, até o ponto em que as diferenças entre fornecedores e formuladores de políticas públicas se torna cada vez mais embaçada. As implicações das tomadas de decisões, da eficácia política e responsabilidade são potencialmente enormes conforme os interesses privados começam a se envolver na co-produção de todos os aspectos dos projetos urbanos”. Uma enorme oportunidade, enfim, para grandes empresas privadas conseguirem contratos e lucrarem, enquanto os de baixo, entre elxs e especialmente as mulheres, se questionam sobre o quanto têm perdido com os mega-eventos e diagnosticam, a partir de dados materiais cotidianos, a mercantilização de suas vidas.
Bibliografia
Dossiê Mega-eventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil, Comitês Populares da Copa.
DELPHY, Christine. L’ennemi principal (vols. 1 e 2). Paris: Syllepse, 1998 e 2001.
KEMPADOO, Kamala. Sexing the Caribbean – Gender, Race and Sexual Labor. Nova York/ Londres: Routledge, 2004.
KERGOAT, Danièle. “Division sexuel du travail et rapports sociaux de sexe”. In: HIRATA, Helena et. al. Dictionnaire critique du féminisme. Paris: PUF, 2004, p. 35-44.
RACO, Mike. “The privatisation of urban development and the London Olympics 2012″. Londres:City, v. 16, n. 4, ago/2012, p. 452-459.
TABET, Paola. La grande arnaque. Paris: Harmatann, 2004.
Fonte: Mairakubik - Carta Capital
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