sexta-feira, 8 de maio de 2015

NA ÁFRICA DO SUL, CAEM OS ÍCONES DA COLONIZAÇÃO



A estátua de Cecil Rhodes foi a primeira. A África do Sul deixou de ser a “nação arco-íris”?

A juventude sul-africana de amanhã dirá que foi 2015, e não 1994, o ano em que a mudança realmente começou”, diz o estudante, momentos antes de a estátua do colonizador Cecil Rhodes ser removida da Universidade da Cidade do Cabo (UCT), ante a euforia de milhares de alunos. “O que queremos é a descolonização da mente, a descolonização das instituições”, afirma Masixole Mlandu, do movimento Rhodes Must Fall (“Rhodes tem de cair”).

Muitos veem nesse dia 9 de abril o desfecho vitorioso de um mês de protestos que começou quando um estudante atirou um balde de fezes contra o monumento. Os estudantes, em seguida, ocuparam um edifício da universidade, acusando a instituição de contribuir para a perpetuação de uma narrativa de supremacia do homem branco.

Por todo o país, símbolos do colonialismo foram atacados com tinta, enquanto o partido Economic Freedom Fighters passava a defender o expurgo de todos os símbolos colonialistas – não só a queda simbólica dos ícones do passado.

Em contrapartida, há quem acuse os jovens rebelados de desrespeitar a história do país, de fomentar um nacionalismo negro e passar ao lado dos verdadeiros problemas atuais, como a corrupção.

“As estátuas são só uma metáfora”, desabafa o jovem Masixole, que todos os dias passava pela figura de bronze a caminho do curso de Ciências Políticas e Sociologia. “Elas representam o sofrimento negro, a nossa derrota enquanto negros neste mundo. Crescemos com a inferioridade gravada no corpo, privados da nossa própria terra, desconectados de nós mesmos. Os negros continuam a viver com a violência todos os dias, em todos os lados. Escravidão, supremacia branca, capitalismo – é esse até hoje o verdadeiro legado de Rhodes.”

O magnata inglês Cecil Rhodes foi primeiro-ministro da então Colônia do Cabo entre 1890 e 1896. Apologista da supremacia racial britânica, construiu uma das maiores fortunas da época através da apropriação da terra dos povos africanos e da exploração de trabalhadores negros nas minas de diamantes. Foi de sua fortuna que surgiu a universidade.

A UCT, a mais antiga faculdade do país, e das mais importantes da África, localiza-se hoje a meio caminho entre miseráveis townships (zonas urbanas reservadas a não brancos até o fim do apartheid) e alguns dos mais luxuosos bairros do continente. No seu corpo acadêmico, apenas 3% são sul-africanos negros. Pelo país afora, de resto, a riqueza continua a ser largamente ditada pela cor da pele: a população branca perfaz menos de 10%, mas detém metade das receitas nacionais e 70% das terras.

Uma semana depois de Rhodes ter caído, uma tragédia substituía a polêmica das estátuas no topo dos noticiários. Em Durban e Johannesburgo, cinco pessoas,
imigrantes procedentes da Etiópia, Zimbábue e Moçambique, morriam vítimas de uma nova onda de ataques xenófobos, e mais de mil estrangeiros fugiam das suas casas. Eventos que, duas décadas depois do fim do apartheid, trazem à luz do dia a realidade de miséria e escassez de empregos nas zonas mais pobres.

Com as comemorações de fim de 2013 em torno da morte de Nelson Mandela, podem bem ter sido disparados os últimos foguetes de celebração da narrativa sobre a “nação do arco-íris”, da paz e reconciliação, que serviu à reconstrução da África do Sul.

“Só nos preocupamos com a retórica do arco-íris e em cantar kumbaya, enquanto a nossa economia continua a refletir as mesmas disparidades socioeconômicas da era doapartheid”, denuncia Ramabina Mahapa, presidente do conselho de estudantes da UCT. “A democracia garantiu uns poucos lugares negros à mesa dos senhores, o resto continua a lutar pelas migalhas que caem da mesa.”

Apesar das leis antidiscriminatórias e dos programas de assistência social do governo do Congresso Nacional Africano, o número de pessoas a viver abaixo do limiar de pobreza duplicou e o fosso entre ricos e pobres não parou de aumentar, fazendo do país um dos mais desiguais do planeta.

Em 2012, as imagens da polícia sul-africana a assassinar 36 mineiros, em greve contra os salários miseráveis, chocavam o mundo. Nesse mesmo ano, a multinacional mineira De 

Beers, fundada por Rhodes, faturava 6 bilhões de dólares.

“Substituiu-se uma forma de opressão por outra”, diz Masixole. “Quando dizemos ‘Rhodes tem de cair’, queremos dizer que a supremacia branca, o capitalismo, o patriarcado e toda a opressão sistemática baseada em relações de poder têm de cair. Atacando os seus símbolos, estamos lançando uma verdadeira conversa sobre nós mesmos, a transformar as nossas escolas, a sociedade e o mundo.”

“Não é pelos 20 centavos”, diziam as manifestações brasileiras de 2013 contra o aumento das tarifas de ônibus. “Não é pelas estátuas”, diz o movimento Rhodes Must Fall. Para o grupo, é apenas o início. Da luta de libertação de Moçambique vem um dos slogans mais usados pelo movimento. Em português: “A luta continua”.

*Reportagem publicada originalmente na edição 848 de CartaCapital, com o título "Caem os ícones da colonização"

Fonte: Carta Capital

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