segunda-feira, 18 de maio de 2015

SNOWDEN: O CIDADÃO QUATRO CONTRA O GRANDE IRMÃO


A história do americano Edward Snowden é contada nesse documentário com um rigor profissional ímpar, simples, limpo e sem qualquer artifício fácil.

No fim de 2012 a cineasta e escritora americana independente Laura Poitras, de 51 anos, conhecida como autora de dois elogiados documentários – My country, my country, filmado no Iraque, e The Oath, sobre Guantánamo – recebeu um email criptografado de certo Citizenfour que se prontificava a revelar a ela detalhes impressionantes sobre os abusos do sistema de vigilância da National Security Agency, a NSA, que invadia para bisbilhotar a vida privada de milhões de cidadãos comuns ao redor do mundo. E, como ficou provado depois, espionava também empresas e líderes de governos - caso de Angela Merkel e da presidente Dilma Rousseff.

Cercando-se de cuidados ao responder àquele ‘lançador de alerta’*, como são conhecidos esses milhares de dissidentes do Sistema, que proliferam rapidamente através do planeta trabalhando no mundo digital, nas sombras e no anonimato, Poitras viu logo que se tratava de alguém de dentro e não de fora da NSA, visto a qualidade e o grave teor dos primeiros documentos que lhe foram enviados.

Seus cuidados não eram paranóicos. Desde o seu primeiro filme, em 2006, Poitras costumava ser importunada quando embarcava em viagens; nos aeroportos, as bagagens eram revistadas e o passaporte questionado. Seu nome consta – ou constava? - das primeiras listas de segurança dos EUA nas quais se encontram os nomes de indivíduos considerados perigosos. Ela era - como é ainda - uma pessoa vigiada que corria riscos porque estava em contato com lançadores de alerta famosos e alguns deles processados: William Binney, ex-funcionário da NSA; Julian Assange, fundador do Wikileaks, Jacob Appelbaum, hacker e ativista, entre vários outros. Na ocasião, Poitras pesquisava para um novo filme justamente sobre espionagem de estado e vazamentos.

Até junho de 2013 a cineasta trocou dezenas de mensagens com citizenfour até decidir aceitar o seu convite para conhecê-lo e encontrá-lo no conhecido hotel Mira, de Hong Kong. O tal cidadão quatro desejava que ela, com a sua câmera, e o jornalista Glenn Greenwald, do The Guardian, o ouvissem e fossem depositários de suas perigosas revelações para que fosse possível levá-las adiante caso alguma violência se abatesse sobre ele quando os vazamentos se tornassem públicos.

Ela conta em uma das diversas entrevistas que concedeu quando o seu filme-bomba foi lançado no Festival de Nova Iorque de 2014: “Edward me enviara documentos nos quais constava seu nome verdadeiro; mas eu decidi não digitá-lo para não chamar atenção sobre ele.”.

Foi assim que 16 meses depois de revelar ao mundo o programa de vigilância global administrado pelo governo dos EUA, a história do americano Edward Snowden, de 31 anos, é contada nesse documentário, de um rigor profissional ímpar, simples, limpo e sem qualquer artifício fácil. Com narrativa segura e passando ao espectador uma tensão muito mais aguda que a da maioria dos blockbusters de ficção que circulam por aí, filmes dejá vu, de suspense barato estrelados por astros decadentes.

A revista (comercial) Variety definiu Citizenfour, Oscar de melhor documentário deste ano, como “um retrato extraordinário” de Snowden. Na outra ponta, o site de esquerda Salon.com o descreveu como “uma história de espionagem real, urgente e cativante que deveria ser vista por todos os norte-americanos”.

São 114 minutos dos quais 60 filmados no pequeno quarto de Snowden no hotel Mira, e ele revelando e entregando documentos a Greenwald sobre como os EUA e outras potências violam princípios fundamentais da democracia e do direito sacudindo relações diplomáticas aparentemente sólidas e, sobretudo, mudando o modo como os cidadãos avaliam seus governos. Laura admite que naqueles oito dias de filmagens no Mira sentiu mais medo do que quando estivera trabalhando nas zonas de conflito de Bagdá, tal a dimensão da repercussão planetária, que, ela sabia, é claro, ia se desencadear logo após as denúncias fossem publicadas.

E nenhum dos três, Snowden, Greenwald e ela não tinham certeza se já tinham sido ou não localizados pela inteligência americana em Hong Kong.

“No início, Snowden desejava o anonimato. Não queria que a história fosse também sobre ele. Desejava que o público entendesse o que o governo fazia. Mas de qualquer modo, eu argumentei, o mundo vai querer saber quem é você e quais foram suas motivações,” observa Poitras, que seguiu os cânones do mais puro cinema verdade: não interferir em momento algum no que a câmera registra.

No filme, Snowden oferece duas chaves para suas motivações. Uma, quando diz: “Espero que as pessoas não vejam isto como uma história de heroísmo. Na realidade, é uma história sobre o que pessoas comuns podem fazer em circunstâncias extraordinárias.”

Sua outra reflexão: “ Para haver liberdade de expressão é preciso que ela seja protegida.”

O detalhe inacreditável, que beira o nonsense, se dá quando o trabalho está terminado e a estratégia imediata é costurada. O The Guardian, com Greenwald e Ewen MacAskill - outro repórter do The Guardian presente ao encontro - soltaria imediatamente, on line, a matéria explosiva. Laura pegaria um voo para sair de Hong Kong e Edward desceria para o lobby do hotel e se dirigiria para o escritório da ONU na cidade onde advogados especializados em direitos humanos o aguardavam; era um espaço em que ele estaria em segurança – pelo menos teórica.

Snowden descerá pelo elevador calmamente, irá até a entrada do Mira e... entrará num táxi, sozinho, para ir ao encontro, afinal, de quê? Do seu destino? Da sua opção?

Foi o último instante talvez em que pôde circular anônimo, no meio da multidão, antes que hordas de equipes de mídia do mundo inteiro invadissem o lobby do hotel.

Durante as conversas registradas no filme, a mais importante (e mais intrigante), com Snowden já instalado em Moscou, é interrompida pelo método de segurança adotado por Greenwald. Para evitar a captação da notícia por equipamentos de áudio porventura escondidos na sala, Glenn escreve um bilhete a Edward, sentado na sua frente, com o nome de um novo informante, uma outra fonte da NSA. Ao ler o papel e saber que esse indivíduo ainda está na ativa dentro da agência, Snowden fica de queixo caído. Codinome: a câmera de Laura o mostra, rabiscado num papel.

A CNN, em agosto de 2014, especulara que haveria uma ‘segunda fonte’ vazando documentos. Notícia fornecida por funcionários do governo. Essa informação continha o documento com o registro do número de pessoas na lista do governo dos EUA sob vigilância porque consideradas ameaça potencial ou suspeitas: 1,2 milhões.

No dia do lançamento de Citizenfour, em Nova Iorque, Glenn escreveu que o documentário, no final, apresenta um Snowden bem, morando com a namorada Lindsay Mills, de Baltimore, há um ano em Moscou. Um ambiente que os autores quiseram realçar. As imagens domésticas do casal são filmadas com uma câmera discreta, distante e respeitosa. O jornalista considera importante esse registro porque mostra para muitos outros potenciais lançadores de alerta que é possível desafiar um governo imperial e mesmo assim construir uma vida feliz.

Pelo menos uma vida com a consciência em paz.

Vale lembrar que, com o objetivo de incentivar novos vazamentos – sem interesses pessoais ao contrário dos vazamentos seletivos e inaceitáveis aqui, no Brasil, como em qualquer país do mundo com democracia madura e bem estruturada –, com esse objetivo Greenwald apoiou, recentemente, o projeto Courage Foundation liderado por Sarah Harrison, do WikiLeaks, dedicado a ajudar na proteção de jornalistas e informantes que colocam a vida e a liberdade em risco para revelar informações de interesse público sobre governos e empresas.

A expectativa é a de que, com a exibição desse fascinante doc sobre a história do (quase ainda) garoto tímido, que gosta de brincar com cubo mágico - como mostra o filme -, proliferem centenas de milhares de outros lançadores de alerta. Eles são fundamentais como contraponto às mentiras dos governos e à ficção oficial.

O filme pode ser visto em https://thoughtmaybe.com/citizenfour/

*Lanceurs d’alertes difere da expressão em língua inglesa whistleblowers. A primeira se refere à denúncia desinteressada e sincera; sinal de perigo emitido que suscita uma tomada de consciência. A segunda designa o delator - aquele que denuncia por interesse.

Fonte: Carta Capital

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